segunda-feira, abril 15, 2024


 


67.   Poemas de Abril


Abril: síntese inalcançável


Já não há palavras 

Que floresçam Abril, 

Nem já há lágrimas 

Que chorem Abril, 

Pois já não há povo 

Que sinta, nem saiba, 

O que foi Abril!


Há palavras surdas

Que ferem Abril,

Há lágrimas fingidas 

Que secam Abril

Há gente que já nem sonha,

Nem acredita

Que neste País poderia 

Ter acontecido “Abril”.

Hoje todo o céu

É frio,

Nele Abril é um ponto, 

Uma síntese

De um infinito sonhado.

Inalcançável


Senos da Fonseca

domingo, março 31, 2024


 


E assim vou « vivendo » esta Páscoa...deixando um conselho aos mais novos

Tu não questiones — é crime saber — o fim que para mim, que para ti
os deuses terão dado, ó Leucônoe, nem mesmo consultes
os números babilônicos. Quão melhor, o que quer que será, ser suportado!
Quer Júpiter te haja concedido muitos invernos, quer seja o último
o que agora quebra as tirrenas ondas contra as pedras,
sejas sábia, diluas os vinhos e, por ser breve a vida,
limites a longa esperança. Enquanto falamos, foge invejoso
o tempo: aproveita o dia, minimamente crédula no amanhã.

                                          Horácio. (Odes)

CARPE  DIEM versus  BEATUS ILLE

Aproveita hoje que amanhã....

A propósito do CARPE DIEM , à medida que as horas  silenciosas vão correndo, vou   discorrendo….

Creio que sempre que a vida nos prega uma partida, paramos e juramos: é agora. Com esta história da pandemia, parece  chegada a altura de procurar viver segundo Horácio, o poeta  venezino.

Viver segundo as regras do poeta, era viver na suprema virtude (perfeição )da vida.

Seguir Horácio –e muitos juraram segui-lo, e imitá-lo – tinha, entre  outros saberes ( virtudes) o  beatus ille, que seria o viver «afastado», num modo (propósito) contemplativo. Ora manda a verdade dizer que os nossos Árcades, cantavam esse viver. Só que, não muito longe do bulício (e prazeres) da cidade. Era o tal viver lá fora, cá dentro. Quando muito, cantavam as suas Odes nos jardins públicos, a paisagem citadina que imitava (?!) a «Arcádia» pastoril.

Por mim, também aderia (poeticamente) ao CARPE DIEM.

Só que prometi fazê-lo um ror de vezes, e voltei sempre ao mesmo. Tantas foram as vezes que jurei dizer palavras que afinal nunca disse; tantos foram os gestos ensaiados e logo fenecidos à nascença; tantos foram os sentimentos que guardei só para mim, quando os devia lançar ao vento e deixá-los ribombar por todos os cantos…A cada promessa ensaiada, logo voltava à estaca zero.

 Chego pois, à conclusão que, (já) não mudarei, embora o tenha prometido,.Agora, uma vez mais.

E  por isso continuarei a querer importar-me ;e continuarei a querer saber; e continuarei a aceitar sofrer. E continuarei a guardar a sete chaves muito dos meus sentimentos, que não contarei a ninguém. Que levarei comigo. Como levarei os gestos e as palavras, os sorrisos e as lágrimas.

E vou andando. Continuarei a deixar-me agir impulsionado por um qualquer sonho (mesmo que pequeno). Não tenho outro modo de me deixar existir. Parece que nunca aprendi. Ou não quis.

E discorro: os avisos e propósitos de Horácio ficaram registados nos compêndios literários. Morrem lá enterrados, bafientos. Utopia inalcançável..  


Senos da Fonseca


sábado, março 30, 2024

 


Para mim a vida não foi cruel….nem sequer ingrata (até agora!)



Hoje a conversa no Mar da Palha, estava um pouco bizarra. Cada um, já não muito longe do fim, a deitar contas ao que resta da vida. Havia unanimidade de que é sempre bom, um homem ir á frente. Como lhe compete, observei. Sabe-se lá dificuldade das veredas a prosseguir.

Uma mulher adapta-se claramente ao aspecto mais terrível e cruel, que é o da solidão. Falo das mulheres das gerações anteriores, pois não sei se, com os ganhos, ditos civilizacionais, no futuro, as coisas se irão processar da mesma maneira.


Medo da morte, logo que a conversa entra em maior proximidade, é já perceptível em todos.

Já abordei, aqui e por  várias vezes, o tema. Eu o que tenho medo é de um dia qualquer, ter medo dela.

Porque não há objectivamente razão para eu ter medo dela, mas sim do que virá depois del, para os indefesos. Por muito que deixe tudo programado sei que o mundo não é solidário para esses, em particular.

Chegado aqui, pouco - muito pouco mesmo - deixei ficar para trás. Tive uma vida já longa, de tão curta. Duvidei por diversas vezes que isso aconteceria, pois que a minha vida foi de uma violência física ,desmesurada ,excessiva. No cômputo geral fui feliz (se é que se pode sê-lo, perante a realidade que nos cerca?!) ,se medir essa felicidade por mim, e em mim. Ainda que menos no que me ultrapassou. E mesmo nestas situações, consegui vislumbrar razões que me recompensaram das escolhas – ou sorte - imperfeitas, e nelas mesmo soube encontrar motivação para me superar e aceitar a missão com redobrada força interior. Capaz de minimizar os imponderáveis, para os quais não tinha (nem tenho) solução, mas contra as quais lutei como se houvesse. Nunca me rendi. Fiz até dessa situação, sem queixume nem amargura (exteriores), uma procura interior que me fez perceber melhor que a franqueza e a fraqueza não admitem partilha.

Amado por uns, odiado (?!) por outros: de há muito que me vem sendo dada(colada) esta qualificação com a qual passei a conviver, ainda que com ela não concorde. Não é minha. Exagerada, pura e simplesmente.

Mas, se tiver algo de verdade, então já agora:

Aos primeiros dei-me, mas não todo. Reservei sempre uma parte de mim mesmo que, nunca deixei antever. Por instinto de precaução. Para que, se doesse, doesse menos. Por isso creio que fui mais «amado» do que aquilo que dei em troca. Foi bom. Porque, repito, não dei tudo, tendo recebido muito mais.

Aos segundos pareceu-me que não é bem «ódio» mas apenas irritação por eu nunca ir atrás deles para me poderem exibir a seu lado. Nunca soube, nem me quis, mudar para sítios ensoleirados: preferi sempre ficar no meu sítio: - onde mora a fantasia, o sonho utópico que me inquieta e me transforma no mexeroto que gosto de ser. A viver  mais do instinto que do acto mental.

Não tive momentos cruéis a toldarem-me a alegria de viver, salvo o desaparecimento, um a um, dos que me eram próximos. Mas mesmo essa sucessiva repetição dolorosa, aceitei-a como inevitabilidade tirana da vida. Não me revoltei contra ela (por essas serem as regras do jogo), nem contra “NINGUÉM”, porque só me queixaria se antes “LHE” tivesse agradecido a dádiva (o que nunca sucedeu).

E sempre nesses actos compreendi que era melhor que tivesse sido assim. Porque  aqueles que ali estavam, no final, já não eram os meus. Já nem sequer percebiam que eu era, ainda, o seu. E quando assim é, não é vida, é morte em vida. Sem serem cruéis, esses momentos foram terríveis estados de alma, amargos, quase ininteligíveis para a compreensão dos que me rodeavam. Eu queria amparo; o que me ofereciam era desamparo, no aconchego do tem paciência:- é a vida. E eu sem saber, uma vez mais, porque é que se tem de ter paciência com a vida, tive-a.

Quando deixei a vida activa, preocupei-me como ia percorrer o tempo que restava. E foi, agarrando-me à construção de palavras que, percebi que caminhava bem mais despreocupado do que antevira, por finalmente poder perceber e dar corpo a muita coisa que a lufa-lufa da vida me tinha deixado escapar. A escrever, embora isolado do meu semelhante – eu!.., um obsessivo do convívio! -, parece que o visito todos os dias, para lhe dar conta dos meus desencontros, talvez para me envolver ainda mais.

Uma coisa é certa: -Não mudei....e não mudo, porque já não tenho tempo para isso. E mesmo que o quisesse fazer, estava certo que a caneta não mo deixaria fazer. Porque então, tudo o que dissesse era mentira.

E no momento mais crucial do dia, que é quando me olho, de manhã, ao espelho, ao não me encontrar comigo, tenho a certeza de que não descansaria enquanto não me fosse procurar por entre o lixo da minha mediocridade assumida.

Senos da Fonseca



quarta-feira, março 27, 2024


 


FREDERICO DE MOURA


De novo veio à baila Frederico de Moura, a solicitação de mestranda para recolha de informações. Boa altura para o trazer à colação (e insistir) para pôr fim a uma ingratidão que, Ílhavo (poder político, partido e comunidade em geral) comete, para com o cidadão ilustre, de actividade multímoda: médico de reconhecida competência, intelectual de  mérito deixando rasto  na excelente  prosa de cativante estilo que nos legou, político vertebrado e lucido, fiel ao povo que o elegeu e às ideias que nele nunca transmudaram ,ou sequer arrefeceram na convicção.

Apesar de ser chamada a atenção a quem tem poder para  corrigir a falta chocante para com uma personalidade a quem Ílhavo (tão pobre de valores culturais) muito deve, figura das mais salientes no historial ilhavense, não se compreende  razão para tal esquecimento. Seja  dos  edis que têm o poder(e responsabilidade) de corrigir o lapso , seja na ausência silenciosa  do partido  (ingrato) que, serviu e ao qual emprestou todo o empenho e brilhantismo com que defendeu   a liberdade e o direito de, livremente , exprimir o pensamento. 

Boa oportunidade, pois, para (com insistência), por boas razões, relembrar Frederico de Moura aos alzheimados e a sua (cívica) obrigação para com ele. Ainda que sem grandes esperanças de conseguir levá-los a pensar -e muito menos a proceder – tal a renuncia a tal esforço, ou postura. Ou pura incapacidade. Acto a que são profundamente relutantes. Creio que ainda é tempo de corrigir a amnésia castradora. Ou, uma vez mais, sentir a minha insistência enviada para o cesto dos papéis, pois, como  escreveu Frederico de Moura, a luz clara da razão não logra força para penetrar em certos desvãos defendidos ,aliás, por paredes grossas e duras como lajes de granito, onde pululam tortulheiras polimorfas de estupidez cultivadas pelas sombras nocturnas da ignorância mais espessa.

Adiante....

Difícil desde logo catalogar Frederico de Moura: – um intelectual que, não apenas acumulou saberes(muitos!), mas também os soube transmitir de várias e singulares formas. Escrevia de um modo soberano, isento de frioleiras inúteis, mas de um modo e jeito vibrátil (musculado) correspondendo  aos sentimentos, às emoções e às motivações do escritor ,em  “pinceladas” rápidas, mas claras, que  ia alinhando  dando  forma ao discurso, exacto e esmerado. Bonito....Um conversador que cativava e prendia, em que   o gesto exuberante sublinhava e reforçava a palavra, o ditado. Sempre entrecortado por uma chispa por vezes irónica, ou até maldosa, numa atitude critica implacável, mordaz e chistosa q.b. Um médico ao qual colegas recorriam assiduamente para dele colher conselho abalizado quando as maleitas em observação se complicavam. 

O que nos despertava a atenção em Frederico de Moura, era presenciar o humanista sempre insaciado, sempre em procura de saberes vários, ecléticos, um ser caloroso (em demasia), ora ácido ora sentimental, mas sempre amigo disponível, solidário. Por vezes colérico q,b., mas depressa capaz de voltar à justa postura, fruto de dialética formal  intima.  Mas sempre exuberante de riqueza afectiva. Quando agreste, era-o apenas como modo de pôr cobro a embófias empertigadas ou para invadir peanhas sombrias de auréolas sem brilho.

Detenho-me a relembrar a”pintura escrita da paisagem lagunar” saída da sua pena. Prosa elaborada em jeito pontilhado, iluminura soberanamente expressiva ao abordar a humanização da toalha líquida. Assume Frederico de Moura que. debruçar-nos sobre a paisagem (laguna) é o mesmo que fazer a leitura da biografia  do homem que, subtraída a matéria dos elementos, é o seu autor, o seu demiurgo Não há a meu ver, nada  escrito sobre a matéria (incluindo  abordagens de autores consagrados), que se compare  ao simples   visual sincrético  que (...)permite captar o macio cromática  da laguna (...) encharcando os olhos até ao limiar do perfil arroxeado dos montes do horizonte(...) onde a humanização da paisagem é epidérmica(...)precária e provisória.

Em  “Ressonâncias” desfilam biografias de notáveis romancistas  de relevância nacional ( Camilo, Torga, Aquilino, Mendes Leite ,Nemésio e outros,)a que se  juntam notáveis e históricas figuras  políticas ou cultores das artes, que ,Frederico de Moura puxa à cena, para  esculpir de um modo particularmente expressivo, na forma e nas palavras, as sendas  que  levaram a plêiade ,ora à dádiva de profusas ,  magníficas e imortais  obras , ora ao cometimento de “feitos” que perduram como   marcos assinaláveis na história pátria. A todos, por tal dádiva, devemos preito, elegia e memória.

Seroar com Frederico de Moura era sempre motivo de enriquecimento. Ouvir falar dos seus preferidos de um modo caloroso, vivo, sugestivo, intuitivamente pedagógico, era regalo para os sentidos. Tônus fortalecedor para a mente, caldo cultural degustado com atenção e deleite.  Ouvi-lo falar de Unamuno, pedagogo, ensaísta, romancista, dramaturgo, poeta e filósofo espanhol que, se encantou com o nosso atlântico mar a bater na praia arenosa onde, de entre as brumas parecia avistar-se  D. Sebastião. Ou ouvi-lo derivar para   Ortega e Gasset. Porventura o maior filósofo espanhol do Séc. XX,  avivar-nos o seu conceito de  cultura e do  sistema de ideias das quais o tempo vive. Trazer á colação Montesquieu e o seu soberano saber jurídico. Ora divagar sobre  politicapara trazer à conversa  Lenine, Rosa Luxemburgo ou  Marx ,cavaqueando , mesmo que empolando  algumas dissidências no julgamento desse período histórico. Outras vezes derivando sobre a arte, divagando sobre  os  paradoxos da perspectiva, e ou, sobre as relações complexas que se estabelecem entre o observador  e as pessoas nas “meninas” de  Velásquez.. Discutir a múltipla admiração e até as mais desencontradas reacções provocadas pelo “as meninas”, as  interpretações matemáticas, astrológicas, morais, políticas e até outras diferentes análises sobre o estilo ou  grau de criatividade artística da tela feita pelo pinto. Autêntica filosofia da arte.  Cavaquear sobre o desespero e os gritos de horror vistos em “Guernica”, logo trazendo para a charla ,  o franquismo e o fascismo nazista  cujas sombras ,nós, os mais novos ,conhecíamos de um modo ainda superficialmente. Eram verdadeiras aulas onde muito aprendemos em áreas onde, teríamos um déficit de que não nos envergonhava perante mestre de tal envergadura.

Frederico de Moura repartiu a sua vida por diferentes comunidades. Nascido em Aveiro (que lhe concedeu medalha de mérito da cidade, de prata e de ouro), educado e vivenciado em Ílhavo, onde mais tarde foi Director do Museu Municipal, assentaria  arraiais de “João Semana” em Vagos, onde exerceu com mérito reconhecido por doentes , mas e também  por  colegas que, muitas vezes, o chamaram para observação conjunta, opinativa, em  casos problemáticos,  

Lembro-me do contar peripécias do tempo em que, tarde escaldante , fora chamado de urgência, para acudir ao Colhambras da Vagueira (que já  “cuspia sangue” ). Lá foi   montado na égua, escopeta aferrada, seguindo por  entre o matagal, guiado pelo  “labrego” recoveiro que, á sua frente, em trote miudinho mas apressado de maçarico fugidio , indicava rumos certo  a permitir arribadela  ao casebre do doente. Tugúrio mais desalentado que o paciente, porta a desfazer-se em caruncho encabeçada por chapa de zincopolvilhada de ferrugem, enquadrada numa parede escorrida de arranhõe ,onde o beiral servia de alfobre a uma profusão de ervas daninhas. Ou quando montado no jumento do Margaça, de Calvão, seguia a contar os metros percorridos pela besta atolada no chão barrento, até chegar ao cacifo exíguo onde a Maria Bimba jazia, exausta, anémica em trabalho de parto complicado.  Mangas da camisa arregaçadas vá de “puxar o feto pelo pé bom” assim “salvando a carrada” como disse a “assistente parideira”, Quitéria .

Ou a fazer o retrato da Pinta mulher que era a voz da Vila. A calcorrear durante mais de cinquenta anos a duna, de canastra à cabeça, sarcoteando a bacia num ritmo bailarino, esfalfando-se a trazer peixe  para fartar a fome dos ricos, Por um triz que não pariu os filhos andando sempre ,mesmo com a barriga à boca, a subir o seu calvário. 

(....)

Temos insistido que é mais do que tempo de Ílhavo lhe prestar condigna e assinalável homenagem.

                        – Ao jovem entusiasta que animou o despontar da comunicação escrita ilhavense, preenchendo laudas de incentivo cultural no jornal “ Beira-Mar”, de que foi dos mais activos colaboradores.. 

                              –Ao médico que sempre se mostrou disponível quando solicitado; ao humanista insatisfeito com o ser, só e apenas, um seguidor do corpus escrito por  Hipócrates, e por tal invite se foi sentar ,de novo, ainda que tarde, nos bancos da Universidade para se licenciar em Histórico-Filosóficas .

                                – Ao Deputado da Assembleia da República (III e IV legislaturas), cabeça de lista distrital (Aveiro),deixou rasto de sagaz critico do momento político,  construtor de amizades(mesmo com  adversários (?) de outras bancadas), tratando todos  com  afabilidade, lealdade mesmo quando discordantes. A política para Frederico de Moura não era uma guerra entre opositores, mas uma oportunidade para debate de ideias.

Não sei porque tarda tal dever. Certamente fruto de ignorância do perfil humano  daquele que,  como Torga  afirma, foi capaz de dirigir uma Delegacia de Saúde ou um Museu, com a mesma proficiência com que foi um  catador do passado e um excelente cronista do presente.

Ignorância de caciques opíparos que, Frederico de Moura ,um dia catalogou: 

 “há séculos que estes batráquios barrigudos lhe utilizam a inocência como degrau para a porta do Município onde pretendem assentar o posterior  na cadeira presidencial.... a exornarem o coronal com o penacho farfalhudo (....) com  o seu coaxar monocórdico a encantar o resto da fauna (....) com o acriticismo das palavras ,a ingenuidade confiada”.


Senos da Fonseca


domingo, março 24, 2024

 


Aveiro tem na Praça do Município .exposta uma série de painéis num tributo a  Mário Sacramento.Curvo-me reverenciado pela ideia no mundo cultural aveirense,hoje pobre e orfão.

Tenho dó do esquecimento a que sem votado,em Ílhavo, sua terra natal ,  o  filho Mário , quase tudo fazendo-ou não fazendo!...–  por o esquecer rapidamente ,depois dos esbirros fascitóides do tempo, tentarem  negar-Lhe o nome a uma das pricipais artérias da cidade.Ainda há uns tantos que não engoliram a derrota.

Seria bom que no final da exposição em Aveiro,esses mesmos expositores fossem– por exemplo colocados na praça do municipio,vulgo jardim das ervas– e ali ,acolitada por diversas iniciativas  culturais,  trouxessem Mário Sacramento ao conhecimento das gerações mais novas.

Faço votos.....mas...

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Hoje deixo aqui  um rápido olhar sobre Mário Sacramento.O meu tributo,a quem por palavras,lições,e exemplo, muito devo .

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MÁRIO SACRAMENTO –

um «Ílhavo» de eleição,no séc.xx 





Mário Sacramento  nasceu em Ílhavo, em 7 de Julho de 1920,na casa da sua família,ali ao Largo do Oitão .

Filho de Artur Sacramento,comissário de bordo na Marinha Mercante ,homem muito culto, possuidor de um grande carácter e sentido de vida, figura altruísta e solidária – será um dos primeiros Comandantes dos Bombeiros Voluntários de Ílhavo - e de Rita Sarmento , cuja família vinha de pesado tributo pago nas lutas Liberais.Enforcados que foram dois dos seus  tios ,em Aveiro, pela camarilha absolutista .O convívio desta família materna, muito próximo de  figuras proeminentes nas lutas por uma nova ordem de liberdade, igualdade e fraternidade (que  tinham ido beber à Revolução Francesa), e de onde se destaca o tribuno José Estêvão (cuja esposa era madrinha de D Rita Sarmento) teria tido certamente influência no jovem Mário que habitualmente passava grandes temporadas em casa da família materna, como ele mesmo  recorda no seu « Ave Aveiro »:

 “Sob os lampiões dos Arcos, Rua dos Mercadores abaixo, vogavam bateiras conduzindo os teus íncolas (ia a dizer os teus doges) às soleiras das portas. E eu batia palmas de menino com brinquedo, na janela da avó. Casa escura, com mofo a rato, olhares do José Estêvão no louceiro antigo, um opúsculo do Marques Gomes a dizer-me que um tio de antanho fora decapitado pelo D. Miguel, grades de pimpons nas sacadas de pedra antiga — em que um dia entalei a cabeça (para retomar essa tradição, quem sabe?), tendo sido liberto, depois de muito suor e ferros, por um serralheiro do Mindelo”..

Desde miúdo Mário Sacramento atira-se à bem recheada biblioteca que, seu pai , metódica e permanentemente  organiza e enriquece,  embrenhando-se em autêntica sofreguidão na  leitura de livros que lhe irão conferir, uma notável e precoce  cultura,.Muito direccionada para teses vanguardistas, especialmente no campo humanista. Esta precoce aptidão é, desde muito cedo,  reconhecida e valorizada pelos  mestres com quem contacta , seja na Escola primária onde o prof. Guilhermino Ramalheira  lhe atribuiu o primeiro lugar de todos os alunos que lhe passaram pela mão na sua longa  carreira docente,quer  por José Tavares e Agostinho da Silva, que, reparando - deslumbrados! - no jovem Sacramento e no jornal que edita sozinho -“O Furão”- ,logo o convidam -tinha ele imberbes catorze anos – para Director do Jornal do Liceu de Aveiro –A Voz Académica –,onde vai ter como principal colaboradora aquela que, seria mais tarde a sua mulher ,companheira de uma vida,a escritora  – Cecília Sacramento .

Mário Sacramento aprende, autodidacta, o Esperanto ,língua com que então se sonhava vir a ser,língua  Universal:- “um só povo ,uma só língua “;  jovem ainda, logo em Ílhavo, cria, na AHBVI , uma turma aberta para divulgação da mesma que, acreditava , seria a antecâmara para a união dos povos sob o fim último das teorias marxistas da igualdade –de direitos e  oportunidades que, já então, lhe despertavam a atenção e o empenho. 

Desde cedo em M.S. se descortina um  ousado interveniente de elevada capacidade reflexiva – hiperlucidez (?!)- ,vertida em inflamados discursos ,conferências e tertúlias académicas – em  tudo que servisse de veiculo a uma divulgação pedagógica que lhe era particularmente inata - em que fazia, intensa e assumida propaganda de ideias  esquerdista de que então, o Jornal «Diabo», era, a mais destacada Tribuna Nacional.

Em 1938 (dez de Junho) a PIDE prende-o pela primeira vez, ao mesmo tempo que proíbe a publicação e circulação da revista «A Voz Académica» .Tinha, tão só, dezoito anos.! Mas a prática, o empenho e aceitação das teses vertidas tão precocemente, começavam a ser perigosas –já! - e a importunar de um modo célere e preocupante  o regime Salazarista que, antevia com perspicácia - diga-se - ali se encontrar um potencial e vertido subversor do regime fascista .    

Contrariado na sua vocação pelos pais, que o não deixam seguir letras, Mário Sacramento vai estudar Medicina  para Coimbra,e completar depois em Lisboa (1946), o curso. Tempo para aderir ao M.U.D  juvenil, movimento de unidade  cujo fim era o derrube do regime Fascista ,O que  irá  levar a  P.I.D.E  a intensificar a vigilância , seguindo com redobrada atenção  todos os seus passos,pronta ao menor sinal  a decapitar  este empenho que sente provindo de um ideário  profundamente interiorizado e assumido que,  se mostrava imparável na acção  em busca de novos valores da liberdade. Liberdade de acção,de expressão, de reunião e associação,fundamentais para os cidadãos portugueses exercerem os seus direitos de cidadania, em pleno.

 A sua vocação para a escrita salienta-se em 1945,quando apresenta nos Jogos Florais da Universidade de Coimbra o livro «Eça de Queiroz –Uma Estética de Ironia»  ,distinguido desde logo com o  prémio Oliveira Martins .Neste trabalho, Mário Sacramento  segue o percurso de Eça, (autor a que o ligavam afectos familiares próximos e exultação pelo   exemplo do avô daquele ,o Conselheiro Queiroz ,que, em 1828 ,levantara o povo de Aveiro pela afirmação suprema  da Liberdade ) ,procurando dilucidar sobre  a influência que, em Eça,  teria tido a vivência de Coimbra –cadinho onde se fundiam ideologias e novos rumos do pensamento– e assim, descobrir o genial escritor realista, “impressionado execravelmente com o que encontra em Lisboa” ; o realismo com que Eça combate o romantismo acomodado de Camilo, e em que Mário Sacramento vê “o resgate do séc XIX”, ao servir os propósitos da revolução das mentes e dos espíritos - a sua evolução ,os caminhos ,as mutações no pensar – tudo é dissecado por M.S. que ,insiste na necessária ligação entre a arte escrita e a acção (pensaria já então na corrente neo-realista?).E que nos vai descobrir o momento  exacto em que Eça (na carta a Carlos Mayer) ,parece “pegar pela primeira vez na pena para escrever genuinamente com ironia “. A mesma «ironia» que seguirá Mário Sacramento vida fora “como arma de arremesso” para denunciar a opressão e lhe resistir ferozmente. Hoje ainda,a análise critica de Mário Sacramento ao autor de «Os Maias», emparceira com o que de melhor e mais válido se fez ,em profundidade e exegese, ao escritor realista, entre a «arte de combate e arte revolucionária» ao  concluir  que “uma sociedade sobre estas falsas bases não está na verdade ; atacá-la é um dever “

 Terminado o curso,  M.S. vem exercer a profissão para Ílhavo - onde de imediato tem casos clínicos notáveis que o fazem sobressair da mediania instalada – abrindo consultório na  Rua José Estêvão onde passa a viver com a família. Local que  vai servir de ponto de reunião a políticos do contra,  reviralhistas e ou revolucionários  –  por isso sempre atentamente debaixo dos olhares  da PIDE –, mas  local de atendimento para os mais necessitados que, graciosamente – e  tantas vezes ainda reconfortados com alguns tostões no bolso para a compra dos medicamentos –,dali saíam  agradecidos, reconstituídos , física e tantas vezes materialmente .Que, por  vias disso, o  irão glorificar ao atribuir-lhe   o epíteto  de «Médico dos Pobres» ,como passa a ser conhecido, em Ílhavo. Mário Sacramento rejeita definitivamente todos os laços de pequeno burguês -grupo social de onde proviera - que deixará , clara , definitivamente e assumidamente para trás  ..1953, leva-o de novo aos calabouços políticos ,onde nos lúgubres interiores irá sofrer as  sevícias da tortura do sono ,ou do plantão em «estátua» .Responde às agressões enviando à família,escritos cheios de ironia  sabendo de antemão  que a primeira leitura dos ditos será dos esbirros .E assim os aguilhoa. Resiste,física, anímica e ironicamente ,desesperando-os, bandarilhando-os ,como se faz a besta cega . Os «Contos» que, da prisão, dedica e envia aos filhos,  fá-los acompanhar de desenhos onde exprime uma sensibilidade artística,de certo modo apreciável,  por onde faz perpassar tenebrosas figuras de vilões, sujeitos a final da história adequado ao fim pedagógico que pretendia atingir, mas servindo de recado para tal molesta  embófia que, era obrigada a lê-los, na sua idiota missão controleira. E na cela, apesar de lhe  chegarem a negar a simples consulta de livros ,elabora  um trabalho intitulado «Fernando Pessoa -Poeta da Hora  Absurda » que será publicado, em 1958. Um trabalho de que, mais tarde, disse, gostaria de refazer ,dadas as condições em que foi elaborado. Nele leva-nos à descoberta da essência comum entre o poeta e os heterónimos – embora, assuma serem individualidades diferentes,e a sua concepção geral da vida :– um beco sem saída ! Onde Reis  procura não se lembrar de que o beco pode não ter  saída ; onde Caeiro até acha desnecessário saber se a há… ou não ;e onde Campos é o único a procurá-la :-  não pela saída, e o que isso  significará ,mas ,apenas e só,  pela procura.

Põe-nos perante o  logro que, embora  “reconhecido logo se aceita” ,pois  considera os ditos “ não como autores ,mas como Pessoa escreveu a Campos, a Caeiro ,e ou a Reis”.

O «tempo de Pessoa» –a hora absurda !- ,o cume do génio que nele existia, só poderia ser alcançado se, “absurdamente, se invertesse ou alterasse o conceito de génio”,pois, diz-nos, “no génio não pode haver Ironia”

Entretanto a  actividade profissional segue os seu desenrolar por vezes  recheada de algumas desilusões –patéticas e angustiantes. Parte  delas, –boa parcela, provinda da atitude corporativa dos colegas, mas e também, consequência  dos hiatos a que os seus doentes se vêm constrangidos, dadas as ausências assíduas,consequência  das prisões que sobre ele sucessivamente se consumam.

Em Ílhavo, os «próceres» locais impedem-no de trabalhar na Misericórdia, tentando coarctar-lhe a carreira profissional. As denúncias de colegas e as maledicências empurram-no para o exercício médico em Aveiro (1955) ,onde se  irá  estabelecer em consultório aberto, mesmo em frente do café Trianon ,local onde  diariamente reúne com a sua tertúlia politico-literária, sob o olhar e ouvidos atentos dos esbirros obtusos e palúrdios  da policia politica do regime que, ávidos de presas, vigiam de perto o grupo nas mesas contíguas .Sem por vezes se darem conta de que são identificados e, por isso, mimoseados com a vulgata  comum, da maledicência e brejeirice .O que não impede de nesse ano ,em 1955, voltar – por duas vezes -  a ser levado para a António Maria Cardoso. O então inspector chefe dos esbirros pidescos, o grotesco Sachetti cujas origens se situam em Aveiro, sabe do perigo que representa Mário Sacramento e ordena a sua vigília dia e de noite, atribuindo-lhe uma perigosidade preocupante para o regime , porquanto  Mário Sacramento, ao mesmo tempo em que se assume intelectual da mais fina água,embrenha-se numa tenaz  acção politica, de uma maneira entusiasta, pedagógica,incitadora e aglutinadora, que preocupava o açulado e empertigado bufo .

Isso não  impedirá  M.S.de  ser o obreiro que torna possível, em 1957, o Iº Congresso Republicano ,e de que foi o Secretário Geral.

Em 1959 publica «Ensaios de Domingo», e inicia com Óscar Lopes -intelectual de quem ideologicamente se manterá muito perto – uma colaboração literária no jornal «O Comércio do Porto».

Em 1961,como bolseiro do Estado Francês, vai para Paris ,onde no Hospital de St. Antoine tira a especialidade de gastro-enterologia , apesar de gravemente doente, pois que, durante a estadia – por deficiência alimentar e ou excesso de labor – contrai a tuberculose .Por ousada ironia, uma das doenças que, com mestria, soube combater nos seus primeiros anos de prática  clínica, em Ílhavo.

Regressa em 1962 , para  voltar a ser preso, ainda ,nesse ano .

Em 1966 assume-se crítico literário, colaborando no caderno de Literatura do «Diário de Lisboa» ,e também, na revista «Seara Nova». Nesta colaboração destaca-se o debate sobre a procura de uma «Estética neo Realista» ,e a inventariação dos autores nacionais que a perseguem; era importante para Mário Sacramento, encontrar nas diversas propostas artísticas –poesia ,teatro , na novela , no romance ,na literatura, juvenil e ou  feminina, ou outras formas de expressão da arte – um retrato das preocupações sociais ,um conflituar com a realidade , um assumir objectivo de uma vivência “ideo-sensivel” na posição social  dos autores na neo – revolução (que teria de ser inevitável).

E será, em 1967, que publicará  «Fernando Namora  -A Obra e o Homem» logo seguido de «Há uma Estética de Ironia?»,em 1968.

Perscrutando no percurso do escritor Namora em  via sacra pelo mundo rural, no exercício da profissão de médico,Mário Sacramento vai explicar a evolução criadora de Namora nas deambulações sociais do autor até chegar ao estádio de autor neo-realista .

Como critico - e porque a crítica ao contrário da história é do que é ,e não do que foi – M.S tem de se integrar com o  tempo e de se assumir com o momento histórico em que vive. E fê-lo em todas as vertentes e sentidos,e por isso ,talvez vivendo-os como se lhe impunha,mais do que escrevê-los como desejaria. Mário Sacramento foi,isso mesmo, um autor do neo-realismo, “fiel a um humanismo concreto” ,em que  dilacerou uma vida.

O Concilio Vaticano II com  as suas conclusões e indicações  que, pareciam definir uma evolução no pensamento da Igreja ,mais aberto e mais preocupado,mais suportável para o ateu assumido, levaram Mário Sacramento a procurar nas páginas do  jornal «O Litoral»,interlocutores para com eles estabelecer um diálogo com o «credo», numa  procura de pontos e empenhamento comuns .A pesar de tudo; artigos que, mais tarde –já depois da sua morte, em 1971 -, seriam  reunidos em volume publicado sob o titulo «Frátia –Diálogo com os Católicos ». 

Morre em 1969, nas vésperas do 2º Congresso Republicano de que, uma vez mais, foi o principal obreiro –o fogo que ateou a labareda no requerimento, ainda por ele redigido– e que se viria a realizar sob o patrocínio do seu espírito que ,do primeiro ao ultimo instante pairou   no «Teatro Aveirense»,onde teve lugar .

Salazar, é certo, estava moribundo, politicamente morto.Mário Sacramento já não veria a queda do regime para a qual tinha sido um dos mais férreos contribuintes, um dos  mais entusiastas e dos mais lúcidos combatentes que, infatigável e persistentemente ousou lutar contra tudo quanto de retrógrado representava e continha , o caduco salazarismo fascista .   

Mário Sacramento adivinhou na sua «Carta Testamento», redigida em Abril de 1957 ,onde  lúcida e certeiramente  faz uma premonição rigorosa do tempo  sobrante que,  certamente lhe iria  faltar, para ver a queda do regime salazarento.

Não viu o que quis ;mas quis o que viu “ disse-nos nessa missiva em que ,dum modo terno mas incisivo , nos lança um aviso:

“Façam um Mundo melhor ! Não me façam voltar cá”   

   


Senos da Fonseca

    2006


NB – Estas notas foram extraídas da Palestra realizada em  1970 no Illiabum Clube ,na evocação de Mário Sacramento.




quarta-feira, março 20, 2024

 



Sou avesso a estados de alma aonde a solidão navegue. Mudo facilmente de rumo, a trocar-lhe as voltas.


Mas há dias-


Num destes dias, desta semana, era hora sobrante para fechar a portada. Abri a porta, e deparei com  aquela chuva de lágrimas fortes, intensa ,mas não de cântaros. Derrame queixumento  vindo lá do alto, que me encanta.   Nunca na vida usei guarda chuva; nem nunca me apressei para dela fugir,

Um dia pus em discussão, na Faculdade, a seguinte questão: se um individuo correr á chuva,  molha-se  mais -ou menos –, do que  quando percorrer a mesma distância, paulatinamente? A discussão durou horas, com cálculos pelo meio, e até Einstein veio dar ajuda .

 Aqui chegados, é um facto: gosto de apanhar a chuva de «caras, de frente». Como a vida: pegá-la pelos cornos.

Ora olhando lá para  «os sules», notei uma noite escurecida pela bruma. Mas, em contraste, e como habitual neste micro clima que metro a metro se transforma, a noite era brilhante em frente do meu terraço. E eu juro que distingui na ria, seis vénus vestidas de um branco num cantar belo e repousado, uma espécie de silêncio frouxo, ondulado, carregado de virginais convites.

O choro grosso vindo lá das alturas, à falta de vento, parecia querer repousar nas agulhas do pinheiro, aqui debruçado, a pedir licença para pernoita ..O pinheiro solitário, iluminado pela luz vinda da rua, deixava ver um verde esplendoroso na ramagem. As gotículas gravitavam nas agulhas inclinadas, e iam caindo a chorar de novo, pingo a pingo,lentamente. Luzes brilhantes, minúsculas, que se iam apagando e  acendendo, numa harmonia silenciosa..

A ria parecia eriçada, irritada pelos bagos de chuva que a adoçavam. A ria não gosta de ser doce. O eriçamento  quebrava a monotonia de uma noite muito calma, despida de vento, que pronunciava a tareia que lá viria. O vento  amortalhado ao largo, deixava claramente ver o  quadro impressivo das casinhas brancas da Maluca, aqui e ali salpicados de pontilhados provindos da iluminação ribeirinha, amarelada, a ver-se ao espelho da ria. Esvaindo-se…nuns requebros de turbulência calma.

Nno meu fato de noite (calções  e camisolinha de nanar), estonteado, pregado á natureza, o cérebro em paixão renovada ,interrogava-se :que raio de silêncio é este que me acaricia e me faz sonhar, que cheira a urze fresca e me sabe a suspiro?. Pensando que, se «a caprichosa» natureza  me arrasta para o irreversível fim, mitiga-me   a dor de me lamentar, ao deixar-me, ainda, saborear a sua portentosa beleza. A ponto, talvez(!), de ter dor de não ter «dor», esquecido do resto que ai vem.

E de repente estremeci; pareceu-me que uma mão que sempre conheci, me convidava.

-Anda….

E eu fui…«podão« que sempre fui nos volteios da dança, não neguei, «Ela» sempre me soube dar o jeito para percorrer as alamedas do salão, dando  ritmo ao meu corpo tosco. E quando assim era, todos os meus sonhos pareciam de vermelho vivo, aveludado. Irreais. Cisne, borboleta, milhafre…tudo eu queria ser.

Senti uma frescura maravilhosa inundar-me de vida. E a ria nesta noite, era uma imensa avenida luminosa que «percorríamos» enlaçados, rodeados pelas vénus que nos salpicavam de flores. Uma maravilhosa cascata de gotículas cristalinas, brilhantes, a impedir o eco dos nossos corpos nos espelhos que nos cercavam. E vogámos pala ria, entre beijos, até á ilha dos «desejos»…

E então percebi que para matar a solidão não é preciso procurar as estrelas, nem a lua, nem o azul. Na esplendorosa negrura da noite vi todos as minhas recordações plasmadas.     

-Voltas? ……

-Sim na noite …da «noite».

Sou um velho ainda menino, ainda a gosta de brincar, com a ternura do silêncio apetecido.

Solidão: enquanto souber sonhar, não te vendo  a alma…..


SF


sábado, março 16, 2024


 




          Os nós da vida...... 

INQUIETUDE...


A VIDA COMO ELA É ... 

Neste cantinho recomendado que, a natureza prodigalizou, e que a exsudação (sofrida) do homem foi capaz de retocar, sinto-me, apesar de tudo, contente comigo mesmo. 
É isso. Não tenho feitio nem género, nem jeito, de poeta silingórnio, à espera que aceitem as minhas queixas. Sonhando - e só - com o belo, porque incapaz de o viver, ou até de o tentar construir, cá vou indo. 
Não simbolicamente nas palavras para os outros, mas, de facto, para meu gozo pessoal. Egoísta ?!...- talvez, se assim o quiserem. 
Não saber - até ao fim ! - se sou o que pareço, ou, tão só- e mais importante - se sou de facto o que queria ter sido. Nada de complexo, nem em «complexos» estados de alma. Sou claramente - e só (!) - um inquieto. 
E mais nada. 
Não culpo a vida por não ter sido a que queria que fosse. Porque a vida não tem culpa de eu não ter sido capaz de ser diferente ; e porque, ser pouco ou muito, não é importante. Importante é ser verdadeiro : - comigo e com os outros. 
Se eu tivesse a possibilidade de tirar um bilhete para qualquer parte, para aí ser diferente do que sou aqui, queria mesmo era «vir» para aqui,e ser o que sou. E não para outro lado. 
O que posso dizer é que a minha «estória» está cheia de vida que quis ser vivida desta maneira. Sem concessões, mas sem demasiadas queixas. 
Sempre que fui atingido não me preocupei demasiado em me interpretar. Bastou-me saber que outros - muitos outros, milhões (!), uma imensidade - são, dia a dia, hora a hora, muito mais profunda e ingratamente atingidos. O que foi (sempre) suficiente para me estimular a sobreviver, e a não me queixar. Que gozo dariam «aos outros», os meus queixumes?... 
Não subsisti nulo ; de modo nenhum. Dessa postura me pretendo liberto. 
Eliminei a fé para dar espaço à razão ; tarefa que não sendo fácil, nem cómoda, é contudo mais verdadeira. 
Não tenho sonhos fantasmagóricos, porque (con)vivo bem com os meus fantasmas. Que não são complexos. Porventura «reais», demasiadamente reais para me meterem (muito) medo. 
Tudo o que sei, aprendi-o. Não o herdei por programação externa, vinda de onde viesse, ou porque via arribasse. 
Sou por isso, impulsivo, violento às vezes, mas só com a barbárie dos profetas. 
Doce (?), poucas, é certo. Nobre sempre, vil nunca. Amigo fácil. Inimigo difícil. 
Tudo me interessa ; mas nem de tudo fico escravo. Ou de quase nada. 
Salvo da amizade. 
(Senos da Fonseca) 


  67.   Poemas de Abril Abril: síntese inalcançável Já não há palavras  Que floresçam Abril,  Nem já há lágrima...