A Biografia de Mário Sacramento:
«Sementes de Liberdade».
Foi-me hoje proporcionado, finalmente, contactar com a biografia de Mário Sacramento, recolhida por Eunice Malaquias Voulliet, num trabalho que já tinha vindo parar às minhas mãos, vai para quatro anos, numa tentativa de se saber onde recolher os meios para uma edição livreira.
Conheço pois o trabalho da Dr.ª Eunice.Muito metódico, interpretando o intelectual e o activista, síntese que quase retrata duma «penada» o que Mário Sacramento quis ser : intelectual e preferencialmente escritor.E nestes, para estar correcto com a praxis do neo-realismo que definiu como expressão artística que pressupõe (….) o materialismo dialéctico – interventor no desenho de um neo-humanismo. Para tal o intelectual deveria ter participação - intervenção que conduzisse ao mesmo. O escritor,produtor de arte,não se deveria preocupar, só e apenas com a escrita, mas concretizar ideologia pelo estar.
Creio que Eunice Malaquias observa bem o percurso de Mário Sacramento. E regista, embora sem interpretar ou lançar uma pista, para o conflito que MS afirma ter tido com «a família» quando esta o desvia do curso de Letras para a carreira médica. Tenho pensado muito neste ponto. Não encontro outra razão para o explicar, que não a sensatez de Artur Sacramento (Pai), que sabia perfeitamente quem tinha em casa. Deixar o filho seguir uma carreira que o atirasse, definitiva e irremediavelmente para uma carreira de intelectual contestário, não era precisamente o que Artur Sacramento( um Comissário de bordo benquisto, em contacto com muitos e diferentes grupos sociais) pretenderia para um filho que desde cedo, logo na Escola Primária, se tinha distinguido como um sobredotado aluno. De quem mestres como Guilhermino Ramalheira, afirmavam, ter sido o mais notável e criativo aluno que lhes passara pelas mãos.
Assim MS é empurrado (pela família) para a carreira médica, que materialmente permitiria o desafogo para outras aventuras – talvez o pensasse o precavido Pai. E claro, mesmo nessa contrariada actividade, MS distinguiu-se, afirmando-se nela em duas facetas: um médico que pouco se lembrava de apresentar contas(de todo não apresentava, aos mais necessitadose um «Vesalio» de valor firmado).
Claro que a sua fixação na Província o afastou das tertúlias (Lisboa principalmente) que só com dificuldade conseguia, esporadicamente, frequentar.E onde cedo fora acolhido. Primeiro com uma certa desconfiança dadas algumas posições polémicas assumidas pelo jovem crítico: - caso da estética de ironia de Eça, ou a análise que nunca o satisfaria de Fernando Pessoa --uma poesia verídica num mundo sem verdade !, ou ainda a sua não total comunhão com a estética da escrita do colega Namora – fugindo ao itinerário ideológico, para só ficar no literário.Certo é que depressa se iria impor entre os seus pares com a colaboração regular no Diário de Lisboa.
Mas o viver provinciano não o disporia para uma inactividade contra o bafiento regime Salazarista: – 40 anos de salazartimanha, de salazarfar, de salazartrose, como diz. Aprendeu, jovem, o anátema do regime e confrontou-o como poucos. Pagou caro a obstinação no seu derrube, assistindo ao folhetim da «cadeira benfeitora», que fez mais para o fim do ditador que toda a oposição. Mas não viu o fim do regime.
Quando me defrontei com a morte de MS – que dois ou três dias antes, a mim e ao Artur,em sua casa me explanara a hipótese do fim eminente, trazendo á colação a possivel repetição do caso de sua mãe – surpreendi-me com o facto de a nossa diferença de idades (19 anos), não ter reflexo no aspecto prematuramente velho com que sempre o tinha imaginado nas inúmeras vezes em que com ele convivi (nos grupos do «reviralho» em que participavam meus pais). Descrevo esses tempos noutro local. Influenciou-me muito MS. A ele devo um incitamento para a descoberta do materialismo (dialéctico e científico) que muitas vezes me explicou com detalhe.
Pouco depois da sua morte (1970), e num período de grande debilidade, não pude negar o apelo de Cecília Sacramento para uma palestra no Illiabum Clube de evocação do seu nome. Nos limites de saúde para o fazer, havia, contudo, uma necessidade imperiosa de pôr fim a uma movimentação que procurava «achincalhar» a dimensão da sua figura. Mesmo na cama, em convalescença, atirei-me ao trabalho, e no dia marcado, mesmo suando as estopinhas, lá estive. Não enjeito nada do que então disse. Antes bem pelo contrário. E creio que foi mesmo a primeira acção desse tipo. Refiro-o no site
http://www.senosfonseca.com/
Mais tarde lutei bravamente, a meu modo, para perpetuar o seu nome em Ílhavo, pormenor que esta Biografia, como constatei na pag. 265,parece desconhecer!.Foi uma luta desarcada, assanhada. Mas bonita e com resultados.
Foi contudo muito pouco. A dimensão deste «Ilhavense» terá muitas outras oportunidades para ser celebrada com o andar dos tempos. Estou certo.
Mário Sacramento dizia-se ensaísta porque desde miúdo via passar os músicos da banda para o «ensaio»,fazendo da arte uma devoção.
A devoção de MS era arte da Liberdade.
MS usou sempre, mesmo nos momentos amargos, a ironia como a arte de «fingir sem fingimento».
Saúdo o livro. Saúdo a autora. Fez com mestria, o que eu, sinceramente ensaiei, não convictamente(!)
,é certo, por diversas vezes. À falta de fôlego para tal monta.
E parafraseando MS, eu por meu lado tentei cumprir e «fazer um mundo melhor».Só que estes tipos não deixam. Mas lançar sementes de Liberdade à terra, é tarefa de renovo continuo.Obrigatório.
SF