POSTAL DA CASA DO BICO nº5
A Tragédia de Juncal Ancho
E de repente o tempo chuvoso, como
por encanto, suspendeu o incómodo do molha tolos. Molha tolos porque na Costa
Nova, mesmo com este tempo, noutros lugares, desabrido, aqui,numa sota,
salta-se logo para a rua. E claro, de vez em quando somos surpreendidos por uma
garroa.
Saí para o esticar de pernas, diário,sabendo que,mais ali ou mais abaixo encontraria a Zefa e a Tiberia.Nà elas não eram
mulheres de hibernar com um simples ameaço.
E lá vinham:
- esta melhoria de tempo veio
para ficar ou não ,minhas gentes? inquisilei
eu.
- O tempo é como o marinheiro. Nunca
se sabe se veio para ficar se para saltar amanhã para nova emposta, reflecte a
Tibéria.Pois, isso mesmo.Muito arrazoàvel.
Era por isso que quando o meu Toino achegava,eu não o fazia esperar, não fosse o
mar chamá-lo à pressa. E ainda ele não tinha apoisado o saco,e já eu o
beliscava, espenicando-o todo,pronta para lhe tirar o «sarro» dos dias de lide, e
achapar-nos ao folhelho : à home que ando com uma fome de ti; anda cá meu bardáu, que te astrafego. E nem o deixava respirar ,tal era a força do abraço.Até parecia,
mesmo, uma bárrega esgalmida .
-Delambida de um raio q'intè pracias uma santinha….
-Olhe Ti Zefa,comecei eu,tenho
andado a pensar: Vossemecês alembram-se da tragédia de Juncal Ancho?
-AH ….olhe que não.Isso foi,sei
lá; há que benícias .Eu só ouvi contar,
era ainda muito novita. O Ti Gaivotinha,
esse sim .Esse até p’rece que era um dos embarcados numa das «ílhavas» que levaram o
pessoal à festa. Você conhece a história ?, acrescenta…
-Olhe que por acaso conheço, lia-a,e também ouvi nos Sete Carris, à Ti Tuna, referi-la várias vezes.E como a pretendo
contar com mais pormenores,pensei que Vocemecês me ajudassem.
-Atão hoje é você que fia fino e
faz a despesa da conversa. Maneie-se que
nós atracamos aqui ao murete.
Então aqui vai:
Os «ílhavos» eram gente de grande
fervor religioso, como sempre aconteceu com comunidades piscatórias.Mais
tementes aos santos que à aspereza da natureza que defrontavam.
Não havia orago celebrado pela
borda da ria que não motivasse dia de
folga das lides, e não impusesse uma ida de bateira, com a família e vizinhos, para
cumprimento das promessas que amiúde se faziam – que aquela vida era um «cão». Ao mesmo tempo aproveitava-se o folguedo para convívio,ou para pôr em
dia atrasado conversalhar com conhecidos de fora, em trautos feitos, vulgarmente, por entre o
escorropichar de uns copos de vinho batidos, de balcão em balcão, por entre as
vendas do sítio.
De entre os oragos de reconhecido
mérito - que festa de arromba elegia e glorificava - o S. Inácio do Bóco, assumia
carácter de invulgar dimensão. A justificar reiterada devoção e consequente
visita. O seu altar encontrava-se erecto em Igreja,lá em cima debruçada sobre a ria, sita na colina que
alberga no cocuruto o burgo. Logo ali ao dobrar da carreira da barca da «Forja» - Fareja –
onde em tempos idos, ali fundearam as barcas e pinaças de alto bordo que vinham mercadejar às Gândaras.Era visita obrigatória.
Num dos esconsos becos da chousa
de Alqueidão, por onde se alinhavam tugúrios
de abrigo a pescadores,marnotos e saveiros,os dias que antecederam a
festa foram de intenso parlatório,destinado a assumir presença. Mas e também, perlengando sobre
as vitualhas a incluir no farnel ,que
se queria, coisa de regalo .
Chegado o dia, o « Zé da Preta» mai-lo «Thomé da Fidalgota»,embarcaram amigos e familiares na «chinchas»
desocupadas e escorreitas de tralhas e estrafegos, onde se aconchegaram vinte e duas almas devotas. Ainda o sol não despontava,
desgarraram do cais da malhada aproveitando para isso a maré que já montava. Partiram
alegres, folgazões e prazenteiros , para
uma grande jorna que parecia ser capaz de pôr ameno no estupôr de uma vida danada .O aquilão
dava boa mareação, e quando o dia amanheceu tinham já na amura de bombordo o
palácio dos Botelhos. A manhã acordava com
os maçaricos alvoroçados em matinas, em procura do primeiro alimento. O sol a levantar-se em hóstia de vermelhão
suave, prometia jorna
acalorada, deixando ver a serra
desempachada de névoa,limpa lá para cima,onde os montes luziam com o farfalho
da manhã lá para as serras. Para outras bandas, onde um outro santinho de especial devoção destas gentes ,o S.Geraldo, tem o seu pousio, na serra erma.
Vogavam enfarpelados a rigor, os
romeiros. De calção branco largueirão,
que se estendia até ao joelho encobrindo perna tisnada pelo sol e
maresia; barrete descaído sobre o dorso, e camisão de linho, aberto, que
deixava entrever o torso de gigantes da laguna .Elas de cara rija. Onde
fulguravam dois olhos em brasa, ardentes e brejeiros, engalanada por chapelinho
de veludo preso á nuca por lenço de merino,
garrido; chambre branco cingido ao colo que, pedinte de afago sensual, repontava nas pregas do camisa floreada. Saiote de baeta
descendo rente até aos artelhos, escondendo de olhos gulosos a visão
deslumbrante de duas prendadas
pernocas que vinham desafogar nas chinelinhas
pretas,cingidas aos pés de «gaivina andeira» por cordão de abotoadura. O calor a meio da viagem, fortalecido
pelo reflexo na água espelhada da laguna ,fazia com que o busto do mulherio se
esquivasse por entre o esconder das roupas de aconchego .E de entre rendas,
brotassem como pombas brancas aconchegadas em ninho,peitos que assomavam e tentavam o olhar de quem, guloseimando,
sonhava vê-los, tocar-lhe .Ou até só até aspirar o seu perfume e aconchego.
A aragem do norte cedo lhes
permitiu a demanda e o desembarque no cais do moliço ; sem delongas – que santos não esperam !- foi (logo)
tempo de desembarque e de monta. Por caminho directo se alcandorarem até à
Igreja que naqueles dias treluzia com
o seu chão lavado, ensaboado a amarelo, e depois brunido . Junto ao altar dois
tocheiros ardiam ajudando a quebrar a penumbra do templo a que só a porta dava
entrada à luz do dia;castiçais de latão do tipo mourisco substituam em
lindeza, que não em valor, a prata
afiançada.Só de pousio em outros templos de mais ricas alfaias. Nas paredes em
quadros de talha doce viam-se imagens penduradas de Stª Rosa e Stª Eulália, e
outras estampas catitas ou figuras de feições celestes. Prometendo bem-aventuranças
por entre copioso enfeite de lírios, jarros, mimosas, madalenas e alecrim. Ajoujados
em vasos de faiança local, que conferiam ao templo um doce e suave e lânguido
perfume celestial.
Hora de ouvir a santa missa. Desbravar
o terço benzido, deixar uma esmolna, e
cumprir o prometido .Satisfeita a
obrigação da fé, era tempo de lograr a sombra de uma oliveira - que o sol mordia a terra-, e
desempalmar o escabeche mai-las
solhas bem emparadas na molhenga. E os bolinhos de bacalhau, que iam assim
cumprindo, «o antes» .Até ao momento
de desenfardar o capão esplêndido: -cumpridos
que estavam com a dignidade de quem se sente talhado para o fim ultimo do
sacrifício, seis meses de cuidada engorda.E que, como «feito» da bem acerejada assadura, exibia um jalme a escodear sem demora, de cuja prática se soltava fragrância
divinal . O vinho em reponta de maré, corria caudaloso pelas gargantas ressequidas que dias de sóis
estivais, ou de noites de suão tórrido,
exsudavam estas gentes da laguna. O Bóco, situado nas faldas das bairradas era
sítio privilegiado de boa produção avinhada --fragrante e saborosa. E nesses
dias, aproveitava-se a visita para da mesma se fazer adequada publicitação.
Assim, não raro, excedia-se o que seria adequada emborcadura, para cedo se
atingirem limites de comportamento pouco adequados que, por norma, descambavam
em confrontos violentos –verbais e ou físicos -- pelos mais fúteis motivos.
Vista a procissão, feitas os
últimos escorropichos nos descansos dos tascos do sítio, por entre risos musicais saídos das rebecas
dos tocadores de ajuntamentos e anunciado lá para as bandas do mar o
lusco-fusco da noite estival que embora preguiçosa vinha chegando, e com ela
aragem frescota, era hora de partir. Levantaram-se
as velas que era hora de voltar à vila. Pois que ao outro dia, madrugada ainda
não acordada, ao primeiro trilo de
maçarico cantador, era hora de botar o botirão a coar.
Chegados lá para as bandas do
pinhal da água fria, o vento tornou-se instável, prenunciando doido
corropio que impedia a boa singradura a
norte;as mentes estavam toldadas demais para lhe encontrar o jeito bom para nele navegar. É então que numa
golfada rija, emborcada pelo través, que a «Preta» vai direito à
«Fidalgota» e lhe entra pelos cavername adentro, levando tudo á sua frente. Bica
da proa embatendo com violência na cabeça da Zefa, embarcada na «Fidalgota»,matando-a de imediato .
Foi o fim; gerou-se uma
encarniçada luta mais parecendo uma verdadeira abordagem de corso, com o
mulherio em vozearia espavorida ao ver
as naifas logo desembainhadas pelos seus homens, que ébrios do tinto e da odiosa vingança,
procuravam sitio e carne por onde se
espetarem.Uns, ainda dentro da embarcação , outros já na água aonde tinham
vindo parar após embate.Todos pareciam esquecidos do semelhante «amigo e
vizinho»,que se tinha, instantaneamente, transformado em figadal inimigo de
que só a morte permitiria livração.
Foi uma tarde ensombrada de
sangue. Vinte e uma vidas ficaram esventradas; umas dobrados sobre a amurada
escorrendo para a laguna enquanto esbracejavam nos estertores da morte. Outras boiando sobre as
águas da ria que desciam para o mar, acompanhadas pelas águas tintas de tanto
sangue esvaído.
Apenas um, de entre os romeiros
do Stº Inácio, lograria escapar com vida .
À noite, temendo vingança de
vizinho ou familiar, tomou lugar numa enviada que estava de partida para
Setúbal, e desse modo lá escapou a destino mais do que certo .
O desembargador ao outro dia logo
mandou uma patrulha para averiguação do desacato
No simples relatório que lhe
chegou às mãos, apenas constava:
“ Das
vinte e uma pessoas do foral de ílhavo(sic)desaparecidas , nada se sabe, senão
o terem-se ausentado para parte incerta”.
E assim se deu como (legalmente )
encerrado, e sem identificação de culpados,um dos piores acontecimentos de
sangue fratricida vertido por «ílhavos»
Quando acabei li emoção nos olhares das minhas companheiras
de conversa.
-Linda mas desalmada estória. Pois
:íamos a todas as festas da ria: Maluca, S.Paio, S.Jacinto .A todas onde
houvesse santinho milagreiro. Para lá ia-se a cantar. Alegres,anchas e vivas. Para
cá vínhamos moídas com o quebranto de tanta folia.
-Pois diz a Zefa. Parecíamos uma pégorra : para onde vais Maria (?) :p’rà festa!!!!!.De onde vens Maria (?): ao tiazinha,
venho de onde havia festa.
SF (Fev 2013)
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