terça-feira, fevereiro 26, 2013

POSTAL DA CASA DO BICO  nº5
                                                              

 

A Tragédia de Juncal Ancho
E de repente o tempo chuvoso, como por encanto, suspendeu o incómodo do molha tolos. Molha tolos porque na Costa Nova, mesmo com este tempo, noutros lugares, desabrido, aqui,numa sota, salta-se logo para a rua. E claro, de vez em quando somos surpreendidos por uma garroa.
Saí  para o esticar de pernas, diário,sabendo que,mais ali ou mais abaixo encontraria a Zefa e a Tiberia. elas não eram mulheres de hibernar com um simples ameaço.
E lá vinham:
-  esta melhoria de tempo veio para ficar ou não ,minhas gentes? inquisilei eu.
- O tempo é como o marinheiro. Nunca se sabe se veio para ficar se para saltar amanhã para nova emposta, reflecte a Tibéria.Pois, isso mesmo.Muito arrazoàvel.  Era por isso que quando o meu Toino  achegava,eu não o fazia esperar, não fosse o mar chamá-lo à pressa. E ainda ele não tinha apoisado  o saco,e já eu o beliscava, espenicando-o todo,pronta para lhe tirar o «sarro» dos dias de lide, e achapar-nos  ao folhelho : à home que ando com uma fome de ti; anda cá meu bardáu, que te astrafego. E nem o deixava respirar ,tal era a força do abraço.Até parecia, mesmo, uma bárrega esgalmida .
-Delambida de um raio q'intè pracias uma santinha….
-Olhe Ti Zefa,comecei eu,tenho andado a pensar: Vossemecês alembram-se da tragédia de Juncal Ancho?
-AH ….olhe que não.Isso foi,sei lá; há que benícias .Eu só ouvi contar, era ainda muito novita. O  Ti Gaivotinha, esse  sim .Esse até p’rece que era um dos embarcados numa das «ílhavas» que levaram o pessoal à festa. Você conhece a história ?, acrescenta…
-Olhe que por acaso conheço, lia-a,e também ouvi nos Sete Carris, à Ti Tuna,  referi-la várias vezes.E como a pretendo contar com mais pormenores,pensei que Vocemecês me ajudassem.
-Atão hoje é você que fia fino e faz a despesa da conversa. Maneie-se que nós atracamos aqui ao murete.
Então aqui vai:
 Os «ílhavos» eram gente de grande fervor religioso, como sempre aconteceu com comunidades piscatórias.Mais tementes aos santos que à aspereza da natureza que defrontavam.
Não havia orago celebrado pela borda da ria  que não motivasse dia de folga das lides, e não impusesse uma ida de bateira, com a família e vizinhos, para cumprimento das promessas que amiúde se faziam – que aquela vida era um «cão». Ao mesmo tempo aproveitava-se  o folguedo para convívio,ou para  pôr  em dia  atrasado conversalhar  com conhecidos de fora, em trautos feitos, vulgarmente, por entre o escorropichar de uns copos de vinho batidos, de balcão em balcão, por entre as vendas do sítio.
De entre os oragos de reconhecido mérito - que festa de arromba elegia e glorificava - o S. Inácio do Bóco, assumia carácter de invulgar dimensão. A justificar reiterada devoção e consequente visita. O seu altar encontrava-se erecto em Igreja,lá em cima  debruçada sobre a ria, sita na colina que alberga no cocuruto o burgo. Logo ali ao dobrar da carreira da barca da «Forja» -  Fareja –  onde em tempos idos, ali fundearam as barcas e pinaças de  alto bordo que vinham mercadejar às Gândaras.Era visita obrigatória.
Num dos esconsos becos da chousa de Alqueidão, por onde se alinhavam tugúrios  de abrigo a pescadores,marnotos e saveiros,os dias que antecederam a festa foram de intenso parlatório,destinado a assumir  presença. Mas e também, perlengando sobre as   vitualhas a incluir no farnel ,que se queria, coisa de regalo .
Chegado o dia, o « Zé da Preta» mai-lo «Thomé da Fidalgota»,embarcaram amigos e familiares na «chinchas» desocupadas e escorreitas de tralhas e estrafegos, onde se aconchegaram  vinte e duas almas  devotas. Ainda o sol não despontava, desgarraram do cais da malhada aproveitando para isso a maré que já montava. Partiram alegres, folgazões e prazenteiros , para  uma grande jorna que parecia ser capaz de pôr ameno no estupôr de uma vida danada .O aquilão dava boa mareação, e quando o dia amanheceu tinham já na amura de bombordo o palácio dos Botelhos. A manhã acordava com  os maçaricos alvoroçados em matinas,  em procura do primeiro alimento.  O sol a levantar-se em hóstia de  vermelhão  suave,  prometia jorna acalorada, deixando ver a serra desempachada de névoa,limpa lá para cima,onde os montes luziam com o farfalho da manhã lá para as serras. Para  outras  bandas, onde um outro santinho  de especial devoção destas gentes ,o  S.Geraldo,  tem o seu pousio, na serra erma. 
Vogavam enfarpelados a rigor, os romeiros. De calção branco largueirão,  que se estendia até ao joelho encobrindo perna tisnada pelo sol e maresia; barrete descaído sobre o dorso, e camisão de linho, aberto, que deixava entrever o torso de gigantes da laguna .Elas de cara rija. Onde fulguravam dois olhos em brasa, ardentes e brejeiros, engalanada por chapelinho de veludo preso á nuca por lenço de merino,  garrido; chambre branco cingido ao colo que, pedinte de afago sensual,  repontava  nas pregas do camisa floreada. Saiote de baeta descendo rente até aos artelhos, escondendo de olhos gulosos a visão deslumbrante  de duas prendadas pernocas  que vinham desafogar nas chinelinhas pretas,cingidas aos pés de «gaivina andeira» por cordão de abotoadura. O calor a meio da viagem, fortalecido pelo reflexo na água espelhada da laguna ,fazia com que o busto do mulherio se esquivasse por entre o esconder das roupas de aconchego .E de entre rendas, brotassem como pombas brancas aconchegadas em ninho,peitos que assomavam e tentavam o olhar  de quem, guloseimando,  sonhava vê-los, tocar-lhe .Ou até  só até aspirar o seu perfume e aconchego.  
A aragem do norte cedo lhes permitiu a demanda e o desembarque no cais do moliço ; sem delongas – que santos não esperam !- foi (logo) tempo de desembarque e de monta. Por caminho directo se alcandorarem até à Igreja que naqueles dias treluzia com o seu chão lavado, ensaboado a amarelo, e depois brunido . Junto ao altar dois tocheiros ardiam ajudando a quebrar a penumbra do templo a que só a porta dava entrada à luz do dia;castiçais de latão do tipo mourisco substituam em lindeza, que não em valor,  a prata afiançada.Só de pousio em outros templos de mais ricas alfaias. Nas paredes em quadros de talha doce viam-se imagens penduradas de Stª Rosa e Stª Eulália, e outras estampas catitas ou figuras de feições celestes. Prometendo bem-aventuranças por entre copioso enfeite de lírios, jarros, mimosas, madalenas e alecrim. Ajoujados em vasos de faiança local, que conferiam ao templo um doce e suave e lânguido perfume celestial.
Hora de ouvir a santa missa. Desbravar o terço benzido, deixar uma esmolna,  e cumprir o prometido .Satisfeita  a obrigação da fé, era tempo de lograr a sombra de  uma oliveira - que o sol mordia a terra-, e desempalmar o escabeche mai-las solhas bem emparadas na molhenga. E os bolinhos de bacalhau, que iam assim cumprindo, «o antes» .Até ao momento de desenfardar  o capão esplêndido: -cumpridos que estavam com a dignidade de quem se sente talhado para o fim ultimo do sacrifício, seis meses de cuidada engorda.E que, como «feito» da bem acerejada  assadura, exibia um jalme  a escodear sem demora, de cuja prática se soltava  fragrância  divinal . O vinho em reponta de maré, corria caudaloso  pelas gargantas ressequidas que dias de sóis estivais,  ou de noites de suão tórrido, exsudavam estas gentes da laguna. O Bóco, situado nas faldas das bairradas era sítio privilegiado de boa produção avinhada --fragrante e saborosa. E nesses dias, aproveitava-se a visita para da mesma se fazer adequada publicitação. Assim, não raro, excedia-se o que seria adequada emborcadura, para cedo se atingirem limites de comportamento pouco adequados que, por norma, descambavam em confrontos violentos –verbais e ou físicos -- pelos mais fúteis motivos.
Vista a procissão, feitas os últimos escorropichos  nos descansos dos tascos do sítio,  por entre risos musicais saídos das rebecas dos tocadores de ajuntamentos e anunciado lá para as bandas do mar o lusco-fusco da noite estival que embora preguiçosa vinha chegando, e com ela aragem frescota, era hora de partir. Levantaram-se as velas que era hora de voltar à vila. Pois que ao outro dia, madrugada ainda não acordada, ao primeiro  trilo de maçarico cantador, era hora de botar o botirão a coar.
Chegados lá para as bandas do pinhal da água fria, o vento tornou-se instável, prenunciando doido corropio  que impedia a boa singradura a norte;as mentes estavam toldadas demais para lhe encontrar o  jeito bom para nele navegar. É então que numa golfada rija, emborcada  pelo través, que a «Preta» vai direito à «Fidalgota» e lhe entra pelos cavername adentro, levando tudo á sua frente. Bica da proa embatendo com violência na cabeça da Zefa, embarcada na  «Fidalgota»,matando-a de imediato .
Foi o fim; gerou-se uma encarniçada luta mais parecendo uma verdadeira abordagem de corso, com o mulherio em vozearia espavorida  ao ver as naifas logo desembainhadas pelos seus homens, que  ébrios do tinto e da odiosa vingança, procuravam  sitio e carne por onde se espetarem.Uns, ainda dentro da embarcação , outros já na água aonde tinham vindo parar após embate.Todos pareciam esquecidos do semelhante «amigo e vizinho»,que se tinha, instantaneamente, transformado em figadal inimigo de que só a morte permitiria livração.
Foi uma tarde ensombrada de sangue. Vinte e uma vidas ficaram esventradas; umas dobrados sobre a amurada escorrendo para a laguna enquanto esbracejavam nos  estertores da morte. Outras boiando sobre as águas da ria que desciam para o mar, acompanhadas pelas águas tintas de tanto sangue esvaído.
Apenas um, de entre os romeiros do Stº Inácio, lograria escapar com vida .
À noite, temendo vingança de vizinho ou familiar, tomou lugar numa enviada que estava de partida para Setúbal, e desse modo lá escapou a destino mais do que certo .
O desembargador ao outro dia logo mandou uma patrulha para averiguação do desacato
No simples relatório que lhe chegou às mãos, apenas constava:
“ Das vinte e uma pessoas do foral de ílhavo(sic)desaparecidas , nada se sabe, senão o terem-se ausentado para parte incerta”.
E assim se deu como (legalmente ) encerrado, e sem identificação de culpados,um dos piores acontecimentos de sangue fratricida vertido por «ílhavos» 
Quando acabei  li emoção nos olhares das minhas companheiras de conversa.
-Linda mas desalmada estória. Pois :íamos a todas as festas da ria: Maluca, S.Paio, S.Jacinto .A todas onde houvesse santinho milagreiro. Para lá ia-se a cantar. Alegres,anchas e vivas. Para cá vínhamos moídas  com o  quebranto de tanta folia.
-Pois diz a Zefa. Parecíamos uma pégorra : para onde vais Maria (?) :p’rà festa!!!!!.De onde vens Maria (?): ao tiazinha, venho de onde havia festa.
SF  (Fev 2013)
 
 

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