«Ílhava»
Agora que a «ílhava»
navega nas águas remansosas do MMI, onde pode ser apreciada em toda a grandeza
e beleza das suas geniais linhas, acabados os festejos, atirados os foguetes (e recolhidas as canas), julgo útil
deixar aqui um testemunho de quem um dia a descobriu
(?) entre papéis, e se apaixonou pela sua grandiosidade e graciosidade. Uma
embarcação é como uma mulher: nas suas linhas descortina-se, ao primeiro olhar, se
é ou não embarcação de boas mareações. Depois….Bem! depois…..é preciso mão firme no leme e escota bem aconchegada.
Mas voltando à «ílhava». A paixão levou-me a seguir o seu historial e a descobrir a saga
dos irredutíveis «ilhos». Gentes que
só tinham medo de não ter medo. Que
respeito...isso é outra conversa!
Vamos então à
história.
Já lá vai quase meio
século, quando preparámos um trabalho sobre Ílhavo (para um concurso levado a
cabo pelo Illiabum, que ganhei, e cuja importância material, ao tempo assinalável, deu
origem à sustentação do prémio Mário Sacramento).Criado para premiar o melhor aluno da Escola
Secundária de Ílhavo – ainda então, sem o nome de João Carlos, manteve-se durante vários anos.
Ora foi no desenrolar
desse trabalho que tomei contacto com a «ílhava».
Possui – comprei, recuperei e tratei amorosamente
– muitas embarcações lagunares, incluindo um moliceiro. Bateiras,
muitas. Dóris, etc., etc. Estava então a viver o pico de paixão pela laguna, e
sua história. A «ílhava» veio aumentar a paixoneta.
Interroguei toda a
gente e constatei que ninguém – mas é que mesmo ninguém (!) - se lembrava de tal bateira.
Meu Pai recordava-se que meu Avô tinha por costume, levar numa delas ( que
alugava) a numerosa família, às festas lagunares. Contudo meu Pai, que era então
ainda um rapazinho, não tinha ideia concreta das formas. Olha!... dizia-me: era parecida com um moliceiro, mas não tão
curvada na proa. Mais bonita… Frederico de Moura foi outro dos inquiridos, sem
ter qualquer ideia precisa. O mesmo direi de Amadeu Cachim, este um pouco confuso, lembro-me,
com a «Preta Murtoseira» do Ti Tainha.
Fui observando,
recolhendo elementos, e, há cerca de vinte e tal anos, fui falar com a D. Ana
Maria Lopes (então directora do Museu) para saber se no mesmo existiam
elementos identificadores. A Ana Maria desconhecia. Passados uns tempos, a Ana
teve a amabilidade de me enviar umas folhas fotocopiadas, do livro de Castello
Branco que tinha encontrado, e onde a ílhava
é referenciada (sem dúvida, a referência que foi bastante para fazer luz e
permitir ordenar as minhas ideias).
Na visita já feita ao
Museu de Marinha, não vi nada de clarificador (o modelo de barco que o Cap. Marques da Silva reproduziu mais
tarde, com o rigor habitual, não estava em exposição.Ou não o descortinei).
Não desisti e da
recolha feita (com todas as fotografias que encontrei nos alfarrabistas de Lisboa e Porto, e de outras referências, julguei estar em condições de desenhar, em 2D, as linhas que
supunha, serem suficientes para construir à escala 1/1, uma «ílhava».
Resolvidos os
primeiros problemas depois de assumida a Direcção do Clube de Vela da CN,
depois de conseguirmos a dadiva do moliceiro,
«O Ilhavense», recuperado e posto a navegar, como novo, propus que em partenariado com a
SIMRIA, se levasse a cabo a construção de uma «ílhava». Para o efeito contratámos o mestre Conde, na Gafanha, fornecendo-lhe
os planos (muito ténues).Adquirida a madeira, fechámos acordo: – 400 contos,
então.
Passados meses, o
Mestre Conde contactou-nos, informando que, dadas as dificuldades, desistir da empreitada,
propondo-se (honestamente) devolver o dinheiro do custo da madeira.
Que remédio…tivemos de
aceitar.
Com a feitura do livro
«Embarcações que Tiveram o seu Berço na Laguna», aprofundámos os saberes. Desenhámos
já com rigor, então, os planos em 2D de todas as embarcações nele tratadas
(os ex-libris lagunares). Mas talvez influenciado pela necessidade de
facilitar a vida a quem quisesse construir, lancei-me, auxiliado por um profissional, na aventura de
arquitectar os planos a 3D. No final, eu próprio fiquei deslumbrado com o
resultado do trabalho final.Que demorou três longos anos a concretizar (mas que
valeu a pena com o prémio da Academia de Marinha que lhe foi atribuído).
O modelo da «ílhava» à
escala 1/27 foi executado (como o foram todos os restantes para estudo
pormenorizado). Pareceu-nos na altura correcto, pois havia diversos pormenores (plano
vélico, manobra deste, remos, encosto do mastro, etc.), que foram objecto de um
longo aprofundamento.
Foi, entretanto,
mostrado no Museu o modelo do Cap. Marques da Silva. Reproduzindo exactamente o
modelo existente no Museu de Marinha, que nessa altura era já do meu conhecimento
(julgo que no Museu da Marinha está –ou estava – identificado como «Saveiro»). No Blog de então, fiz uma
comparação entre as diferenças vislumbradas no meu modelo e aquele. No
fundamental, residiam no plano vélico e nas linhas da bica. No resto eram
coincidentes.
No ano passado recebi
uma convocatória dos AMMI. Foi- me então dado a conhecer a pretensão de mandar
construir uma «ílhava». E solicitada a informação sobre a possibilidade,
foi-me inquirido se aceitava orientar o mestre construtor e se os planos que
tinha eram exequíveis.
Sobre o mestre não
havia dúvidas. A minha longa experiência e relação com o mestre Esteves,de Pardilhó,
fazia-me indicá-lo, sem qualquer rebuço, como o mestre mais capacitado para a
execução. Quase diria, único ,capaz de tal proeza.
A questão colocou-se em tirar os planos da embarcação a uma escala
1/1. Contactada a Martinfer, houve que pôr de parte a ideia. Lembrei-me, então,
de procurar junto das empresas em Aveiro, o maior scanner instalado. E encontrei finalmente um, que permitiu tirar, num plano
único que mais parecia um lençol ,toda a embarcação (as cavernas no tamanho real tiveram de ser
tiradas ao correr com o papel, pois o scanner
não permitia outro artificio).
Mas a embarcação no
seu tamanho natural, em todas as suas formas e dimensões, plano vélico
incluído, estava ali. Era colocar, peça a peça o «desenho» sobre a madeira...e
cortar… E depois usar a técnica de construção ancestral. Uma coisa foi desenhar
os planos a 3D.Outra foi testar que os mesmos correspondiam ás expectativas. Foi
um dia muito gratificante, em que constatei que o tempo nunca me retirou a
vontade inabalável(por vezes doentia) para me desafiar em ir mais longe.
Com a D. Ana M. Lopes (nomeada
para coordenar a ligação com o mestre) fomos a Pardilhó apresentar os planos. Havia
um certo receio de uma nega. Bem ao contrário, ao ver os ditos,o mestre ficou de imediato encantado e desafiado: nunca
tendo ouvido falar naquela embarcação, os desenhos à escala real,facilitavam
toda a tarefa: era apenas colocar os
desenhos e riscar na madeira. O resto (técnica de construção) sabia o
Mestre Esteves, de cor e salteado. Era a mesma técnica da construção das
embarcações Lagunares. Mas interessante é que o Mestre mostrou-se vivamente
interessado em executar. Apaixonado... para nosso espanto. E ainda mais interessante, constatámos no decorrer da construção que, ao
contrário da nossa longa experiência, de nesta ou noutra actividade, ao fazer-se
algo novo, ser por vezes difícil obter a
abertura e aceitação do mestre executor, em deixar-se conduzir, certo é que, aqui, nunca
verificámos o mínimo de resistência às
indicações dadas. Dizia amiúde: eu quero fazer
aquilo que Vos satisfaça.
Semana após semana, lá
fomos. Umas vezes sós – quase sempre com a Ana Maria – e outras com a companhia
do precioso Cap. Marques da Silva, aquando
das suas vindas à Gafanha. Sempre disponível para dar a sua abalizada opinião, no
definir, esclarecer e permitir uma opção compartilhada, num ou noutro ponto
mais esconso do projecto, quando não havia referências seguras do mesmo.
Semana após semana, lá
fomos. Umas (poucas) vezes sós – quase sempre com a Ana Maria – e outras com a companhia
do precioso Cap. Marques da Silva, aquando
das suas vindas à Gafanha. Sempre disponível para dar a sua abalizada opinião, no
definir, esclarecer e permitir uma opção compartilhada, num ou noutro ponto
mais esconso do projecto, quando não havia referências seguras do mesmo.
Recordo a primeira visita que fiz ao estaleiro depois de iniciados os
trabalhos. Deparei com as bicas
alinhadas e as cavernas mestras colocadas
no picadeiro sobre a tábua da quilha. Fiquei extasiado. Ao
natural, a embarcação era soberba.
E o mestre também admirado, ia-me relatando
as suas impressões. Com a muita confiança tida com o amigo «Pardaleiro» –
alcunha do mestre – um dia disse-lhe:
– Venha cá Mestre!...olhe-me para estas linhas do fecho da ré. Isto
é obra dos «ílhavos»!!!!. Vocês aqui, depois, tentaram copiar e fazer o moliceiro,
mas as linhas deste parecem feitas à enxó. (Claro exagerei, pois o moliceiro é
também ele, uma obra de arte, inspirada na «ílhava»).
O « Pardaleiro» riu-se…….