sexta-feira, agosto 30, 2019

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    A festa da matriz passa a Senhor Jesus dos Navegantes e

S. Sebastião (século XIX)

A Festa de S. Pedro, a partir de uma determinada data que não se consegue fixar com exactidão, passa a ter a designação de Festa do Senhor Jesus dos Navegantes e de S. Sebastião. Admitimos que tal tenha acontecido por meados do século XIX, ideia que sustentamos no facto de, por volta de 1840, nas notas do conselheiro José Ferreira da Cunha, este nos falar numa altercação surgida entre juízes da festa, motivada pela pretensão da substituição do anteriormente referido barquinho, por um outro, já não de pesca, mas do tipo veleiro; nesse ano, teria estado em risco, a realização da festa. Felizmente a questão foi ultrapassada.Mas seria um primeiro sinal de que algo estaria para mudar. Algo que viria a acontecer, pois, a partir de determinada data, o barco do andor do Salvador é já um veleiro do alto.
Em 30 de Junho de 1865, podemos encontrar, inscritas no livro do priorado, despesas certamente referentes a 1864, no valor de 16$000 reis, com a festa que toma, então nessa data, a designação de Festa do Senhor Jesus dos Mareantes e de S. Sebastião.




Apesar de parecer uma simples mudança a designação de um novo orago para festejo popular, essa situação reflecte, a nosso ver, uma alteração profunda que se fez sentir no tecido social da vila, o que nos parece importante assinalar, pois a mesma é fruto de uma mudança (verificada) no perfil do pescador, quando este se transforma em mareante, deixando, por isso, a borda do mar para nele se engolfar profundamente. Este mareante pretende demarcar-se do seu antecessor, o pescador. Assumindo-se  como homem do mar, sim, mas com outras vistas, com outras larguezas, com outras ambições, senhor de um novo desígnio. Ambiciona, desse modo, ganhar estatuto social que os seus anteriores sempre desprezaram. E até posição preponderante na vila, uma vez que a sua situação económica se pode comparar à classe alta da comunidade. Nesse tempo meados do século XIX – o ílhavo tinha deixado para trás os areais da Costa-Nova, decidido a assumir o desígnio de altieiro que daí em diante lhe marcaria o destino. Cumpriu-
o a percorrer, infatigável e irrequieto, todos os mares deste mundo, conhecendo novas terras e novas gentes, enleado na descoberta surpreendente das novas paragens, deixando para trás, a substituí-lo na borda do mar, gafanhão que desceria à praia levando consigo os bois da lavra, emprestando à faina um aspecto rural, uma lavra do areal.
A festa em Ílhavo, a S. Pedro, já não fazia sentido ser realizada pelas novas Companhas na vila, uma vez que já teriam a sua festa– a da N.ª Sr.ª da Saúde– na Costa-Nova. Em Ílhavo, o orago a celebrar não fazia sentido ser, apenas e só, o protector dos pescadores – o S. Pedro – mas sim o Salvador, protector de todos os que sulcam todo o mar, independentemente das lonjuras ou actividade marinheira. Por isso, cremos, estar assim justificada esta mudança de designação da festa anual da matriz para Senhor Jesus dos Navegantes. A imagem do Senhor Jesus, descrita em 1758 como sendo muito milagrosa, passa a substituir a de S. Pedro no andor da festa e vai contar, no início do século XX, com a companhia do lugre o Navegante. Ao novo orago, desde então, foram dedicados toda uma série de quadros (os ex-votos), tábuas votivas com que se cumpria o acto prometido numa representação pictórica simples, de um modo ingénuo, algo naif, penhor da grande devoção e fé destas gentes perante eminentes naufrágios ou outras aflições passadas no mar.


Ex-voto (Oferecido por João Fernandes Parracho )


                              NB- Tudo o que se diz acima inviabiliza que esta festa,agora com novo desígnio tenha sido em louvor dos que iam "à pesca do bacalhau".Não esquecer que o regresso à pesca do bacalhau sucedeu em 1835 (ver os Últimos Terranovas Portugueses".Estavamos então a começar o segundo capítulo.Mas sim,já os Ílhavos em meados de trinta do século XIX,,percorriam ,embarcados,todos os mares de todo o mundo,altieiros de destino .Nos primeiros decénios do Séc XX,de facto, aí, a festa era feita por gente e para gente, da Faina Maior(com posição destacada dos seus capitães)








quinta-feira, agosto 29, 2019



Nunca entrei por aquele trabalho burocrático de alinhar "ilhavismos".Muito embora tenha incitado alguns a fazê-lo.Mas gostei sempre, desde tenra idade (ganhei o prémio Diniz Gomes,aos treze anos) de escrever,num jeito que nele aprendi. Creio hoje poder dizer (á vontade) que fui de longe quem mais "ilhavismos"colocou em texto corrido.E isso, é que penso ser o dificil.Mas apetitoso.
Aqui vai mais uma amostra,numa semana de descanso ,a preparar (interiorizar)o trabalho para sábado



Passem muito bem.
NB- "Labrega" é uma das bateiras históricas da Ria, que tratei no meu livro "Embarcações Lagunares -Bateiras & Artes)
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O parto na «labrega»
E lá voltou o tempo tristonho, de uma paz podre, belicoso, que mais do que incomoda, envelhece (-nos).
Há que reagir à maldade dos deuses. E saltar fora do afecto modorroso dos lençóis quentinhos, e … «navegar».

A ria está quieta, como um gato enrolado esquecido de si e do que se passa à sua volta. No nosso tempo, meses que tinham R, eram meses de «cricalhada». Esta semana, apesar do dito R estar no mês, agora, as autoridades vieram decretar proibição do «crico», fora de casa. Parece que aquela alga que pinta de vermelho, adiantou o período de proibição. Por isso a ria está vazia, como mulher visitada pelo dito. E logo posta de lado pelos amantes. Raio desta cambada. Bem podiam afagá-la, acarinhá-la, e renderem-lhe visita. Ao menos de cortesia. Ingratos.
Mas hoje era dia de charla. E muito me admirei quando ao meu encontro, além da Zefa e da Bernarda, vinha uma outra vistosa faininha. Logo apresentada como a Joana «Labrega».






 - Olhe cá: – para mudar de conversa, trouxemos a Joana «Labrega». Para ouvir uma história, linda. Mesmo linda. Vai ver. Aqui, a Joana, foi filha do arrais Agostinho «O Capa Cavalos». Home daqueles que dizia:
- Ah! mar estás a roncar (?)… espera que já  te mijo  em cima….
O Agostinho era casado com a Deolinda «Patacão». Ora às tantas esta emprenhou, e o certo é que passou muito mal, a rapariga.
E vai um dia a coisa complicou-se. Chamada a manobradeira do sítio, a ti Tuna, «a Parideira», esta logo percebeu que a criança estava atravessada na «vaga» aos baldões, e não havia maneira de a trazer cá para fora. Nem com «reboque». Chamando o Agostinho de parte, segredou-lhe:

- Temos aqui um estupor de lanço que ficou no peguilho. Se não levamos a Deolinda a Aveiro, já, ao hospital, vossemecê fica sem rede e sem peixe.
- Mas como (?) … balbucia o arrais que nunca se vira num momento daqueles. Sem estrada, sem transporte só lá para a noite dentro… se
 - É tarde, interrompe a Tuna. Muito tarde. Temos uma, duas, escassas horas. C’a Deolinda não óguenta mais. Vá pedir ao Ti Rigueira «o Murtoseiro» que ele leva a pobre, a Aveiro, na sua bateira «Labrega». Não há outro como ele, a voar sobre a ria, Ti Agostinho. Vá (!) meneie-se raio de homem, parece um xana, aí especado.
O Agostinho deu da perna e passado um pouco voltou com o Rigueira «Murtoseiro» que logo ordenou:
- Vá, peguem na cachopa e levem-na ali à borda, que eu vou preparar o «camarote».


A «Labrega» era uma daquelas bateiras que os murtoseiros traziam com eles para os lanços do «saltadouro». Elegante na sua bica, toda «embreada», servia de «casa» ao pescador. Que lhe armava, no castelo de proa o toldo espalmado (pata de rã) com que se protegia do vento frio da noite. O Rigueira aconchegou a manta, armou o toldo, e quando trouxeram a Deolinda, foi só poisá-la ao de mansinho na «Voadora». Assim se chamava a «Labrega». Toda pretinha, só com o raminho a enfeitar a cruz erguida na bica da sua elegante proa. A «Labrega» do Rigueira era a única que tinha (ainda) uma vela bastarda, calcada à proa, na sarreta, e verga atirada bem lá para o alto.
Vela enfunada, bem calcada no punho a esticar a testa da vela, escota na mão a comandar a «enchidela», toste bem ferrada, e a «Voadora», era, nas mãos do experimentado Rigueira, uma galgadora da ria.
O Agostinho sentado no «traste» olhava pela Deolinda deitada a seus pés. E os três embarcados atiraram-se à emposta.
 Punho da escota bem ferrado, cabo do xarolo de sotavento laçado na sarreta barlavento, trilhado nos dedos de pé para comandar a orça, num ápice chegaram ao canalete do «Oudinot». Mas aqui a Deolinda, fosse pelas batidelas da bateira a adoçar a vaga, fosse pelo respingos da ria que entravam bateira adentro, diz sentir que:
-Ai meu Deus e nossa Senhora do Bom Momento, «ela» já deu volta e vem aí……
O Rigueira acosta a «Labrega», fundeia numa revessa e pede ao Agostinho (que lívido, hirto, ficara, para ali especado),
-Vá que a «rede está à borda», e é preciso separar o «mexoalho» do peixe branco. Salta lá para trás homem : estipor que só tens chaniço para o mar. De resto és um empecilho cheio de trízia.
E lavando as mãos na auga que aquecida pelo vento suão, estava morna, abeirou-se da Deolinda e ordenou:
-Vá lá cachopa: ferra aqui as mãos nos escalamões, retesa-me esses pés no paral, e acospe-me cá para fora o regordido que trazes aí dentro. E tu Agostinho (!): forra a macola com este camisote de linho com que fui ao altar, e prepara-te para aparar o rebento. Passa-me aí a naifa de rasgar o porfio de cortar a mão da barca ao redame, para  «a» libertar. 
E se melhor dito, melhor feito. Eis que de entre as pernas da Deolinda se escapa uma pimpolha a berrar como uma esgalmida. Logo o Rigueira mete o vertedouro na ria, e eslavaça a paxoneira (pois de facto era uma bonita pimpolha que acabara de nascer na «Labrega»).


-Ora, diz a Zefa toda delambida, virando-se para a Joana que sorridente ouvira toda a história do enredo do seu nascimento, – agora veja, aqui tem o pimpolho nascido às mãos do parteiro Rigueira: – a Joana «Labrega».
Eu olhei a para a Joana, embeiçado. Os seus olhos d’água eslavaçados pelas águas da ria, amêndoas doces a boiarem, inquietos, num rosto muito moreno, melaço, vivo e brilhante, eram sublinhados por um cabelo revolto. Negro… negro como o embreado da «labrega» do Ti Agostinho.

Na «labrega» do Rigueira
Nasceu a Joana sem dor
Foi na barca toda de negro
Que nasceu o meu amor.

Senos da Fonseca




  FREDERICO DE MOURA De novo veio à baila Frederico de Moura, a solicitação de mestranda para recolha de informações. Boa altura para o traz...