Aveiro tem na Praça do Município .exposta uma série de painéis num tributo a Mário Sacramento.Curvo-me reverenciado pela ideia no mundo cultural aveirense,hoje pobre e orfão.
Tenho dó do esquecimento a que sem votado,em Ílhavo, sua terra natal , o filho Mário , quase tudo fazendo-ou não fazendo!...– por o esquecer rapidamente ,depois dos esbirros fascitóides do tempo, tentarem negar-Lhe o nome a uma das pricipais artérias da cidade.Ainda há uns tantos que não engoliram a derrota.
Seria bom que no final da exposição em Aveiro,esses mesmos expositores fossem– por exemplo colocados na praça do municipio,vulgo jardim das ervas– e ali ,acolitada por diversas iniciativas culturais, trouxessem Mário Sacramento ao conhecimento das gerações mais novas.
Faço votos.....mas...
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Hoje deixo aqui um rápido olhar sobre Mário Sacramento.O meu tributo,a quem por palavras,lições,e exemplo, muito devo .
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MÁRIO SACRAMENTO –
um «Ílhavo» de eleição,no séc.xx
Mário Sacramento nasceu em Ílhavo, em 7 de Julho de 1920,na casa da sua família,ali ao Largo do Oitão .
Filho de Artur Sacramento,comissário de bordo na Marinha Mercante ,homem muito culto, possuidor de um grande carácter e sentido de vida, figura altruísta e solidária – será um dos primeiros Comandantes dos Bombeiros Voluntários de Ílhavo - e de Rita Sarmento , cuja família vinha de pesado tributo pago nas lutas Liberais.Enforcados que foram dois dos seus tios ,em Aveiro, pela camarilha absolutista .O convívio desta família materna, muito próximo de figuras proeminentes nas lutas por uma nova ordem de liberdade, igualdade e fraternidade (que tinham ido beber à Revolução Francesa), e de onde se destaca o tribuno José Estêvão (cuja esposa era madrinha de D Rita Sarmento) teria tido certamente influência no jovem Mário que habitualmente passava grandes temporadas em casa da família materna, como ele mesmo recorda no seu « Ave Aveiro »:
“Sob os lampiões dos Arcos, Rua dos Mercadores abaixo, vogavam bateiras conduzindo os teus íncolas (ia a dizer os teus doges) às soleiras das portas. E eu batia palmas de menino com brinquedo, na janela da avó. Casa escura, com mofo a rato, olhares do José Estêvão no louceiro antigo, um opúsculo do Marques Gomes a dizer-me que um tio de antanho fora decapitado pelo D. Miguel, grades de pimpons nas sacadas de pedra antiga — em que um dia entalei a cabeça (para retomar essa tradição, quem sabe?), tendo sido liberto, depois de muito suor e ferros, por um serralheiro do Mindelo”..
Desde miúdo Mário Sacramento atira-se à bem recheada biblioteca que, seu pai , metódica e permanentemente organiza e enriquece, embrenhando-se em autêntica sofreguidão na leitura de livros que lhe irão conferir, uma notável e precoce cultura,.Muito direccionada para teses vanguardistas, especialmente no campo humanista. Esta precoce aptidão é, desde muito cedo, reconhecida e valorizada pelos mestres com quem contacta , seja na Escola primária onde o prof. Guilhermino Ramalheira lhe atribuiu o primeiro lugar de todos os alunos que lhe passaram pela mão na sua longa carreira docente,quer por José Tavares e Agostinho da Silva, que, reparando - deslumbrados! - no jovem Sacramento e no jornal que edita sozinho -“O Furão”- ,logo o convidam -tinha ele imberbes catorze anos – para Director do Jornal do Liceu de Aveiro –A Voz Académica –,onde vai ter como principal colaboradora aquela que, seria mais tarde a sua mulher ,companheira de uma vida,a escritora – Cecília Sacramento .
Mário Sacramento aprende, autodidacta, o Esperanto ,língua com que então se sonhava vir a ser,língua Universal:- “um só povo ,uma só língua “; jovem ainda, logo em Ílhavo, cria, na AHBVI , uma turma aberta para divulgação da mesma que, acreditava , seria a antecâmara para a união dos povos sob o fim último das teorias marxistas da igualdade –de direitos e oportunidades que, já então, lhe despertavam a atenção e o empenho.
Desde cedo em M.S. se descortina um ousado interveniente de elevada capacidade reflexiva – hiperlucidez (?!)- ,vertida em inflamados discursos ,conferências e tertúlias académicas – em tudo que servisse de veiculo a uma divulgação pedagógica que lhe era particularmente inata - em que fazia, intensa e assumida propaganda de ideias esquerdista de que então, o Jornal «Diabo», era, a mais destacada Tribuna Nacional.
Em 1938 (dez de Junho) a PIDE prende-o pela primeira vez, ao mesmo tempo que proíbe a publicação e circulação da revista «A Voz Académica» .Tinha, tão só, dezoito anos.! Mas a prática, o empenho e aceitação das teses vertidas tão precocemente, começavam a ser perigosas –já! - e a importunar de um modo célere e preocupante o regime Salazarista que, antevia com perspicácia - diga-se - ali se encontrar um potencial e vertido subversor do regime fascista .
Contrariado na sua vocação pelos pais, que o não deixam seguir letras, Mário Sacramento vai estudar Medicina para Coimbra,e completar depois em Lisboa (1946), o curso. Tempo para aderir ao M.U.D juvenil, movimento de unidade cujo fim era o derrube do regime Fascista ,O que irá levar a P.I.D.E a intensificar a vigilância , seguindo com redobrada atenção todos os seus passos,pronta ao menor sinal a decapitar este empenho que sente provindo de um ideário profundamente interiorizado e assumido que, se mostrava imparável na acção em busca de novos valores da liberdade. Liberdade de acção,de expressão, de reunião e associação,fundamentais para os cidadãos portugueses exercerem os seus direitos de cidadania, em pleno.
A sua vocação para a escrita salienta-se em 1945,quando apresenta nos Jogos Florais da Universidade de Coimbra o livro «Eça de Queiroz –Uma Estética de Ironia» ,distinguido desde logo com o prémio Oliveira Martins .Neste trabalho, Mário Sacramento segue o percurso de Eça, (autor a que o ligavam afectos familiares próximos e exultação pelo exemplo do avô daquele ,o Conselheiro Queiroz ,que, em 1828 ,levantara o povo de Aveiro pela afirmação suprema da Liberdade ) ,procurando dilucidar sobre a influência que, em Eça, teria tido a vivência de Coimbra –cadinho onde se fundiam ideologias e novos rumos do pensamento– e assim, descobrir o genial escritor realista, “impressionado execravelmente com o que encontra em Lisboa” ; o realismo com que Eça combate o romantismo acomodado de Camilo, e em que Mário Sacramento vê “o resgate do séc XIX”, ao servir os propósitos da revolução das mentes e dos espíritos - a sua evolução ,os caminhos ,as mutações no pensar – tudo é dissecado por M.S. que ,insiste na necessária ligação entre a arte escrita e a acção (pensaria já então na corrente neo-realista?).E que nos vai descobrir o momento exacto em que Eça (na carta a Carlos Mayer) ,parece “pegar pela primeira vez na pena para escrever genuinamente com ironia “. A mesma «ironia» que seguirá Mário Sacramento vida fora “como arma de arremesso” para denunciar a opressão e lhe resistir ferozmente. Hoje ainda,a análise critica de Mário Sacramento ao autor de «Os Maias», emparceira com o que de melhor e mais válido se fez ,em profundidade e exegese, ao escritor realista, entre a «arte de combate e arte revolucionária» ao concluir que “uma sociedade sobre estas falsas bases não está na verdade ; atacá-la é um dever “
Terminado o curso, M.S. vem exercer a profissão para Ílhavo - onde de imediato tem casos clínicos notáveis que o fazem sobressair da mediania instalada – abrindo consultório na Rua José Estêvão onde passa a viver com a família. Local que vai servir de ponto de reunião a políticos do contra, reviralhistas e ou revolucionários – por isso sempre atentamente debaixo dos olhares da PIDE –, mas local de atendimento para os mais necessitados que, graciosamente – e tantas vezes ainda reconfortados com alguns tostões no bolso para a compra dos medicamentos –,dali saíam agradecidos, reconstituídos , física e tantas vezes materialmente .Que, por vias disso, o irão glorificar ao atribuir-lhe o epíteto de «Médico dos Pobres» ,como passa a ser conhecido, em Ílhavo. Mário Sacramento rejeita definitivamente todos os laços de pequeno burguês -grupo social de onde proviera - que deixará , clara , definitivamente e assumidamente para trás ..1953, leva-o de novo aos calabouços políticos ,onde nos lúgubres interiores irá sofrer as sevícias da tortura do sono ,ou do plantão em «estátua» .Responde às agressões enviando à família,escritos cheios de ironia sabendo de antemão que a primeira leitura dos ditos será dos esbirros .E assim os aguilhoa. Resiste,física, anímica e ironicamente ,desesperando-os, bandarilhando-os ,como se faz a besta cega . Os «Contos» que, da prisão, dedica e envia aos filhos, fá-los acompanhar de desenhos onde exprime uma sensibilidade artística,de certo modo apreciável, por onde faz perpassar tenebrosas figuras de vilões, sujeitos a final da história adequado ao fim pedagógico que pretendia atingir, mas servindo de recado para tal molesta embófia que, era obrigada a lê-los, na sua idiota missão controleira. E na cela, apesar de lhe chegarem a negar a simples consulta de livros ,elabora um trabalho intitulado «Fernando Pessoa -Poeta da Hora Absurda » que será publicado, em 1958. Um trabalho de que, mais tarde, disse, gostaria de refazer ,dadas as condições em que foi elaborado. Nele leva-nos à descoberta da essência comum entre o poeta e os heterónimos – embora, assuma serem individualidades diferentes,e a sua concepção geral da vida :– um beco sem saída ! Onde Reis procura não se lembrar de que o beco pode não ter saída ; onde Caeiro até acha desnecessário saber se a há… ou não ;e onde Campos é o único a procurá-la :- não pela saída, e o que isso significará ,mas ,apenas e só, pela procura.
Põe-nos perante o logro que, embora “reconhecido logo se aceita” ,pois considera os ditos “ não como autores ,mas como Pessoa escreveu a Campos, a Caeiro ,e ou a Reis”.
O «tempo de Pessoa» –a hora absurda !- ,o cume do génio que nele existia, só poderia ser alcançado se, “absurdamente, se invertesse ou alterasse o conceito de génio”,pois, diz-nos, “no génio não pode haver Ironia”
Entretanto a actividade profissional segue os seu desenrolar por vezes recheada de algumas desilusões –patéticas e angustiantes. Parte delas, –boa parcela, provinda da atitude corporativa dos colegas, mas e também, consequência dos hiatos a que os seus doentes se vêm constrangidos, dadas as ausências assíduas,consequência das prisões que sobre ele sucessivamente se consumam.
Em Ílhavo, os «próceres» locais impedem-no de trabalhar na Misericórdia, tentando coarctar-lhe a carreira profissional. As denúncias de colegas e as maledicências empurram-no para o exercício médico em Aveiro (1955) ,onde se irá estabelecer em consultório aberto, mesmo em frente do café Trianon ,local onde diariamente reúne com a sua tertúlia politico-literária, sob o olhar e ouvidos atentos dos esbirros obtusos e palúrdios da policia politica do regime que, ávidos de presas, vigiam de perto o grupo nas mesas contíguas .Sem por vezes se darem conta de que são identificados e, por isso, mimoseados com a vulgata comum, da maledicência e brejeirice .O que não impede de nesse ano ,em 1955, voltar – por duas vezes - a ser levado para a António Maria Cardoso. O então inspector chefe dos esbirros pidescos, o grotesco Sachetti cujas origens se situam em Aveiro, sabe do perigo que representa Mário Sacramento e ordena a sua vigília dia e de noite, atribuindo-lhe uma perigosidade preocupante para o regime , porquanto Mário Sacramento, ao mesmo tempo em que se assume intelectual da mais fina água,embrenha-se numa tenaz acção politica, de uma maneira entusiasta, pedagógica,incitadora e aglutinadora, que preocupava o açulado e empertigado bufo .
Isso não impedirá M.S.de ser o obreiro que torna possível, em 1957, o Iº Congresso Republicano ,e de que foi o Secretário Geral.
Em 1959 publica «Ensaios de Domingo», e inicia com Óscar Lopes -intelectual de quem ideologicamente se manterá muito perto – uma colaboração literária no jornal «O Comércio do Porto».
Em 1961,como bolseiro do Estado Francês, vai para Paris ,onde no Hospital de St. Antoine tira a especialidade de gastro-enterologia , apesar de gravemente doente, pois que, durante a estadia – por deficiência alimentar e ou excesso de labor – contrai a tuberculose .Por ousada ironia, uma das doenças que, com mestria, soube combater nos seus primeiros anos de prática clínica, em Ílhavo.
Regressa em 1962 , para voltar a ser preso, ainda ,nesse ano .
Em 1966 assume-se crítico literário, colaborando no caderno de Literatura do «Diário de Lisboa» ,e também, na revista «Seara Nova». Nesta colaboração destaca-se o debate sobre a procura de uma «Estética neo Realista» ,e a inventariação dos autores nacionais que a perseguem; era importante para Mário Sacramento, encontrar nas diversas propostas artísticas –poesia ,teatro , na novela , no romance ,na literatura, juvenil e ou feminina, ou outras formas de expressão da arte – um retrato das preocupações sociais ,um conflituar com a realidade , um assumir objectivo de uma vivência “ideo-sensivel” na posição social dos autores na neo – revolução (que teria de ser inevitável).
E será, em 1967, que publicará «Fernando Namora -A Obra e o Homem» logo seguido de «Há uma Estética de Ironia?»,em 1968.
Perscrutando no percurso do escritor Namora em via sacra pelo mundo rural, no exercício da profissão de médico,Mário Sacramento vai explicar a evolução criadora de Namora nas deambulações sociais do autor até chegar ao estádio de autor neo-realista .
Como critico - e porque a crítica ao contrário da história é do que é ,e não do que foi – M.S tem de se integrar com o tempo e de se assumir com o momento histórico em que vive. E fê-lo em todas as vertentes e sentidos,e por isso ,talvez vivendo-os como se lhe impunha,mais do que escrevê-los como desejaria. Mário Sacramento foi,isso mesmo, um autor do neo-realismo, “fiel a um humanismo concreto” ,em que dilacerou uma vida.
O Concilio Vaticano II com as suas conclusões e indicações que, pareciam definir uma evolução no pensamento da Igreja ,mais aberto e mais preocupado,mais suportável para o ateu assumido, levaram Mário Sacramento a procurar nas páginas do jornal «O Litoral»,interlocutores para com eles estabelecer um diálogo com o «credo», numa procura de pontos e empenhamento comuns .A pesar de tudo; artigos que, mais tarde –já depois da sua morte, em 1971 -, seriam reunidos em volume publicado sob o titulo «Frátia –Diálogo com os Católicos ».
Morre em 1969, nas vésperas do 2º Congresso Republicano de que, uma vez mais, foi o principal obreiro –o fogo que ateou a labareda no requerimento, ainda por ele redigido– e que se viria a realizar sob o patrocínio do seu espírito que ,do primeiro ao ultimo instante pairou no «Teatro Aveirense»,onde teve lugar .
Salazar, é certo, estava moribundo, politicamente morto.Mário Sacramento já não veria a queda do regime para a qual tinha sido um dos mais férreos contribuintes, um dos mais entusiastas e dos mais lúcidos combatentes que, infatigável e persistentemente ousou lutar contra tudo quanto de retrógrado representava e continha , o caduco salazarismo fascista .
Mário Sacramento adivinhou na sua «Carta Testamento», redigida em Abril de 1957 ,onde lúcida e certeiramente faz uma premonição rigorosa do tempo sobrante que, certamente lhe iria faltar, para ver a queda do regime salazarento.
“Não viu o que quis ;mas quis o que viu “ disse-nos nessa missiva em que ,dum modo terno mas incisivo , nos lança um aviso:
“Façam um Mundo melhor ! Não me façam voltar cá”
Senos da Fonseca
2006
NB – Estas notas foram extraídas da Palestra realizada em 1970 no Illiabum Clube ,na evocação de Mário Sacramento.