segunda-feira, fevereiro 10, 2025

  Maria de Jesus, a «  PINTA-CRISTOS»



A Maria de Jesus Neves, universalmente conhecida por «Maria Pinta - Cristos» na sua Terra, era uma boa mulher. 

A Maria de Jesus, muito conhecida, costumeira reparadora de imagens de oragos, espécie de cirurgiã esteta-ortopédica graças a uma invulgar habilidade, tinha solução para conserto de toda e qualquer maleita que, por desmazelo dos fiéis ou por maladia vinda com o passar do tempo, atacasse ainda que mesmo, «aqueles» em quem, habitualmente, se procurava remédio para as humanas desditas, mas que, coitados, só faziam milagres em casa alheia. Para isso os clérigos da região, e até os de fora, procuravam a curadeira de santo, pois como veremos a fama da Maria ultrapassou as fronteiras da nossa santa terrinha. Maior que a dela só conheci a do «Ceguinho» …
A Maria «Pinta-Cristos» tinha o seu atelier, ali no Beco que hoje ostenta o nome da Prof. Maria Vidal -que ao tempo ainda nem sequer ali morava –, mesmo em frente à casa dos meus avós, Vão já lá muito mais que dez mãos, de anos. Miúdo, ia sentar-me no rebate de granito que dava para o ambulatório de santo, seguindo com curiosidade as suas «intervenções»: braços, pernas, cabeleiras, retoque de narizes, acentuar das bocas celestiais, e até novo design para a reparação dos mantos dos oragos; todos (e tudo) …que, entrassem  envelhecidos e ou alquebrados, saíam das suas mãos, prontos – se esses mundanismos já então se realizassem – para concorrerem a uma quaisquer «Sky Fashion ».
Era muito simpática, a Maria de Jesus:  baixota, bonacheirona, sempre muito escofenada, sempre a bulir, cara marota muito redondinha de onde se salientavam duas maçãs camboesas muito vermelhuscas, a adoçar-lhe o rosto, a Maria dava indícios de ter sido, em nova, uma muito bonita e atraente mulher. Sempre de xaile preto impecavelmente assente, maleta na mão onde levava os santinhos para despacho ao recoveiro, lá ia muito afogueada e cumprimentadeira, num passinho miúdo, muito rápido e ágil, rua abaixo, lá para as bandas da “Praça”. 
Mas de onde teria vindo a sua fama, badalada de paróquia em paróquia?
Vamos lá contar o que ouvimos contar num seroar daqueles tempos, em noite de trovoada,  sentados em cima dos cobertores de papa, luzes apagadas, apenas iluminados por um daqueles candeeiros de petróleo de chama bruxuleante e mortiça, no intervalo da reza, rogando intercepção de protecção, a Stª Bárbara, enquanto no fogo se punham a arder raminhos de alecrim retirados ao bouquet pascal, muito próprios–entendia-se–para protecção a raios e coriscos.        
Ora um certo dia, apareceu à Maria «Pinta-Cristos» o cónego Justino Belchior, da Murtosa, trazendo uma Srª do Rosário que, apresentava forte traumatismo craniano com mossa avultada na cabeça, sem cabeleira própria de senhora dos céus.
O Pª Justino deixou a santa ao cuidado da Maria que, desembaraçada, logo encontrou meio de fazer uma craniotomia, para o efeito enxertando uma batata (jovem) na cabeça da dita, fixando-a na terra cota por fios barrentos. Depois de tudo bem amaciado, a Maria reconstituiu, amaciou, alourou e encaracolou os fartos e caídos cabelos da Senhora, sobre os quais depositou a aura que pareceu rebrilhar ainda mais.

Foi a Santa colocada na Igreja da Srª da Natividade, na Murtosa, onde os devotos fiéis admiraram e elogiaram o trabalho dos liftings levados a cabo pela reputada esteticista.
Era o tempo em que, acabadas as sementeiras do batatal, começava a despontar das areias revolvidas por suado empenho daquelas gentes da beira ria, um viço verde-escuro sobre o qual se faziam opinativas previsões. À cautela ia-se junto dos santos pedir intervenção para que a época fosse frutuosa, bem diferente da do ano anterior. Não se augurava nada de muito bom. Os terrenos continuavam encharcados pela danada da ria, e por mais moliço e escasso que se lhes despejassem em cima, por maior revolto que com eles se obrasse, parecia que aquelas areias sujas do lodaçal, não havia maneira de se tornarem ventre frutuoso.

Ora um belo dia o sacristão, intrigado, veio alertar o beato de que, ali, mesmo debaixo do tecto, havia milagre. Da cabeça aureolada da Srª da Conceição, despertava viçoso pé de batatal que dia a dia parecia crescer. O abade Justino Belchior logo foi inquirir e não foi preciso sherlockolmear muito para se aperceber da marosca. Tipo esperto, sabedor que para a produção de fé, um simples acontecimento estranho tem mais efeito que mil sermonários, anteviu, ali, um belo instrumento para a evidenciar. E por outro lado, sabe-se lá, tirar os seus proveitos, obter alguma prebenda, para quem como ele, simples abade da vila, tinha levado uma vida a pregar com os bolsos sempre vazios, a exalçar ser  dos pobres  o reino dos céus, o que convenhamos, é boa prática a recomendar ,mas má para usar.   
É certo que ao tempo ainda não havia internet. Mas soprado de boca em boca o milagre, as gentes começaram a acorrer á igreja, para ver, com olhos de ver (!), o anúncio, do que diziam ser os sinais de um bom ano de colheita.
E logo o interesseiro Belchior percebeu que estava ali o seu S.Martinho. O S. Martinho do passal paroquial. E se o pensou logo o insinuou:

- Que sim senhor, mas que era aconselhável ¬- dizia - trazer umas dádivas para melhor conquistar a mandadora dos sinais. Que nisto de santo há-os mais agradecidos e os interesseiros....

E o certo é que por coincidência – ou outra coisa --- lá que as há …há… – nas terras  gafadas, o desenvolvimento da palha do batatal prenunciava colheita como há muito se não via. E foi um carregar para ofertar à Senhora; sacadas de milho e batatas, frangos, carninha do bácoro recentemente esganiçado, esmolna em moeda de lei. Enfim, tudo o sacrista recolhia ,animoso que o Sr. Abade se lembrasse, neste fastígio de fartura, do seu acólito.
O celeiro encheu; e até verteu fora, dando para ir ao mercado, a Estarreja, para mercadejar o excesso e, desse modo, recolher o suficiente para comprar uns tarecos lá para a casa do pobre cura, que, coitado, também era filho de cristãos, e de há muito ansiava por uma sédia onde pudesse abusacar-se finda a jorna espiritual, na sombra do seibão do passal.

Época feita, apurada a colheita, o povo andava cada vez mais chançudo na sua Senhora; e achava que Lhe deveria ser grato. Por isso, sempre que ia de visita, levava-lhe espórtula  que deixava na caixa colocada para tal fim, aos pés da santa.
Espantoso foi que, terminada a colheita,  de um dia para o outro como que por milagre, o batatal na cabeça da santa, tenha desaparecido. O astuto Belchior, em noite azada, tinha extirpado o caule que grassava por entre o cabelame da santa, e tudo tinha voltado ao normal.
Triste andava o sacrista. Acabara-se o milagre, e para o ano as coisas não prometiam repetição, que nisto de milagres não se pode ser mãos largas e torná-los banais.
E um dia resolveu queixar-se ao cónego:

- Pois é Sr. Abade... Não há bem que sempre dure. Os bons tempos de fartura foram-se. Para o ano temos de voltar aos caldinhos, leves de conduto.

- Oh! zamparilha (!)...homem indigno do convívio com a santidade!.... descansa, homem - returque o P Justino Belchior, fitando a cara do azabumbado acólito - para  o ano o milagre vai ser o do milhal. Prepara o celeiro ,disse maroto, o abade Belchior que, nos entretantos já  tinha vindo a «Ívalho»,acertar com a Maria «Pinta-Cristos»– não fosse longa a lista de espera!–,a operação da trepanação a levar a efeito na estação do defeso,  consistindo  em substituir a batata por uns grãos de milho envoltos em cera de grilo, muito apropriada para derreter no momento certo .

E a Maria de Jesus nem percebeu as razões para operação tão esquisita, e até nem alcançou das razões porque é que o Padre Belchior, sempre tão forreta, lhe pagou o trabalhinho a dobrar. E que,ainda por cima, lhe deixou um saco de avantajadas batatinhas, tão agradecido se mostrou pelo bom trabalhinho feito pela «Pinta-Cristos».

O certo é que, fosse no segredo dos confessionários, quebrado, fosse em algum parlatório em fim de lauta jantarada, o certo é que a manha foi ao conhecimento de outros colegas do abade Justino Belchior.
E à Maria «Pinta Cristos» começaram a chegar os pedidos mais esquisitos para delicadas intervenções de enxerto cranianos, todas com uma particularidade comum: SER COISA DE GRELO ...
  
            Senos da Fonseca



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