domingo, março 18, 2012


De vez em quando Escolas pedem-ma. E eu gosto de a recontar...


LENDA DA TERRA DA LÂMPADA.


Há muitos…. muitos anos,tantos (!) que já ninguém o sabe ao certo quando ,«aconteceu» em Ílhavo uma história  que virou lenda.
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Era uma vez …uma Terra que em menina foi surrada pelo mar que lhe sucumbia aos pés e que depois, já crescida, viu aquele amainar   aprisionado pelos braços da sereia  lagunar. Logo logrou escapulir-se,    obrigando as suas  gentes, pescadores da  borda, a atravessar o prado já então a revessar  de verde que se estendia, qual tapete  macio, para  os levar à Costa Nova em demanda  da sardinha, que, diziam ,tal como a mulher, se quer rechonchuda e pequenina.  Como todo o «gentio» do mar, pescadores ou mareantes, sempre os «ílhavos» foram mais tementes a Deus que a esse «cão» danado – o mar! –!que por vezes amuado de tanta ousadia ,enraivado, ronrona ameaçador em ondas espúmeas  ao embater contra  os  frágeis barquitos em que aqueles  ganham o pão para os seus .
Era nesses momentos dantescos que o arrais Ançã lhe gritava:«Ah!... danado, se fosses d’aguardente bebia-te só de um trago!» .
E logo o mar parecendo amedrontado com o desafio do arrais gigante, alquebrava e, ás arrecuas, tolhido,desembestava a tramontana, serenando .
Mas com Deus não se brinca, ou ofende, e os «ílhavos» , criaturas de  fé devota, muito embora confiassem nos «seus arrais» – que não havia outros de tal «igualha» por essa costa abaixo–quando chegados os momentos de aflição, faziam as suas promessas ao S Pedro.Orago da sua devoção, que na Igreja da santa terrinha, no altar, atento, velava pelas suas vidas. Acreditavam. Apesar da Vila ser, naqueles tempos, idos ,aconchegada e pequena, era escufenada, tendo já desde os nossos primeiros Reis uma igreja REAL, vistosa e imponente, que  lhe conferia merecido destaque  .Os pescadores e famílias, principalmente o «mulherio», eram gentio muito religioso, comparecendo  diariamente á missa pelas matinas,levando consigo  uma esmola que entregavam às Almas para protecção dos seus .Esta Igreja desde muito cedo passou a ser das mais importantes e mais ricas de toda a região de Aveiro, exibindo valiosas imagens de Santos de terracota, adornada de ricas alfaias de ourivesaria, muito faladas e, por isso, também, muito cobiçadas.
 De tal modo que aquando das invasões Franceses, os soldados do General Junot a esbulharam das suas  riquezas para assim recomporem o seu cofre depauperado.
Conta-se,então, que só uma rica Custódia de ouro – que hoje ainda existe – e uma valiosíssima Lâmpada (vistoso e artístico candeeiro de prata que descia do tecto alumiando bruxuleante a capela do Santíssimo )  se salvaram ,porque um tal Malaquias –O Raposo –, antecipando-se à soldadesca francesa, as encapotou na batina, levando-as consigo e as enterrou. Só passados muitos anos, vendo que o perigo tinha então já passado, resolveu desenterrá-las para as entregar ao Prior.Que muito agradecido pela esperteza do acólito, logo mandou preparar grande festa para celebrar o acontecimento do retorno das valiosas peças, festa com direito a pregão prodigamente trombeteado pelos párocos das redondezas, que do alto dos seus púlpitos prometiam foguetório de arromba, procissão solene que fosse testemunha da virtude da hora e a que não faltaria o ignito dominicário frei Elias,  cuja voz tonante faria ribombar os Evangelhos mailas ameaças da Santa Inquisição alevantando abundosas tremuras em todos aqueles, que pecando,  tresmalhados ,andariam mais perto de trambolhão no caldeiro onde  frigiam as almas penadas,do que no azul celeste do paraíso por onde ricos e pobres se passeiam, irmanados, na dádiva de graças ao altíssimo. Vá-se lá acreditar. Mas nestas coisas do alto mais vale precaver, do que ver .
Tanto alvoroço faria acorrer à Vila gentiaga estranja para render tributo aos tesouros que voltavam a arejo, para regalo dos fiéis crentes, aboletados por toda a vila em palheiro de compadre, de amigo ou de simples conhecido, tudo gente de boa crença e fulanagem . Andara o povo em grande folgança, a doidejar havia já três dias, com visita obrigatória à esprândiga Igreja que aperaltada com vestes de gala  mostrava, envaidada,as relíquias a quantos as quisessem admirar, um ror de gente.
No final da festarola, era já segunda feira ,dia para estas gentes voltarem à labuta diária  depois de reconfortados com a missa da madrugada, ainda os galos  cucuritavam  nos poleiros , na Igreja restavam  abusacadas  apenas algumas beatas que ouvida a missa, ali ficaram a fazer as suas rezas –e assim palrando – esperavam pela missa seguinte, da manhã ;que «duas sempre reconfortavam mais do que uma só » .
Como eram mulheres de palanfrório, daquelas que todas as tardinhas vinham ao«rebate» contar as «últimas», aproveitavam aqueles momentos para pôr a conversa em dia, pois que a festança  as  afastara daquele convívio diário da má língua, onde as bocas baladeiras falavam «disto e daquilo… desta ou daquela –de toda a gente do sitio» .O tempo dava para isso; era tanto que ainda crescia para rezar um pai nosso e três avé marias » 
-Oi.. chopa!- olha para quem entrou… –disse às tantas a Maria Calatró da Malhada, interrompendo a conversa, acto contínuo virando-se para a Josefa do Arnal que ali estava engrunhada, encapuchada  no xaile de burel que lhe cobria a cabeça  como se o frio da manhã a tivesse entorpecido,ao tempo em que indicava dois indivíduos que,de escada na mão,com umas cordas aos ombros, tinham entrado na Igreja. Onde ainda, apenas  a luz mortiça das velas e as das lamparinas da majestosa Lâmpada, quebravam o negrume. Tinham parado debaixo da mesma assumindo um ar  de consternação e espanto, dizendo em voz alta  um para o outro, de modo a que as «beatas» ouvissem:
- Ora vai-te …que raio de negócio fizemos… Quem é que a há-de limpar por semelhante preço?! …dizia …o mais baixote, parecendo arrependido com o negócio. Logo responde o outro :
-Bem… já que justamos o preço, agora não há nada a fazer …Toca a baixá-la que se faz tarde…diz o outro ,homem de barba cerrada ,de aspeito desconfiado, olhar de aspe decidida a saltar sobre a presa ou fugir lesta, se inimigo se abeirasse .  
E se melhor o disse, mais rápido o fez : pondo mãos á obra subiu a escada e arriou a Lâmpada perante os olhares assarapolhados da Josefa e amigas, logo a metendo num saco e saindo tranquilamente da igreja, de escada às costas …sobraçando ao ombro o saco onde restava a «lâmpada».
-Estais a ver …«chopas», como o Senhor prior manda tratar das coisas da Igreja para esta luzir ?!…diz a Josefa Carqueja para a Calatró ….E e agora « inda hás-das dizer que o «home» é um mancatufe que nem prás novenas serve . És uma mal «dizente» …raios ! -que ainda hás-de ir «estorricar» no fundão do inferno …«morrendas se não falendas» –VADE RETRO SATANÁS .
Tocadas as sete badaladas da manhã, o Prior lá veio com o sacristão para rezar a segunda missa do dia.
 Vinha ofegante o  abade, face espaçosa onde ressaiam as bochechas  avermelhadas que uns diziam ser do afã do ministério ,mas que outras, maldosas, diziam ser fruto das barrigadas das caçoilas do carneiro avinhado.Ou de se  alambazar – à farta! –com a chispalhada que servia de lastro ás enguias de escabeche, tudo regado por tinto farto vindo lá das bairradas, que lhe provocava  aziumados borbotões.O cabeção, manchado pelas  manápulas pouco asseadas que tentavam aliviar o nó de enforcado, inchava-lhe  o pescoço, exsudando-lhe os refegos do pescoço que serviam de caneja para o suor que escorria para a sebada sotaina ruça. . 
  É então que a Calatró , alvoroçada  e já  desconfiada de tanto cuidado do prior, pois no seu entender ”não era «arrais» p’ra tão grande barca”, lhe salta ao caminho e diz :
-“oh!... senhor Abade .. tanta pressa para quê( ?!) santo Deus …,a limpeza podia esperar mais um«poiquinho» e acabar-se a festa com a nossa lâmpada, cá !...
-que limpeza estás tu a dizer ?.. ,oh mulher!…e de que Lâmpada…está para aí a falar?!  resfolga o padre João dos Mártires.
-A que o senhor Prior mandou «alimpar» - «hom’ essa» !- que estes olhos que o chão hão-de comer, viu ali … e « q’uinda» agora a levaram ,a mando de V. Reverência » …responde a Calatró apontando para o tecto vazio da igreja. 
E foi então que o Prior olhou para o sitio onde era suposto estar a Lâmpada e, vendo-o vazio, de olhos esbugalhados, gritou :
-Ah! Ladrões. Ah cães  que me roubaram… …grita o aporrinhado abade , vermelho como um «pilado da praia »  logo se «arriando» das pernas» ,caindo para o lado…a bufar em  apoplético estertor.
-Ide depressa buscar «auga» da benta …que o pobre homem vai-se … grita a Luísa dos Sete Carris para as restantes, ao tempo em que amparava o desfalecido Abade nos seus braços de «pimpona  pescadeira» .
-Que vá… «olhendas»!… é como a Lâmpada ,«assome-se» que é um ar que lhe deu …logo diz a Calatró que não perdoava ao Prior tê-la um dia mandado para casa onde, disse, “tinha mais que fazer que estar ali sentada no rebate da Igreja á espera da missa da madrugada”. .E logo a Calatró , acrescenta :
-q’uinté» tenho mais pena da Lâmpada que do «corvo » que não faz falta aos filhos, que os  não tem ,referindo-se ao pobre abade que, pouco a pouco , depois de «rebaptizado» pela Josefa, começava a dar acordo de si. Uns gorgolhões de cachaça que o sacrista tinha ido, lesto, buscar ao passal, acabaram por recompor o pobre diabo.  
-Ai! … filhas …diz a Luísa …desta vez nem o Raposo nos vale!

Em Ílhavo, durante três dias, os sinos dobraram a finados por ordem do Prior João dos Mártires ; tantos…quantos os da festa. 
A Lâmpada – essa – levada pelos larápios, levou um sumiço …
Até hoje.

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Já sabes : quando quiseres fazer corar de vergonha um «ílhavo», basta dizeres :
-T’imbora» homem …que és da «Terra da Lâmpada »

Mas olha !...segue um conselho :- foge da terra ,não te vá acontecer ficares pendurado na borda ….que a um «ílhavo» desembolado, nem o campino de «Garret»,habituado a suster os cornigeos brutos , consegue «fazer peito» ….

ALADINO 
  

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