quarta-feira, janeiro 01, 2025

(QUANDO O   INEM ...ERA OUTRO....)


O parto na «labrega murtoseira”


E lá voltou o tempo tristonho, de uma paz podre, belicoso, que, mais do que incomoda, envelhece (-nos).

Há que reagir à maldade dos deuses. E saltar fora do afecto modorroso dos lençóis quentinhos, e … «navegar».

A ria está quieta como um gato enrolado, esquecido de si e do que se passa à sua volta. No nosso tempo, meses que tinham R, eram meses de «cricalhada». Esta semana, apesar do dito R estar no mês, agora, as autoridades vieram decretar proibição do «crico», fora de casa. Parece que aquela alga que pinta de vermelho, adiantou o período de proibição. Por isso a ria está vazia, como mulher visitada pelo dito. E logo posta de lado pelos amantes. Raio desta cambada. Bem podiam afagá-la, acarinhá-la, e renderem-lhe visita. Ao menos de cortesia. Ingratos. 

Mas hoje era dia de charla. E muito me admirei quando ao meu encontro, além da Zefa e da Bernarda, vinha uma outra vistosa faininha, logo apresentada como a Joana «Labrega».

 -– Olhe cá: – para mudar de conversa, trouxemos a Joana «Labrega». Para ouvir uma história, linda. Mesmo linda. Vai ver. Aqui, a Joana, foi filha do arrais murtoseiro Agostinho «O Capa Cavalos». home daqueles que dizia:

Ah! mar estás a roncar (?)… espera que já  te mijo  em cima….

O Agostinho era casado com a Deolinda «Patacão». Ora às tantas esta emprenhou, e o certo é que passou muito mal, a rapariga.

E vai um dia a coisa complicou-se. Chamada a manobradeira do sítio, a ti Tuna «a Parideira», esta logo percebeu que a criança estava atravessada na «vaga», aos baldões e não havia maneira de a trazer cá para fora. Nem com «reboque». Chamando o Agostinho de parte, segredou-lhe:

– Temos aqui um estupor de lanço que ficou no peguilho. Se não levamos a Deolinda a Aveiro, já, ao hospital, vossemecê fica sem rede e sem peixe.

– Mas como (?) … balbucia o arrais que nunca se vira num momento daqueles. Sem estrada, sem transporte só lá para a noite dentro… se

 – É tarde, interrompe a Tuna. Muito tarde. Temos uma.... duas escassas horas. C’a Deolinda não óguenta mais. Vá pedir ao Ti Rigueira «o Murtoseiro» que ele leva a pobre, a Aveiro, na sua bateira «Labrega». Não há outro como ele, a voar sobre a ria, Ti Agostinho. Vá (!) meneie-se raio de homem, parece um xana, aí especado.

O Agostinho deu da perna e passado um pouco voltou com o Rigueira «Murtoseiro» que logo ordenou:

–  Vá, peguem na cachopa e levem-na ali à borda, que eu vou preparar o «camarote». A «Labrega» era uma daquelas bateiras que os murtoseiros traziam com eles, para os lanços do «saltadouro». Elegante na sua bica, toda «embreada», servia de «casa» ao pescador. Que lhe armava no castelo de proa, o toldo espalmado (pata de rã) com que se protegia do vento frio da noite. O Rigueira aconchegou a manta, armou o toldo, e quando trouxeram a Deolinda, foi só poisá-la ao de mansinho,ao de labaró, na «Voadora». Assim se chamava a «Labrega». Toda pretinha, só com o raminho a enfeitar a cruz erguida na bica da sua elegante proa. A «Labrega» do Rigueira era a única que tinha uma vela bastarda, calcada à proa, na sarreta, e verga atirada bem lá para o alto.

Vela enfunada, bem calcada no punho a esticar a testa da vela, escota na mão a comandar a «enchidela», toste bem ferrada, e a «Voadora», era, nas mãos do experimentado Rigueira, uma galgadora da ria.




O Agostinho sentado no «traste» olhava pela Deolinda deitada a seus pés. E os três embarcados atiraram-se à emposta. Punho da escota bem ferrado, cabo do xarolo de sotavento laçado na sarreta barlavento, trilhado nos dedos de pé para comandar a orça, num ápice chegaram ao canalete do «Oudinot». Mas aqui, a Deolinda, fosse pelas batidelas da bateira a adoçar a vaga, fosse pelo respingos da ria que entravam, bateira adentro, diz sentir que:

– Ai meu Deus e nossa Senhora do Bom Momento, «ela» já deu volta e vem aí……

O Rigueira acosta a «Labrega», fundeia numa revessa e pede ao Agostinho (que lívido, hirto, ficara, para ali especado).

– Vá, que a «rede está à borda» e é preciso separar o «mexoalho» do peixe branco. Salta lá para trás homem, estipor que só tens chaniço para o mar. De resto és um empecilho cheio de trízia.

E lavando as mãos na auga que, aquecida pelo vento suão, estava morna, abeirou-se da Deolinda e ordenou:

-Vá lá cachopa: ferra aqui as mãos nos escalamões, retesa-me esses pés no paral, e acospe-me cá para fora o regordido que trazes aí dentro. E tu Agostinho (!): forra a macola com este camisote de linho, com que fui ao altar, e prepara-te para aparar o rebento. Passa-me aí a naifa de rasgar o porfio para cortar a mão da barca ao redame, e «a» libertar.  

E se melhor dito, melhor feito. Eis que de entre as pernas da Deolinda se escapa uma pimpolha a berrar como uma esgalmida. Logo o Rigueira mete o vertedouro na ria, e eslavaça a paxoneira (pois de facto era uma bonita pimpolha que acabara de nascer na «Labrega»).

– Ora, diz a Zefa, virando-se para a Joana que, sorridente ,ouvira toda a história do enredo do seu nascimento,:

 – agora veja, aqui tem o pimpolho nascido às mãos do parteiro Rigueira, a Joana «Labrega».

Eu olhei a para a Joana, embeiçado. Os seus olhos d’água eslavaçados pelas águas da ria, amêndoas doces a boiarem, inquietos, num rosto muito moreno, melaço, vivo e brilhante, eram sublinhados por um cabelo revolto. Negro… negro como o embreado da «labrega» do Ti Agostinho.



Na «labrega» do Rigueira

Nasceu a Joana sem dor

Foi na barca toda de negro

Que nasceu o meu amor.


Senos da Fonseca

                



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