Hoje lembrei-me do Labareda . do Labarede e da Ti Norta.
( De . O LABAREDA)
Truca... truca... bole que
bole... enregelada e encharcada pela surriada59 que a açoitava, a Maria
resolve, como tantas vezes acontecera, bater à porta da «ti Norta da Bruxa»,
habitual pousio dos grupos das companhas e viandantes, em cuja varanda60 da taberna escorropichavam 61
um copo de três62, último alento para a caminhada até
à vila.
Ela, a simpática «ti Norta»,
nem era lá, nada disso, de bruxedos. A rapaziada d’ ibalho63 – o Mano, o
Sacramento, o Saguncho64 & companhia – é que vinham com as fidalgotas 65da Costa
Nova, e com o intuito de as amolecer e tornar navegáveis66, lhes diziam
para tomarem da sua jeropiga.Que, garantiam a pés juntos, tinha bruxedo de amor67.
- Era bruxedo era!... Era mas
é para as chicharem68 ao colo, as boquilhas·, que p’reciam69 umas augadas70 - ia pensando a «ti Norta» enquanto enchia os copitos, postos em
fila em cima do tampo. Era mas é p’rás engrominharem71, assegurava.
Já noite, a barca partira. A
«ti Norta» não esperava alma penada saída daquele iroso72 tempo, pelo que, a simpática velhinha, fechara a porta da venda.
Que logo se apressou a
escancarar, quando sentiu o chamamento da Maria. Aberta a porta, do escuro,
recortou-se a «ti Norta» segurando o candeeiro a petróleo que esparralhava73 uma luz
mortiça, bruxuleante e enfezada, mas suficiente, contudo, para se ver na sua
cara um sorriso acolhedor. Um andar ainda desembaraçado, embora aqui e ali uma
ou outra tropeçadela com os tamancos ferrados. Cabelos de um branco intenso,
prateado, aparecendo por debaixo de um lenço preto, de ramagens amareladas,
amarrado em volta de um rosto redondo, tisnado pelo sol e pela salsugem, onde
sobressaíam duas maçãs rosadas. Deixando aparecer duas covitas, quando sorria,
prazenteira e bem disposta. Era assim a boa mulher, sempre de serviço, para os arrastados74.
- Ah! criatura que inté
p’réces - amode75 - vir lá dos infernos ! Entra alma penada. C’a ta deu76(?!), p’ra vires com esta trabuzana desarcada.
P’réces fugida a lobisome, c’um raio ! Aviste algum ?
- Cal-se aí, «ti Norta». Astrazei-me77 por mor do
meu Miguelito benza-o Deus e lhe acuda o S. Geraldo que nunca pensei que nosso
Senhor me castigasse tanto, pelos pecados que vou fazendo na vida – t’a renego, mafarrico78 ! - disse a
Maria enquanto se benzia três vezes.
- Entra lá cachopa. Tira um
púcaro de água quentinha do panelo79, e vai-ta tomar um banho. Leva este
camisote de dormir e, óspois 80, vem p’ró borralho prantar-te81que tenho lá um «caldo de
conduto» com que te aqueço as entranhas, e engano a fome. Vá, maneia-te 82 que eu estou esgalfa 83, e vou andando c’uns jaquinzinhos84 de escabeche85, que óscreceram 86 d’onte87.
Tomado o banhito na celha, a
Maria atou uma corda ao camisote que lhe assentava compridote88, apressada a sentar-se no mocho, perto da lareira, onde uns
cavaquitos ardiam, fagulhosos89, aquecendo
a casinha90, ao mesmo tempo que distraíam
o olhar. Enquanto isso, a «ti
Norta» limpava com o sorrascadoiro91 a cinza do borralho,
juntando-a num montinho, para ao outro dia a despejar no quintal, na horta dos
alhos.
Retirado da trempe e destapado o panelo de onde fluía um odor que pareceu à Maria
descido das alturas, com a cônchara, a
«Velhinha», boa acolhedeira92, retirou um atafulhado caldo de sustância 93. Uns feijões vermelhos serviam de
lastro a um naco de toucinho entremeado94, escondido no meio de umas couves tronchudas, a que se juntavam
umas rodelas de linguiça95 que conferiam ao caldo, sabor
divino.
Finda a vitualha - o caldo
bem aviado - que teve o condão de retemperar forças, a «Norta» retirou do lume
uma cafeteira enegrecida onde bolhava um café misturado com cevada. Que verteu
para uma meia, para assim coar o trote, despejando-o em duas malgas de «cavalinho»96, botando-lhes 97 lá para dentro pedaços de pão de centeio, que embebidos na mistura
líquida, negra, tinham o dom de espevitar o bebericador, criando disposição
para um dedo de conversa, ao caso, entre duas falastroas98, daquelas de, morrendes s’a não falendes99.
- Atão nobedades100 lá da bila101? Disqu’102 «Afecta» está outra vez pranhuda103 do Padre
Jordão. Raios!... de cadela aciada104... q’apréce
uma simprinhas105, a beata.
Sempre com o pé a puxar p’rá trízia106. E o sacripanta108, invez109 de
guardar respeito à nossa
Senhora, com quem diz «casara», anda é a embarrigar 110a eito111, tudo o que tenha saiote d’alevantar112.
Por falar em embarrigar ;
aqui òstrasado113, a Rosa «Gueira», contou aqui na venda, que o Balacó esfanicou a cancela114 à Amélia
«Cachina», e iu-se115 lá p’ró sule116, sem dar òstifação117, deixando a
inxerida120, a oivir121 as marmurações 122 - sua esta sua aquela123 - à espera de
um esgalhudo124 que a queira naquele estado, fora dos conformes.
- É, pois astão125 ...e não foi tómorólha126 nenhuma, «ti
Norta». Estava mesmo a ver-se que tal assucedia. Ele era um taralhão 127 ; p’racia128 pião a dar rapóla129 .
- E por cá ? - deu de
perguntar a Maria, sabe-se lá porquê. Ou já vai saber-se. Esperem, que neste
mundo tudo tem explicação.
- P’orqui130 nada òsdenovo131. O Tóino vindo lá do norte, inté p’réce que pensa ficar. Mas inda 132 não arranjou testo para a panela133.
- Ora vai daí.
«Testos» é o que há mais p’rài134 - diz a Maria parecendo desinteressada da
novidade.
- Pois é ...rapariga, e às
vezes as que mais desdenham são as que mais querem comprar - responde a velhota
deitando um olhar malicioso e inquiridor ao sorriso bonito que tinha surgido na
carinha laroca135 da Maria - para logo acrescentar :
- Sabas o c’a te digo136 : o rapaz não é mancatufe137 nenhum, e inté p’réce 138que teve mãe fidalga. Poucos
andam por aí da sua ogalha 139, oiviste 140?! Não é despescado141 nenhum ! Bota142 olho p’ràs tainhas a fazer borlido 143, à tona
d’auga, mas só p’réce que procura peixe lá do
fundo, peixe branco, como virgem. E mofa c’uas chaputas144. Que não são
p’ró seu tempero, como fez à Rosa «Delambida», doidinha d’astrepar145 por ele acima, como se o rapaz fosse uma enxárcia p’ra todas assuvirem146ao mastaréu.
Os olhos de Maria faiscaram,
desprendendo um fulgor de desejo vindo lá do íntimo do seu ser, como que
dizendo : «aqui estou !».
(....)
Nota: todos os “ilhavismos”
estão,no original, traduzidos.
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