sexta-feira, agosto 23, 2019



-->
S. Bartolomeu: dia 24 de Agosto, dia do diabo à solta






Nem o despertador precisou de me chamar, nem o galo de cantar; parti no horário em que sabia apanharia as «faladeiras». E a meio do percurso, lá vinham as duas simpáticas pescadeiras, lestas e ainda desempenadas das pernas. Notei que vinham a gesticular fortemente, parando de vez em quando, especadas na marginal.
Máquina a meia força, fui-me aproximando. Pára a máquina!..., devo ter pensado. E fiquei a pairar, à espera que as duas, a Zefa e a Tibéria, se aproximassem. E leme a bombordo, atraquei ao de labaró, e dei os louvados:
- Louvadas Vossorias, gente fina desta praia velhinha; mas ainda bonita e asseada como o são as  suas cachopas.
- Ah seu endrominador, você não perde tempo para, ainda não ter passado a mão da barca, e já está na mangação, seu camanduleiro.
- Eh Ti Josefa, essa de camanduleiro é que eu nunca ouvi. Astão o que é lá isso?  -perguntei interessado no léxico vernáculo.
- Ai não sabe?!... pois… pois… eram os rapazotes enganadores. Ou as beatas na camandula: de terço de contas grossas à vista, as banguinas a fingir que iam a rezar, aquelas calamantronas. O que elas estavam era a fazer horas para irem ao confesso, onde o Padre Horácio lhes despertava a cocegueira na cricalhada. Que eu diga, era um grande rascoeiro. Que diga-se, dava abêgo a todas, astisfazendo-lhes as necessidades.
De boa boca… tudo o que vinha à rede era peixe, desde que tivesse guelra avermelhada. Não havia beta, saltarina ou cantadeira de missa, que lhe escapasse. Trambolhão por trambolhão, ia-se o paraíso. Que a Eva também era danada p’rà cambalhota. E p’ra home e mulher mais albardados, brincadeira melhor Deus não inventou. Disques !….
- Ah mulher, vê lá como falas aqui com o senhor. És mesmo uma desausserbada. Língua ruim e envenenada. Emboitas qualquer um com a tua língua de vinagreira.
- Olhe aqui, amigo. Olhe c’a vida na companha não era só um enxogalho de má língua. Havia momentos de inquisilar a alma. Ó!... Zefa, alembras-te daquele dia do S. Bartolomeu? Já ouviu falar nesse santo?
- Olhe que sim, respondi. Quando era rapazinho, nesse dia, as mães nem nos deixavam sair de casa. Diziam que andava o diabo à solta… Ainda me lembro que, num deles, andava um tenente muito emproado, muito esturto, no cavalo, ali perto da antiga esplanada, a mostrar-se às garotas (que olhavam mais para o cavalo que para o pelingrino). O animal espantou-se, tomou o freio nos dentes, e foi como trovoada por ali até casa dos Taveiras. Estacou. E vai o pavante «tenentezeco» avoou e aterrou no Bico, no meio do lodaçal, emboitando a farda toda.
- Mas olhe c’até andava o raio malino à solta, desembolado. Eu conto-lhe:
(…) no dia desse santo era costume não se ir ao mar, pois, diziam, acontecia sempre que o pecadito fazia das dele. Mas, naquele ano, as semanas tinham sido tão más que já havia fome entre as gentes. O arrais Ti Cruz reuniu a companha e botou faladura:
- Eh…gente: eu ando desaquietado, esta vida está de morte. E morrer por morrer, mais vale morrer no meio daquele estupor, que por aqui, à fome. Por isso eu quero ver se tenho homens da minha ógalha. Ou meninas virgoleiras, com medo de serem espetadas com a padela. Maneiem-se os que querem embarcar. Fiquem os inxuns a rezar ao belzebu.
- Aqui me tem, Senhor, avançou o Bernardo rompendo a fila dos brejoeiros hesitantes.
 Cabeça alevantada, peito firme, alto como uma torre, forçudo capaz de erguer um mansarrão pelos gorgomilhos, olhos verdes da cor do mar, quando manso, mas vulcão de onde saíam chispas quando irado. Ao verem o Bernardo, o Carlos, o «Negrote», o «Ranhoso» … e outro e outro…deram passo em frente.
- Ti Joana, encaneire o pessoal, e vamos lá com Deus, que ele nos cubra com o seu divino capote, vamos dar lanço nem que seja para o escabeche: – disse o Ti Cruz para a «arraisa» Joana, a chefa da companha em terra.
Foi ordem que provocou uma restolhada. Redes p’ra dentro, sacada à borda desenvencilhada, mangas enroladas, a que se juntou o càlão e a mão da barca. Chama-se o abegoeiro. Que trouxesse quatro juntas de hercúleos bois, pois há pancada rija; e meter o meia-lua a vogar obriga a que a muleta vá até à borda, e que os bois, enfeixados nas armelas, metam barriga mar dentro para dar impulso. E assim ajudar a embarcação a boiar. A entrar mar adentro.
E foi então, quando as duas juntas estavam com água pelos ruços, borregando em ir mais dentro, aguentando a vergastada e o aguilhão da vara inclemente que lhe zurrava nos costados, que uma vaga atravessa o meia-lua. O Arrais grita num vozeirão:
- Rema! Riba… Ó…Ó … riba… Eh! raios… diabos … riba para a vaga… Seus langões. Dai força aí no mieiro, ou ides hoje todos para o inferno das profundezas.
Numa arrancada, mistura de vontade com medo, o barco dá um esticão para aproar à vagalhoça. Mas presa à embarcação, a junta de bois de estibordo é arrastada com a ré da embarcação. E eis que os bois perdem pé. Cabeça e cornadura de fora, tentam ferozmente desenvencilhar-se do cordame que os prende à embarcação. Num repente, vê-se o Bernardo astirar-se à auga e, com a navalha, libertar do barco e do cabeçalho, os animais. E nadando para terra, resoluto, entrega a ponta da corda ao pessoal, que água até ao pescoço, alam o pobre animal para terra.
- E o outro? Você sabe lá(?!), diz a Zefa, inquirindo-me…
- Pois e o outro Ti Zefa… adianto, pronto a ouvir o resto deste quadro vivo, expressivo, luta de gigantes com o mar.
- Pois: a Ti Joana mulher d’um carago, nadadora exímia, tinha-se atirado e saltara para os costados do boi que resfolegava. E atirando-lhe o saiote preto para os olhos, filada ao cornígero animal, forçara-o a virar-se para terra. O animal, sentindo areia por baixo das patas pareceu ganhar alento. E zás ala que se faz tarde. Recuperando «pé», ajudado pela vaga e pegado pelos cornos, pela Joana, o animal desenvencilha-se do mar e parte em corrida resfolegante pelo areal adentro. Vai por ali fora e… de repente escafedeu. Estaca e a boa arraisa Joana voa e aterra de barriga no areal. Só que o saiote e fralda ficam espetados nos cornos do boi. E a Joana, esparralhada no areal, mostra o alvo traseiro. Bonito e redondinho. Firme, parecia montanha amaciada por mão divina.
- E quereis saber Senhor(?): entra a Tibéria de quarto. Pois todos aqueles zamparinas, gadagem que cobiçava tudo que fosse mulher, virara a cara (e os olhos!) libertando a Joana de corar de vergonha, ao ver-se exposta como a sardinha na sacada.
- Todos? Todos, não, diz a Zefa  com um riso malino na cara. Não!... o Bentinho «Cagaréu», que diariamente mirava guloso aquela mulher tão liró, parecia hipnotizado ao ver a meia-lua da Joana tão ajeitadinha e torneadinha. E ògadinho não tirava os olhos daquele quadro que parecia um retábulo real. Até que a voz da Joana trovejou:
-Que estás a olhar, pelintra? Gálico(!), nunca viste o traseiro da balcória da tua mulher? Queres chari-lo? Anda, esculhambrado, astreve-te que eu filo-te pelo gasganete e amanho-te a tripa que tens entre pernas para escasso.
- Ah,  chopa,  morrendas se não falendas. Que tinhas tu de comentar que Bentinho viu o «rabinho» de anjo da Ti Joana? Òspodias ter terminado sem teres emboitado a estória.
Assim: quando a arraisa Joana se pôs de pé, já o meia-lua atravessara o mar quebrado e fazia emposta nos longes  à procura do cardume…

SF












Sem comentários:

A « magana » que espere....  Há dias que  ainda me conseguem trazer interesse renovado, em por cá estar  por mais uns tempos. Ao abrir logo ...