S. Bartolomeu: dia 24 de Agosto, dia do diabo à solta
Máquina a meia força,
fui-me aproximando. Pára a máquina!..., devo ter pensado. E fiquei a pairar, à
espera que as duas, a Zefa e a Tibéria, se aproximassem. E leme a bombordo,
atraquei ao de labaró, e dei os
louvados:
- Louvadas Vossorias,
gente fina desta praia velhinha; mas ainda bonita e asseada como o são as suas cachopas.
- Ah seu endrominador, você não perde tempo
para, ainda não ter passado a mão da barca, e já está na mangação, seu camanduleiro.
- Eh Ti Josefa, essa
de camanduleiro é que eu nunca ouvi.
Astão o que é lá isso? -perguntei
interessado no léxico vernáculo.
- Ai não sabe?!...
pois… pois… eram os rapazotes enganadores. Ou as beatas na camandula: de terço de contas grossas à vista, as banguinas a fingir que iam a rezar,
aquelas calamantronas. O que elas estavam
era a fazer horas para irem ao confesso, onde o Padre Horácio lhes despertava a
cocegueira na cricalhada. Que eu diga, era um grande rascoeiro. Que diga-se,
dava abêgo a todas, astisfazendo-lhes as necessidades.
De boa boca… tudo o
que vinha à rede era peixe, desde que tivesse guelra avermelhada. Não havia
beta, saltarina ou cantadeira de missa, que lhe escapasse. Trambolhão por
trambolhão, ia-se o paraíso. Que a Eva também era danada p’rà cambalhota. E
p’ra home e mulher mais albardados, brincadeira melhor Deus não inventou.
Disques !….
- Ah mulher, vê lá
como falas aqui com o senhor. És mesmo uma desausserbada.
Língua ruim e envenenada. Emboitas qualquer um com a tua língua de vinagreira.
- Olhe aqui, amigo.
Olhe c’a vida na companha não era só um enxogalho de má língua. Havia momentos
de inquisilar a alma. Ó!... Zefa, alembras-te daquele dia do S. Bartolomeu? Já
ouviu falar nesse santo?
- Olhe que sim,
respondi. Quando era rapazinho, nesse dia, as mães nem nos deixavam sair de
casa. Diziam que andava o diabo à solta…
Ainda me lembro que, num deles, andava um tenente muito emproado, muito esturto, no cavalo, ali perto da antiga
esplanada, a mostrar-se às garotas (que olhavam mais para o cavalo que para o pelingrino). O animal espantou-se, tomou
o freio nos dentes, e foi como trovoada por ali até casa dos Taveiras. Estacou.
E vai o pavante «tenentezeco» avoou e
aterrou no Bico, no meio do lodaçal, emboitando
a farda toda.
- Mas olhe c’até
andava o raio malino à solta, desembolado. Eu conto-lhe:
(…) no dia desse santo
era costume não se ir ao mar, pois, diziam, acontecia sempre que o pecadito fazia das dele. Mas, naquele
ano, as semanas tinham sido tão más que já havia fome entre as gentes. O arrais
Ti Cruz reuniu a companha e botou
faladura:
- Eh…gente: eu ando desaquietado, esta vida está de morte.
E morrer por morrer, mais vale morrer no meio daquele estupor, que por aqui, à
fome. Por isso eu quero ver se tenho homens da minha ógalha. Ou meninas
virgoleiras, com medo de serem espetadas com a padela. Maneiem-se os que querem
embarcar. Fiquem os inxuns a rezar ao belzebu.
- Aqui me tem, Senhor,
avançou o Bernardo rompendo a fila dos
brejoeiros hesitantes.
Cabeça alevantada, peito firme, alto como uma
torre, forçudo capaz de erguer um mansarrão pelos gorgomilhos, olhos verdes da cor do mar, quando manso, mas vulcão
de onde saíam chispas quando irado. Ao verem o Bernardo, o Carlos, o «Negrote»,
o «Ranhoso» … e outro e outro…deram passo em frente.
- Ti Joana, encaneire
o pessoal, e vamos lá com Deus, que ele nos cubra com o seu divino capote,
vamos dar lanço nem que seja para o
escabeche: – disse o Ti Cruz para a «arraisa» Joana, a chefa da companha em
terra.
Foi ordem que provocou
uma restolhada. Redes p’ra dentro,
sacada à borda desenvencilhada, mangas
enroladas, a que se juntou o càlão e
a mão da barca. Chama-se o abegoeiro. Que trouxesse quatro juntas
de hercúleos bois, pois há pancada rija; e meter o meia-lua a vogar obriga a que a muleta
vá até à borda, e que os bois, enfeixados nas armelas, metam barriga mar dentro para dar impulso. E assim ajudar
a embarcação a boiar. A entrar mar adentro.
E foi então, quando as
duas juntas estavam com água pelos ruços, borregando em ir mais dentro,
aguentando a vergastada e o aguilhão da vara inclemente que lhe zurrava nos
costados, que uma vaga atravessa o meia-lua.
O Arrais grita num vozeirão:
- Rema! Riba… Ó…Ó …
riba… Eh! raios… diabos … riba para a vaga… Seus langões. Dai força aí no
mieiro, ou ides hoje todos para o inferno das profundezas.
Numa arrancada,
mistura de vontade com medo, o barco dá um esticão para aproar à vagalhoça. Mas
presa à embarcação, a junta de bois de estibordo é arrastada com a ré da embarcação. E eis que os bois
perdem pé. Cabeça e cornadura de fora, tentam ferozmente desenvencilhar-se do
cordame que os prende à embarcação. Num repente, vê-se o Bernardo astirar-se à auga e, com a navalha,
libertar do barco e do cabeçalho, os animais. E nadando para terra, resoluto,
entrega a ponta da corda ao pessoal, que água até ao pescoço, alam o pobre animal para terra.
- E o outro? Você sabe
lá(?!), diz a Zefa, inquirindo-me…
- Pois e o outro Ti
Zefa… adianto, pronto a ouvir o resto deste quadro vivo, expressivo, luta de
gigantes com o mar.
- Pois: a Ti Joana
mulher d’um carago, nadadora exímia, tinha-se atirado e saltara para os
costados do boi que resfolegava. E atirando-lhe o saiote preto para os olhos,
filada ao cornígero animal, forçara-o a virar-se para terra. O animal, sentindo
areia por baixo das patas pareceu ganhar alento. E zás ala que se faz tarde.
Recuperando «pé», ajudado pela vaga e pegado pelos cornos, pela Joana, o animal
desenvencilha-se do mar e parte em corrida resfolegante pelo areal adentro. Vai
por ali fora e… de repente escafedeu. Estaca e a boa arraisa Joana voa e aterra
de barriga no areal. Só que o saiote e fralda ficam espetados nos cornos do
boi. E a Joana, esparralhada no areal, mostra o alvo traseiro. Bonito e
redondinho. Firme, parecia montanha amaciada por mão divina.
- E quereis saber
Senhor(?): entra a Tibéria de quarto. Pois todos aqueles zamparinas, gadagem que cobiçava tudo que fosse mulher, virara a
cara (e os olhos!) libertando a Joana de corar de vergonha, ao ver-se exposta
como a sardinha na sacada.
- Todos? Todos, não,
diz a Zefa com um riso malino na cara.
Não!... o Bentinho «Cagaréu», que diariamente mirava guloso aquela mulher tão
liró, parecia hipnotizado ao ver a meia-lua da Joana tão ajeitadinha e
torneadinha. E ògadinho não tirava os
olhos daquele quadro que parecia um retábulo real. Até que a voz da Joana
trovejou:
-Que estás a olhar,
pelintra? Gálico(!), nunca viste o traseiro da balcória da tua mulher? Queres
chari-lo? Anda, esculhambrado,
astreve-te que eu filo-te pelo gasganete e amanho-te a tripa que tens entre
pernas para escasso.
- Ah, chopa, morrendas se não falendas. Que tinhas tu
de comentar que Bentinho viu o «rabinho» de anjo da Ti Joana? Òspodias ter terminado sem teres
emboitado a estória.
Assim: quando a
arraisa Joana se pôs de pé, já o meia-lua atravessara o mar quebrado e fazia
emposta nos longes à procura do cardume…
SF
SF
Sem comentários:
Enviar um comentário