A MATANÇA DO PORCO (naquele tempo)
De entre as memórias de rapazito
que, com frequência me ocorrem, a matança do porco é das mais duradouras, e uma
daquelas que, com mais intensidade, me ficou gravada para sempre. Garoto
despreocupado, inserido numa família onde as tradições eram - ainda! - para
durar, ia vivendo as peripécias do dia a dia, pouco me apercebendo, então, como era intensos e se fortaleciam, os laços
de amizade interfamiliar. E como
tradições sagradamente mantidas e renovadas, verdadeiros rituais, eram ocasião para conseguir fortalecer tal desígnio.
As relações familiares dos «Fonsecas», lavradores vindos com a
história da Vila, eram muito próximas e intensas, reforçadas por uma contínua
presença em casa de uns e outros, numa vivência onde a partilha era lei.
E nem um
facto insólito perturbou essa proximidade.
Refiro-me a que, o meu avô, o Prof.
Fonseca, ter sido deserdado, e ter perdido o Morgadio. Porquê? - quererá,
possivelmente o leitor, ser informado …
Pois por um rocambolesco caso de
amor; uma cena digna de romance Camiliano. Apaixonado pela Maria Rosa (que foi
minha avó),sua criada, moçoila bonita, rapariga de trabalho, simples, de poucas
ou nenhumas posses, decidiu romper com a oposição familiar ao casamento com
aquela que tinha as origens em família pobre de pescadores, os «Arrombas». Decidido a casar com ela, mandou
às malvas a recusa dos seus: abastada família de lavradores lá do Cimo de Vila que,
como era hábito nesses tempos - já tive ocasião de o contar em detalhe – escolhiam
para mulheres dos seus filhos –especialmente do primogénito, o Morgado – mulher
de cabedais idênticos, para reforço e engrandecimento da sua «CASA».
Ora, num belo dia, meu Avô, não
esteve com meias medidas e filou o padre (seu padrinho, um dos “40 maiores da vila”) pelo pescoço,
trancando-se com ele e com a Maria Rosa, na Capelinha da Sr.ª do Pranto, chave
do portal no bolso. Em frente ao altar da Senhora, avisou o fradaço:
-Vá!: -ou case-nos … ou encomende-se que vai de catâmbrias para o
inferno. Não me moa a paciência, e poupe a Senhora a espectáculos impróprios
para santas.
O pobre, que conhecia bem o afilhado
Professor, transido de medo perante as palavras que parecia, desferiam lume, e
do olhar decidido e convincente de meu avô – algo que era bem conhecido por
aquelas bandas –, logo se apressou a entaramelar o «in nomine patris …» para abençoar e tornar lícita, à luz divina, aquela
união. Desse dia em diante, a Maria Rosa - que não deixou, toda a vida, de
tratar seu marido por «Sr. Professor »-, foi uma mulher feliz, e uma respeitada
mãe de farta prole.
Apesar da perda do Morgadio - e consequentemente
de todos os bens - meu avô foi sempre reconhecido como o Patriarca - como o
seria depois meu Pai - acarinhado por
todos que o tratavam por «Padrinho».Venerado, respeitado e obedecido – quando
preciso ,fosse por um par de bem aconchegados cachações ou reguadas - nas
pequenas tricas familiares, sendo o elo de fortalecimento do clã.
Seu filho, meu Pai, tinha ainda «tiques» claros, reveladores da sua origem,
com uma paixão louca por tudo que dissesse respeito à lavra. Nos quintais lá de cima, tudo era simulado à imagem
de uma grande lavra: fazia-se farto
vinho – do enforcado –, que me
competia a mim e a meu primo calcar na dorna; cultivavam-se todas as espécies
de verduras; mantinham-se e renovavam-se, com um amor indescritível, árvores de
fruto das mais variadas espécies. Sebavam-se porcos com um desvelo como se
tratassem de animais de estimação (embora o destino destes fosse uma morte, morte
que quase parecia heróica, gloriosa). Recriava-se, dum modo muito real e muito
expressivo, uma casa de Lavoura, de
que a irmã Vicência – a tia Vé - era a administradora permanente e a incansável
obreira, nos momentos pós aulas…
Neste ambiente a matança do porco era uma verdadeira
festa, durando, no mínimo, três dias.
Muito antes da data aprazada para
o acontecimento, já eu acompanhava o meu pai a visitar, um a um, «os primos», em verdadeira via sacra com
o fim de indagar, e melhor comparar, o estado de desenvolvimento dos porcinos
dos primalhos.Já que cada qual pretendia
que o seu fosse, o maior e o mais vistoso de entre todos.E nisto “ cada bufarinheiro louva os seus alfinetes “,
é bem certo. «Primos» era «coisa» que
não faltava: - pareciam existir por todos os lados: Cimo de Vila, Cruzeiro,
Moitas, Vale d’Ílhavo, etc; as visitas sucediam-se, eram constantes, e sempre
que se batia à porta, depois dos abraços, era sacramental ouvir:
-Oh primo «doutor», já não vai daqui sem jantar. Que a «Maria» até
levava a mal. Vamos provar o palhete, enquanto ela prepara uma cabidela de galo,
de estalo.
As «primas Marias» -todas elas! - eram mulheres
governadeiras, escufenadas, mulheraças de brio, caprichosas no bem receber. Desempoeiradas
e breves, em ir buscar –e torcer o pescoço - ao melhor cantador da capoeira. E num
zás-trás, enquanto a conversa e as provas decorriam, já o bicho estrebuchava na
caçarola, cheirando que regalava. O que nos tirava todas as dúvidas –se é que as tínhamos ?! – de desertar.
Lá íamos então fazer horas para a
adega, no alpendre, para a prova do «enforcado»; retirado o espiche à pipa e
aparado o clarete no copo, a borbulhar, eles diziam – e a mim, confesso, me não
parecia - ser veludo a escorregar
gorgomilos abaixo. Vivinho, de fresco, ágil a deslizar, mais parecendo
canto celestial a pedir acompanhamento à altura : -um naco de chouriça entre
dois taleigos de broa cozida no dia,
tão rescendente que consolava. Vitualhas em que eu propriamente cascava, até me
refastelar. Mais uma saúde, mais lérias, vizinho que aparecia e fazia teima de irmos
provar «a sua pipa», o que valia é
que o dito era «água pintada», e, tal
como se bebia, também logo se vertia numa ida ali ao quintal, que já venho….
Claro que o fundamental – dar uma
olhadela ao bicho – lá era feito, mirando-se de todos os ângulos com o fim de «medir» o animal, e de dar palpites. Depois das provas o bicho até
parecia aumentar de bojo: -”quem bebe
pelo S. Martinho faz de velho e de menino”.
Chegada a hora, anúncio vindo lá
de dentro alertava para a prontidão da cabidela
malandra que fumegava na caçoila, já
albardada na mesa. Abusacávamo-nos na casinha da lavoura - cozinha do dia a dia -, à lareira onde chiavam
uns cavacos espevitados. Local onde o meu Pai insistia em ficar, apesar da pena da « prima Maria», desejosa de pôr os pratos de cavalinho na mesa aos ilustres
familiares (?!), guardados que estavam para as grandes ocasiões, no
aparador da sala. Por ali ficávamos a contar estórias, em mais um seroar. Às vezes, diga-se, nem sempre por mim muito
apreciado, já que lá se ia uma tarde própria para namoriscar, actividade para a
qual eu revelava, já então, muito mais credenciais do que para a «lavra». Mas
diga-se : entre umas horas de desvelo amoroso e uma boa cabidela, o diabo que
escolhesse. E depois, dias para namorar, eram mais que muitos. E para a
cabidela, nem todos. Só quando caía do céu tal iguaria. E nestas coisas, é bem
certo: antes desejo que fastio, que o
que é bom, não dura. E é bem verdade: - mais
vale ovo hoje, que galinha amanhã.
Mas voltando
ao bácoro…
“O olho do dono engorda o animal” mas certo é que era normal,
naquele tempo, os mesmos atingirem pesos, entre as catorze e as dezasseis arrobas.
Eram animais impressionantes. Para o fim já não
se tinham nas patas, vivendo deitados para a seba final, por vezes
alimentados à mão, já que nem tal exercício conseguiam fazer pelos próprios meios,
dado o estado de prostração provocado pela (excessiva)
obesidade. Deliberadamente provocada.
O dia da «Matança»
Chegado o dia, logo de manhãzinha,
caldeiros bem cheios de água eram postos na lareira da casinha, que crepitava.
O matador era, nada mais nada
menos, que o meu primo Manuel Fonseca Jr. Que recebera as facas do seu Pai, Manuel Fonseca, meu tio – avô. Não!...
não eram faquinhas de cortar a broa ou chouriça, ou o queijo (com olhos ou sem eles).
Nada disso. Eram facalhões de arrepiar um mortal. Que ao velho Manuel Fonseca
tinham sido legadas por seu pai, meu bisavô. Dos varões da família, já então só
restava eu, por cá. Assim, se a tradição fosse seguida, essas facas – que
confesso me arrepiavam! - deveriam ser-me entregues para «continuar» a saga, e exercer o mister, praticamente um monopólio
familiar, aqui na terra. Deus me salvasse!
- pensava eu, arrepiado só em as ver. Eu nunca neguei o berço: mas só de pensar
que tal me podia calhar em sorte, estava disposto, como meu avô - e por muito menos!
-, a renunciar a todo e qualquer morgadio
de matador. “Mais vale um gosto que os três vinténs”, é certo, mas eu não
tinha queda para ser el matador. Era bem
verdade, desculpem lá isso os meus anteriores, que no resto até julgo não os ter deslustrado, que se veja.
Chegava pois o Manuel – um poder
do senhor, bisnagau de uma força bruta, exímio jogador de malha, habitual
ganhador do jogo da corda, presença obrigatória das romarias ao tempo - trazendo as ditas, chegando-se ao animal para
com o seu olhar sabedor garantir (apostar!)
o peso esperado para o bicho. Tendo sido emigrante quando novo, nos States,
fazia gala de se exprimir em americanês:
- nice boy - good pig - dizia , e com
um primeiro ,« VIVA A PÁTRIA», dava
início à função, que homem lento p’ra
nada tem tempo…
O suíno que
já nem se podia mexer era levado de padiola (ou em cima do arado)
O animal no arado
para o «caminho», colocado no
carroço (ou numa escada) ,com a cabeça quase ao nível de solo, e fixo – fosse
lá saber-se se o abate correria bem – com um adibal atado aos presuntos posteriores, que o fixavam ao leito da
morte, mas mesmo assim fortemente agarrado pelos rabeiros.
Em cima do carroço
Dois valentes fixavam as patas do animal que ia ser sacrificado. Avante,
um deles puxava a pata para baixo, enquanto o outro levantava a dextra do
bicho, para cima, O matador colocava então o braço por debaixo do cachaço, cingindo
o animal, e com a direita agarrava num pano,
Lavagem da peituga
que mergulhava em água a ferver,
para, com ele, limpar a zona onde iria dar o golpe fatal. Uma última olhadela,
– «camòne let’s go: - VIVA A PÁTRIA»,
concentração, e aí vai disto: sem hesitar, num golpe certeiro, a faca terminada
em bico - uma monstruosa lâmina de uns trinta centímetros – afiada e pronta a
cortar papel, entrava no pobre bicho que lançava um grunhido de dor assustador,
roncos arrepiantes ao sentir-se ferido de morte. Eu que fazia de conta que passava
as facas ao meu primo – que era para me
ir habituando - diziam! - fechava os olhos ao ver o sangue sair em golfadas
enquanto o matador rodava a faca, abrindo ainda mais o golpe, no sentido de
facilitar a saída do sangue que era aparado num alguidar postado em sítio certo
para receber o esguicho.
O aparar do sangue
Era fatal que chegaria o momento,
em que o primo Manel fazia de conta que o animal se escapava, e, balançando com
a cabeça do pobre bicho, gritava:
-Takerease…baby be quiet …
o que fazia com que o mulherio
presente desatasse a fugir, pirando-se como um bando de pardais à vista do
milhafre.
A verdade é que em poucos minutos,
a vida do animal esvaía-se. Do forte grunhido, ia restando um rumor de
sofrimento do animal, como que se despedindo da vida. Quando já não mexia - salvo
pequenos estertores, reflexos musculares – lá vinha novo «VIVA A PÁTRIA» ,«VIVA
O ANIMAL»,o que levava todos os
circunstantes a levantarem o seu boné - ou garruço -, saudando o bicho pela
galhardia (?!) com que encarara o sacrifício.
No sangue aparado, eram então
feitos dois golpes em cruz. Depois de temperado com sal e limão, seguia de
imediato para o caldeiro, onde a água a ferver o esperava. Cuidava-se que
nenhuma mulher naquele período, tocasse
no sangue –“para não o coalhar”.
Nunca soube a verdade do dito, mas o certo é que tal se dizia suceder, fosse
com o sangue do porco, com o leite creme ou maionese, etc. Seria?
O porco era então arriado e
deitado no chão.
Ia começar a chamuscagem do seu pelo. Coberto de agulhas, a que eram ateado
lume, o matador e um ou outro conhecedor, com a ajuda de dois paus de feijões,
iam-nas movimentando pelo corpanzil, percorrendo o lombo do animal de modo a chamuscar
o cabelo, com o cuidado extremo de
evitar qualquer queima do couro.
Era uma operação que exigia muita
atenção, destreza e habilidade. Chamuscado de um lado e do outro, com uma
fogueira concentrada junto dos pezunhos,
retiravam-se as unhas – as castanholas –,
momento que servia de diversão aos mais novos, para as meterem nos bolsos dos
assistentes. Não era uma operação nada fácil; tinham-se de aquecer bem os pezunhos para os cascos incharem, e se separarem,
e puxá-los com eles a ferver, de uma palmada: shit …até fervem, - dizia o Manel Jr., escaldado.
Iniciava-se então a operação da lavagem e raspagem - o fazer a barba - ao
couro do animal ; com água corrente e equipados com caliças (de adobe) ia-se afeiçoando o couro cabeludo do bicho, utilizando-se
no final uma faca, do tipo das usadas no bacalhau para o trote, com que se fazia um escanhoar cuidado, até se obter um couro
bem amarelo e macio, aqui e ali chamuscado, mas nunca queimado.
Terminada a tarefa cortava-se o
rojão do carro: - o cagueiro do porco.
Era-me destinado o agarrar da língua do animal, com toda a força, para, diziam-me
– e eu pantono acreditava – que tinha
de a segurar para que as tripas não
saíssem, por detrás do bicho.
ESTÁVAMOS
ASSIM CHEGADOS AO FINAL DO 1º ROUND
-INTERVALO
Da cozinha vinha então um cesto poceiro com sarrabulho cozido, a
escorrer em cima de ramos de louro, fresquinho, uma broa cortada e um prato e
uma quarta de verdasco. E copos para todos. Depositado o manjar sobre uma toalhinha
estendida sobre a barriga do animal, parlamentava-se enquanto se saboreava o sarrabulho e se cavaqueava
contando estórias de outras matanças, comparando-se animais recentemente abatidos.
Terminada a
refrega do repasto entrava-se em nova e decidida azáfama.
O porco era puxado para dentro da
adega, e nos tendões das patas traseiras era enfiado o chambaril, uma peça de madeira por onde, com a ajuda de uma talha,
se içava o animal, fixando-o no gancho preso no tecto.
Bem suspenso, o chão juncado de
agulhas para aparar os restos sanguíneos do animal, o matador mudava de faca, empunhando
agora uma outra mais curta, com gume tão bem afiado como se tratasse lâmina de
barbear.Fazia com ela, uma incisão nas duas abas do animal, de cima abaixo, deslocando
o manto da barriga, atoalhando-o nas
costas do dito. Desse modo tinha acesso às vísceras.Com um alguidar trilhado
entre as patas dianteiras, com gestos seguros e rápidos, de sabedoria acumulada,
conseguia extrair todo o aparelho digestivo do animal (com especial cuidado, as
tripas, para que não rebentassem), que passava ao mulherio, para serem levadas
ao rio da Fontoura, onde se procedia a uma escufenada lavagem em água corrente,
retirando-lhe os folhos: as sainhas .Com as tripas lavadas, esfregadas com
sal, far-se-iam as linguiças e salpicões, que iam a estagiar no fumeiro da casinha velha, até ficarem no ponto
para degustar.
A mim era-me entregue a bexiga e
o pissalho. A primeira, depois de
fumada, dava uma excelente bola. Por seu lado, o «dito» do animal, era graxa excelente para ensebar as botas, impermeabilizando-as.
E assim íamos
esgotando as horas…
O primeiro dia da azáfama estava
a terminar. O animal, limpo, ficava a escorrer todo o resto do dia e toda a noite,
pois só no dia seguinte se iniciaria o seu desmancho (desmembramento).
Era chegado o momento de nos
sentarmos, matador, ajudantes e alguns familiares entretanto chegados pelo fim
da tarde, em volta da mesa, para um pausado e retemperador repasto, onde se recuperavam
os humores e se apreciavam as primeiras vitualhas porcinas do anima sacrificado.
Uma «sarrabulhada» bem apurada, sangue cozido acompanhado de fígado
cortado às lascas, a boiar num molho gordalhudo onde refogava uma forte
cebolada, temperada ao ponto com fartura de pedacinhos de alho, e umas folhas
de louro, que lhe davam um odor catita. O verdasco –pinga
de estalo, diziam! - corria então da picheira para os copos, que sôfrega e insistentemente
eram chamados à boca. E à medida que
tal chamada se fazia, a língua começava a soltar-se, e a jantarada tomava foro
de festa.
Estômagos já recompostos, vinha
um arroz amalandrado de bofes avinhados
(e ou de labercas), que fazia companhia a uma bifalhada cortada
apressadamente das franjas entremeadas do animal. Noutra pichela, lá vinham as iscas embrulhadas numa cebolada avinagrada. Pitéu
de fazer soar as campainhas gulotonas,
que faziam um indígena levantar-se lesto, quebrando as regras de mesário, não
dando tréguas à digestão ao empanturrar-se com a iguaria.
Findo o repasto porcino, lá
vinham umas «castanhas abafadas».
Era tempo para divertimento.
O primo Manel era um tocador emérito
da concertina. Meu Pai também tocava o mesmo instrumento, embora fosse mais
tosco de mãos. Tocava-se e dançava-se numa alegria que envolvia todos os
presentes. Até a minha Tia Micas - sempre muito reservada -, não se escusava a desenmalar o bandolim para acompanhar os tocadores. Que incansavelmente
davam à sanfona .Mas o que mais me impressionava era ver o meu tio - avô Manel [1], já
cego e com uns bons oitenta anos, cantar ao desafio - no que era inacreditável
e inexpectável - a pandegar numa espécie de dança feita sobre os joelhos dobrados, que só muito mais
tarde vi ser muito semelhante às danças cossacas.
A noite corria entre palratórios
e lenga-lengas, e só tardiamente, já bem lastrados, se recolhiam, os convivas a
penates, pois ao outro dia novo trabalho a requerer a presença do matador.
2º Round
Logo de manhã começava nova faina.
Arriado o porco, procedia-se ao
seu desmanche, tarefa para o que me lembro ser especialmente dotado: - com muito jeito, dizia-se, parecendo com
isso quererem dar-me alento e predisposição, para herdeiro da tradição.
O desmanchar do porco era feito
com critério e ao gosto da dona de casa, que dava, amiúde, indicações de que
tamanho queria as peças que se iriam separar.
Tudo cortado, peça a peça, procedia-se à salga
das mesmas, numa salgadeira de cimento, onde se depositavam as peças separadas
por sal suficiente para as conservar, dispostas por ordem, ou critério de
utilização: no fundo, acamadas, ficavam as mantas de toucinho; depois os ossos de assuão, costela, coiratos, etc.,
etc.
Separava-se a carne para rojões
que de imediato se vertia para caldeiros de cobre, onde a lume brando se iam estrugindo
no «unto de pão» até ganharem uma cor rosada indiciadora de que estavam prontos
para irem para os potes de porcelana .Onde jaziam f afogados em banha, à espera de utilização futura: - quase sempre
breve, ali em casa.
Chegava, então um momento porque
há muito ansiava: o hábito de levar o
prato aos familiares e amigos.Cortada uma febra, juntavam-se umas peças de
sarrabulho e fígado, umas folhas de louro e sainhas,
e em casos de graduação especial um ou outro rojão. E lá ia eu, lépido, com o
cestinho – eu queria lá saber do aspecto!
- entregar o dito. Esperando, como sempre acontecia, por uma gorjeta, que,
acumulada de casa em casa, me rendia pecúlio apreciável, quase sempre para
investir numa bola de futebol. E não se julgue que eram poucos os distinguidos.
Não!.., que a família era grande, acrescendo que para lá desta, havia os amigos,
os capitães a quem se retribuía a habitual oferenda da cestada de caras, línguas
e samos, que viriam perto do Natal. Por isso, não raro, ouvia minha mãe lamuriar-se
que, por maior que fosse o bicho – e era, pois meu pai fazia gala de atingir as
16 arrobas –“ia-se todo nos pratos”.
Claro que minha mãe não estava a
fazer contas ao que por aquelas épocas recebia, pois este hábito -o prato - era uma perfeita troca. Que
até fazia jeito, pois não havendo ainda frigoríficos, estas trocas permitiam, pelo
menos por estas épocas e durante semanas, comer-se carne sempre fresquinha, o
que era um maná. Feitas bem as contas não se ficava a perder, pois todos se esmeravam
na oferta. Grandes hábitos, tradições que vinham do tempo onde respeitáveis
gentes faziam agasalho da amizade.
À noite, tudo escufenado e ordenado, depois de
uma «banhoca» lá voltavam para uma segunda emposta, à mesa. Os convivas
aumentavam no número, pelo que as travessas de rojoada eram, só por elas, por
tão abundosas, de uma imponência de recriar o olhar guloso.
Por norma, este dia era menos familiar,
mais voltado para os amigos. Sempre muitos e dos bons.
Na cozinha, o mulherio preparava
a carne para avinhar, e com ela bem temperada, encher a tripalhada já limpa, a aguardar hora de saltar para o fumeiro.
A matança chegava ao fim; novos
seis meses para engorda de novo bácoro, entretanto já adquirido na «feira dos
treze», e que prometia boa e anafada engorda.
A vida recomeçava então de novo;
colocar o «brinco» no animal; chamar o «alvitar» para o capar, não fossem os apetites
estranhos pôr em causa a engorda, atrasando-a. Dar-lhe umas colheradas de óleo
de fígado de bacalhau para lhe abrir o apetite, boas couves para deslassar o
trânsito intestinal, e assim emborcar mais abóbora misturada na farinha que
vinha do moleiro de Vale de Ílhavo. E todos os dias avaliar «os gramas» da engorda.
Era bonita esta vida, em que boa parte do que comíamos, vinha ali do
quintal ao lado: do aido de «Cima» ou do de «Lá de Baixo».
A vida tinha encantos; a
televisão não invadia o seroar; contavam-se estórias da história, a mesa era
local privilegiado de reunião familiar ou de amigos, onde com requinte se
depunham vitualhas feitas com tempo e gosto que, paulatinamente – o tempo
corria mais devagar! - se iam degustando.
As tradições valiam,
ainda então, como ouro de lei, a respeitar.
Senos da Fonseca
Novembro 2007
Era um poço de sabedoria. Sempre bem disposto, mesmo
quando já cego ,dava conselhos amiúde. Lembro-me de um, jocoso :”olha rapaz,a mulher é como a pipa. Quando
lhe tirares a espicha vê se esguicha. Se não esguichar, outros lá andaram a
bebericar”
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