domingo, agosto 18, 2019





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POSTAL DA COSTA-NOVA 



José Estêvão , a «Joana Maluca» e o Thomé Ronca...





Ria de um azul amansado pela brisa que lhe encarquilha a pele. Hoje, a Ria não levava o fato que Deus lhe deu. Tinha ido para  «passar a ferro». Dias!...O ar estava poeirento e as serranias deixaram de se avistar, retirando dimensão ao vale de água que de Ovar até ao Porto de Mira se aninha a seus pés.




Botadas as pernas ao caminho, que se fazia já tarde, fui tocado pelo vento até às portas da Costa-Nova. Depressa me encontrando com aquele Palheiro a que muitos, por engano, pensam mesmo ser o original, do celebérrimo José Estêvão.
E parando, relendo as palavras de Eça que estão gravadas à sua portagem, dei comigo a imaginar o que teriam sido esses belos tempos da descoberta e feitura do local, baptizado por Luís «da Bernarda» com o nome de Costa-Nova. Para que se não confundisse esta (a nova), com a Costa- Velha de S. Jacinto, pousio dos primeiros meias-luas que achaparam as Artes Grandes ao mar.
O actual «Palheiro», foi sim, o que serviu de habitação ao filho do grande tribuno, Conselheiro Luís Magalhães. Erguido sobre o anterior que seu pai tinha comprado, em 1840, ao mercantil de Viseu, Marinho de seu nome. Que teria sido uma das primeiras simplórias edificações erguidas na Companha dos «Barretos», aquando da sua aterragem na praia, após a escapadela de S. Jacinto.
José Estevão descortinara desde logo grande potencial no lugar estratégico que os Barretos «descobriram». Se fosse feita estrada para Aveiro, ou uma ligação a Ílhavo, digna desse nome, o escoamento do peixe e o acesso das Companhas, estaria muito facilitado.



José Estêvão afirmou, um dia, ter comprado o Palheiro para repouso de sua Esposa, D. Rita Moura Miranda[1]. Mas o certo é que sempre que a vida atribulada do incansável tribuno o permitia, José Estêvão refugiava-se no seu tosco palheirinho, a que foi fazendo alindamentos e melhorias, à procura de merecido repouso. E como nos diz o seu filho, Luís Magalhães, era no «quarto voltado ao mar por onde entrava a maresia» que José Estêvão trabalhava as suas ideias para aquelas que foram, as maiores peças oratórias de que há memória, na história parlamentar portuguesa. 
Isso não o impedia de visitar diariamente as Companhas. Para se informar do andamento das capturas, e assistir, deslumbrado, à heroicidade e destemor daqueles homens a entrarem ou saírem, batendo forte na  vaga rija. Eram um exemplo vivo de que também na Terra havia deuses menores, dignos de um Olimpo. Sempre que uma daquelas almas era atingida pelo desfavor da vida, e levada perante o Tribunal, José Estêvão vestia a toga, chegava-se à tribuna para erguer o seu vozeirão em defesa do infortunado pescador. Era ainda, a José Estêvão, que os pescadores solicitavam intercedência para contratualizar com os financiadores da Companha, os magros rendimentos do «quinhão» sempre avaramente concedido pelos senhores do capital.
Muitas figuras da política, e das letras, eram assídua presença do seu Palheiro.
José Estêvão fazia gala em ali receber muitos dos seus amigos, entre os quais Mendes Leite, companheiro de Coimbra e do exílio, fiel e inseparável companheiro; Sebastião de Carvalho e Lima, um espírito de rara energia e grande honestidade; Agostinho Pinheiro, seu companheiro de imprensa; a família Pinto Basto que lhe era muito chegada. E muitos outros: os Regala, os Viscondes de Almeidinha, os Mourões, o Arcebispo Bilhano, os Alcoforados e tantos outros.

José Estêvão apressava-se então a enviar recado à sua grande amiga Joana, «a Maluca», senhora dos terrenos que ficavam à distância de um atravessar directo da ria, para aprazar uma almoçarada. A Joana Rosa era uma mulher de luta. Mãe de nove filhos, avó de sessenta e seis netos, a Joana era uma mulher irrequieta, mexida e brava, cuja estatura estava bem de acordo com o seu feitio. De compleição algo máscula, senhora de boa e desenvolta faladura, sabia bem receber. Com fidalguia, com lauta e bem recheada mesa, onde requintadamente espalhava vitualhas de regalo para o paladar.E para o olho. Vinham em primeiro os escabeches numa molhanca de vinho onde os ditos tinham curado a adquirir sabores divinais. Para tentear apresentava uma casta de avinhados salpicões a que o fumeiro tinha dado cor de um rosa terra aveludado que tentava o mais enfastiado. Seguiam-se as caldeiradas do melhor peixe que o mar criava, a nadarem num azeitado açafrão temperado com um pouco – q.b. – vinho branco bairradino de cor citrina forte.
 Ainda o repasto ia a meio.
Seguiam-se as fumegantes caçoilas «negras» de aradas, albardadas de uma «chanfana» que, previamente escaldada na hortelã, era, depois de forte marinadela, cozida em vinho de boa cepa. Eram no mínimo três, as fervuras necessárias para obter o apurado sabor. Vitualha que aquelas gentes gandaresas tinham trazido consigo e se viria a mostrar emblema gastronómico local. Tudo regado no melhor bairradino, a escorregar, fresco e macio, aveludado, pelas gargantas sequiosas dos comensais.
Terminado o opíparo repasto, o grupo vinha para o alpendre sentar-se em cómodas espreguiçadeiras, onde se gastavam horas na moedeira, enquanto se reconfortava o espírito com puros havanos, que a dona de casa distribuía, servindo e degustando ela própria, um excelente puro.
Lá para a meia tarde os convivas levantavam ferro, agradecendo o excelente repasto.E numa curta atravessadela das terras da «Maluca», arribavam à tasca da «Norta», espécie de estalagem de fim de curso, posto para recolha e tratamento dos burricos, enquanto no altar da venda se bebericavam uns copos para retemperar a alma e vivificar o corpo. Ali se reuniam almocreves recuperando forças para o tropear nocturno das serranias traiçoeiras. Ali, pescadores beberricavam o último copo antes de botar pés à vila. O dia nas Companhas tivera duas idas à maré, e os corpos estavam doridos a pedir enxergão. Mas só à noitinha chegavam a Juncal Ancho, e era, pois isso necessário, meter combustível para a viage… Havia, ainda, uma ou outra pescadeira, que depois de desorçar a canastra ao portal, não enjeitava encostar a barriga ao balcão e pedir à Ti« Norta» :
- Vá tiazinha; dê-me aí um traçadinho para me tratar as fraquezas deste corpo arrebentadinho, moidinho, quase a deitar os bofes pela boca … ai(!) vida…




Ora num desses belos fins de tarde, no tasco estava o valentão, bazófio e inquisilador, o Bisnaga «Tovão», almocreve de mau génio, beberrão, homem de má fama, com contas largas nos costumes,  conhecido da vermelhinha, das feiras assinaladas. Era lá das bandas de Viseu. Já encilhara o burrico. E pronto, entrou tasca adentro, para escorropichar mais uns tintos. Bate forte no «altar» da loja a pedir com os seus habituais maus modos e de um modo enfatuado: – vá maneie-se, velha de um raio. Que é tarde e tenho de trepar a serra. Verta-me aí dois de três; que um é para a cova de um dente danado. 
Só que no momento a «Norta» tinha distinguido no arco da porta o Sr. José Estêvão que surgira prazenteiro e respeitador, dando as boas tardes à gente de bem, que ali parava. José Estêvão procurava o arrais Thomé Ronca, para que este o levasse, a si e aos convidados, ao outro lado. E a «Norta», grande amiga do político, logo virou as costas ao «Bisnaga»,  partindo leda para cumprimentar «os Senhores» importantes, que vinham com José Estêvão.
Logo o «Bisnaga» estrebuchou de danação, mostrando ganas de semear alarido, a meijengrar alguma. Nada boa:
- Que é lá isso, desatender-me a mim, homem da cidade dos Bispos, para atender este fidalgote apressado… Para esta espèsse de gente,  tenho uma folhinha de matar bácoros, que abre num ápice a barriga a fidalgos bem aviados. Daqueles que ficam à porta e não entram, para não sujarem as botinas mulherengas.
José Estêvão manteve-se hirto, impassível, levantou o peito, cofiou o farto bigode, e preparado para responder ao malino:
-Olhe lá ó andarilho lá da serra? Você não é o mata burricos lá de Mangualde? Pois olhe que eu não o conheço senão pela má fama, e não estou nada interessado, em conhecê-lo. Vá à sua vida que eu vou à minha.
- Ora! ora…, atira o «Bisnaga» : ora aqui os homens – já o sabia – são tipo ovos-moles. Ouvem o ronco do mar e mijam-se pelas pernas abaixo…
De uma mesa lá do canto esconso ergue-se uma figura, alta como uma torre, homenzarrão tão cheio de força que os seus olhos mesmo que meigos, infundiam silencioso respeito.
Postado em frente ao «Bisnaga», o Thomé Ronca, mete-lhe uma manápula ao ombro, enquanto troveja:
- Que é isto? Pariu aqui a galega, ou foi a mãe deste burriqueiro que o veio deitar fora? Olha lá ó chibante – se voltas a dizer o que quer que seja dos homens da minha terra, acabam-se aqui as fanfarronices.Já hoje e aqui. Com desprezo voltou as costas ao almocreve, e dirigindo-se ao altar, pediu um traçado à Ti «Norta». O «Bisnaga», julgando-o distraído, deu de fazer rapola, e em grande restolhada rapa da vara que sempre o acompanhava, e dá de despejar o lódão. Uma varada mesmo ao endireito do ombro do Thomé. Só que este desconfiara do mafarrico, habituado a atacar pela noite, às escondidas. E num ápice, lesto, voltou-se. E com a manápula habituada a enlaçar o reçoeiro, enganchou a vara. De imediato puxou por ela o marau, e com uma punhada, aplicou tamanho bofetão ao burriqueiro, que este foi lançado por cima do altar da tasca, indo aterrar, de borco, entre as pipas bairradinas. O Thomé foi lá buscá-lo. O asno abria a boca como rã à procura de ar fresco. Agarrando o fraldoco pela cilha que lhe atava as calças, arrastou-o de borco, lançando-o borda fora, à ria.
- Aqui d’el rei quem m’ acode. Eu sou da serra não sei nadar. Acudam … à d’el rei! Salvai-me que eu dou-vos azeite, dizia o «Bisnaga» esbracejando na água.
- Astão mijas-te ou não, fraldoco?     
E aproveitando o sopro do Norte, os convivas de José Estêvão, rindo-se da restolhada, lá embarcaram para a Costa Nova, abicando ao palheiro à porta do qual a D. Rita esperava o grupo dizendo:
- Que lauto banquete. Vindes bem refastelados, vejo eu. Agora para a noite ireis ter uma canjinha da tainha de pinta amarela, com um grãozinho de arroz em fio de azeite.
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Quem me contou esta estória que verto em rabiscos lavrados pelo meu punho? Adivinhais, estou certo. Pois, a Zefa. Estória que ouviu a seu pai nos invernos inteiriços, a charriscar lume, a catar um ou outro feijão que boiava à tona do caldo, à espera de apuro.
A Tibéria, essa, ficara em casa, que os artelhos chiavam de mal sadios. Excessos; excessos da boca, porque, nesta altura, já não há bródios ou funções que espaireçam.





[1] Consultar em www.senosfonseca.com (Factos & História) «A história do Palheiro de José Estevão».

1 comentário:

Maria Emília disse...

Adoro estas histórias de outros tempos! Deliciei-me a ler. Obrigada!

A « magana » que espere....  Há dias que  ainda me conseguem trazer interesse renovado, em por cá estar  por mais uns tempos. Ao abrir logo ...