«O BARATEIRO»
Em meados do século anterior, fizesse
o tempo que fizesse –arrenegada transmontana bravia, ou de cariz bem disposto, solarengo -, o Victor
«Barateiro» palmilhava, quilometro a quilómetro ,freguesia a freguesia , rua a ruela
esconsa, com a traquitana de madeira assente em duas rodas de bicicleta, na
qual transportava a mercadoria, percorrendo
com o seu “estabelecimento comercial”todos os cantos da vila e arredores. Antecipação
do hipermercado de hoje, com tratamento personalizado do freguês, servido porta
a porta. Em passo ligeiro, fazendo lembrar os antigos almocreves, anunciava em foghorn improvisado, a sua
chegada e a dos seus produtos, hiperbolizando as virtudes da mercadoria, de um modo galhofeiro
e atrevido.
Era o «Barateiro», o que vendia
melhor e mais barato, as mercancias. No seu singular anúncio, muito antes da
globalização de que nem sequer ouviu falar, dizia serem importadas da China -ou
até da Cochinchina –Índia, e outras que
tais,a preços de arrasar.
O Victor era uma figura de uma
simpatia tal(!), que lhe permitia com a maior facilidade o contacto,e do mesmo,
a aproximação capaz de facilitar a venda dos produtos com que porfiadamente ganhava a sua vida .E tratou dela muito bem, pois
clientes não lhe faltaram. Nunca.
«O Barateiro» era um homem baixo
–um Charlot andante -, nariz saliente
num rosto de onde emergiam umas arredondadas maçãs que lhe moldavam um sorriso
permanente, conferindo-lhe ar de pessoa benquista .De chapéu com aba levantada
- à patetive-, enterrado no cima da cabeça,
vestia invariavelmente fatiota de ir « a
ver o Senhor», caísse chuva ou fizesse canícula abrasadora. Tinha,
naturalmente, tez muito morena, consequência da vida de andarilho das estradas
e caminhos, batidos pelo Sol..
Quem atentasse no desempenho da
sua missão mercantil, logo lhe descortinava a qualidade inata de um “vendedor de
feira”, sabendo como poucos enliçar a clientela com conversa «fiada»,acompanhada
por farta gesticulação com que apresentava
o produto, sabendo atribuir-lhe inesperadas vantagens, ou desconhecidas qualidades.
O Victor Malha «O Barateiro» padecia
de uma certa gaguez. Mas tal empecilho não lhe complicava a tarefa. Antes pelo
contrário, ajudava-o e de que maneira! Sabia utilizar bem esse pequeno problema
em seu favor, exprimindo-se de uma maneira muito castiça onde não faltava forte
dose de picardia e malandrice, utilizadas para criar uma proximidade facilitadora do negócio.
Vinha ao longe, e de lá gritava,
anunciando-se:
- Po…po…Povo!... oh… oh! po…Povo«estúpido»!
Ve…venham… a…a aqui, que bom e… e… ba…
barato, só no..no «ba» ….«ba»…«Barateiro»
E continuava, no seu gaguejo
- Me..meias da ca..cá.... casa
baiona …que…que vão dos pés…. á borda da….co
co comprem minhas senhoras -alardeava sorridente o Victor ,agarrando
um par de meias tiradas da carreta, esticando-as para cima e para baixo, e para
os lados , para mostrar a qualidade .Em
passe de prestidigitação, fazia passar o gume da navalha por entre as meias, que
pareciam ser rasgadas ,para logo serem mostradas ,impecáveis,sem mácula,
perante o mulherio espantado ,interessado na sua compra perante tal milagre.
- Olhai !.. Povo .Na…não é a ga…galinha ,é…é o Barateiro com soutiens Ma… Martelo …os q’a…q’aguentam,
todo e qualquer, mar… mar...marmelo.
O Victor era um malandéu, gozador.
E apreciador de boas moçoilas.
Na Costa Nova, em Outubro, época
da clientela vinda lá das vindimas bairradinas - os Matolas - com dinheiro fresco no bolso, era zona predileta para
o Victor exercer o seu mister .
O Victor inventava muitos truques
com que chamava as clientes que circundavam o carroço do estendal, inquirindo
dos produtos que o «Barateiro» tinha para oferecer :cuecas ,pijamas, camisas de
dormir ,lençóis ,edredões ,toalhas e lenços etc. etc. A que não faltava as «camisinhas sem mangas», um produto ao
tempo difícil de encontrar nas lojas da zona. E para as habituais clientes, aqueles
«pozas» do «Manelzinho»(da farmácia) para verter no café do«
cara metade», capazes de fazer fervilhar
os humores aos mais aquietados e o levar às performances há muito esquecidas.
Entrevistei, conjuntamente com o
Manuel Teles,no VIP-VIP de boa memória, o Victor. Foi impagável no desfilar de
histórias que deliciaram uma sala apinhada, vertida em delírio com a graça
portentosa de um inimitável contador de «estórias». A ponto de merecer referência
no Diário de Lisboa, de então,que realçou o acontecimento.
Entre outras, recordo a estória
das cuecas untadas com vaselina, quando apregoava :
-Olhai povo!...po…po…povo!... povo in…in…incréu: as cuecas «Amor»…q’a… q’a
q’aguentam com… com todo o ardor, e…e… até,
qualquer odor “.
E rapando do isqueiro ,
chegava-lhes fogo .A vaselina ardia expelindo larga fumaça que o Victor logo apagava ,mostrando à clientela ,as cuecas,
impunes às chamas.
-Po…po…podeis ter a pa… a pa…a pa…passarinha a arder.Com as calcinhas «Amor», é um frescor …
Desfilou um cardápio das suas adiantadas técnicas de marketing.Por
exemplo, quando anunciava :
- Cu…cu…cuecas a cinco escudos o...o… par .A quem mas deixar vestir, q’u…. q’u …quatro pares, grátis! – atirava, ao
tempo que lançava um sorriso maroto a
uma ou outra moçoila, mais vistosa, potencial interessada na transacção.
Ora um certo dia, palavra puxa
palavra, gracejo puxa gracejo, uma bairradina mais atrevidota, de boas carnes e
tempero ajustado nas mesmas, dá de o desquitar:
-Èh Ti Victor .É mesmo a sério ?... hóme !
-Se …se…se…é –responde mais gago do que o habitual, o Victor. E
rapando das calcinhas, franqueada a
porta do palheiro, ali mesmo, atrás da porta, preparou-se para as nadegar na
Bernarda da Mamarrosa ,que atrevidota e ladina ,foi gozando :
-Eh Ti Victor!... vossemecê perdeu a fala ?
-Q?... antas p..per.. perder a ..a… fala ,q’a …a… ser cego –responde o
Victor mais entaramelado do que o habitual..
Nisto ouve-se grande restolhada. Era
o pai da moçoila que de porrete em punho, veio lá de dentro disposto a pôr
cobro ao descoro .
Valeu –contou-nos o Victor - a
calma da Bernarda, a demonstrar estar à altura (seria o hábito ?!) dos
acontecimentos:
-Q’é lá isso meu Pai ?! O senhor Victor é bom homem, está apenas a
tratar da greta do meu pé ,para ver se o tamanco me calça .
-É …po…po…pois …então .Ó… Ó .. Ti Zé ,c’olhe que …que.. a…a gre… gre…greta da sua … ra….rapariga , pre…pre… precisa de…de… trato .Está muito
aberta. Vou…vou dar-lhe um pó…pó… pozinho do Ma…Ma… Manelzinho da botica, que …que
lha fecha.
E lá se livrou de boa, o atrevido Victor .
Com os calcanhares molestando o
dito, num ápice, desceu a correr a viela do Pardal, e dessa vez sem fala – daquela vez a sério!...- foi direitinho à Mota,
onde o Ti Ameixa o ajudou a carregar a carrinha das vestimentas. ”Toca a largar”,teria implorado o Victor
ao arrais Ameixa, antes que o Ti Zé percebesse a conversa fiada, e viesse por
aí, com a cachamorra empunhada..
Era um bom homem, o Victor. Gozando
da simpatia das clientes que lhe ofereciam um copito em dia solarengo,ou um
caldito em dia friorento .À porta do tasco ou do café, tinha sempre fiéis
amigos, com quem se pelava para uma charla, desfiando o rol de nobidades, colhidas nas suas deambulações.
Assim era o Victor. Um excelente e
virtuoso contador de histórias, uma figura típica, arquétipo de figura popular benquista,
um esperto e bonacheirão vendedor ambulante, deliciosamente astuto, sagaz,
pleno de matreirice. A calcorrear os caminhos lodacentos, ou a ouvir o chilrear
da passarada. A lançar um olhar penetrante aos rústicos que lhe saltavam ao carroço, ofegante no afã
de uma vida suada de peregrinação junto das gentes de quem não gostava menos,
mesmo que os apelidando, ternamente, de «povo estúpido».Talvez por saber que
nele acreditavam piamente.
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