(Do livro « Filinto Elíseo-O POETA AMARGURADO)
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A história da fuga dos pais de Manuel do Nascimento
(futuro Filinto Elísio) para Lisboa
A cena passa-se na borda da água, onde se percebe uma embarcação em preparo de viagem. Manuel Simões, de manaias, camisa ao xadrez, descalço, barrete pousado no ombro, está a embarcar sacos, a estivá-los no fundo da embarcação.
Maria Manuel (avental garrido, xaile traçado e preso na cinta, canastra sobraçada entre o braço e a cinta) entra claramente esbaforida.
Manuel Simões
Que é lá isso?!… vens p’rá aí desentoada, com uma guita maior que o reçoeiro do «Ti Esse»… . Que trazes tu na alma, por raios e coriscos? «Inté preces» que viste lobishome, mulher inquieta, de corpo e brilho faiscante no teu olhar de mar, sempre às voltas… sempre às voltas.
Maria Manuel
Pois se te parece, …não é para menos. Olha (!) vim da Ti Josefa «Aparadeira», que me garantiu as minhas desconfias: estou grávida, Manéu! E agora? (mal o Manel ia para começar a falar, atalhou) – olha amigo, não… não estragues a tua vida por mim. Os teus não me querem, e não vale a pena pores-te de barréga com eles, por mor de mim…
Manuel Simões
(Manel, agarrando a Maria e cingindo-a a si, com alteração de tom de voz, irritado…)
É!… . que é lá isso. A mim ninguém me estraga a vida. Eu não vou fazer a vida com a minha mãe. Ela é que tem de Te aceitar. E sem banguinisses…
Maria Manuel
Pois… mas começam logo, nos diz que disse, que eu era uma bardaleira estouvada, que não era mulher de boça… olha vai ser um palratório por essa borda abaixo.
Manuel Simões
O raio… é que vai. Olha estou cá a inquisilar: p’rá semana vou levar a enviada, «Manuel do Nascimento». Tu, se não tens medo, vais comigo. E eu que já andava com ela ferrada há muito, se o pensei, melhor o vou fazer. Maria!… vamos ficar por lá… . Isto por aqui não interessa a ninguém, e muito menos aos que vão nascer.
Maria
(Maria libertando-se e levando a mão ao peito, como a se inquirir)
Medo eu, Manéu?!… nem ó vida!… nem chari-lo. Leva-me para o fim do mundo contigo, que eu vou a cantar «corre corre ligeirinha / vai mai-lo teu amor / quem tem medo fica em casa / quem ama vai tratar da vidinha». Vamos homem da minha vida. Ai rico: perco-me nos teus olhos, mareio-me nas ondas do teu cabelo, vivo para te ouvir chamares-me: – Maria!
Manuel Simões
Combinado, prepara a trouxa, e terça, vens aqui ter. Arrancamos com o sol, e vamos por aí abaixo.
Maria
(fazendo um gesto doce, como que envergonhada pela revelação)
Olha e como se vai chamar o rapaz?
Manuel Simões
Eh!… mas como sabes que é um rapaz?
Maria
Atão não sabes que as crianças feitas à beira mar, são sempre rapazes? Lembras-te que a lua estava redonda?
Manuel Simões
E que nome vamos pôr ao «verdugueiro»?
Maria
Olha!… como disseste que o barco se chamava?…
Manuel Simões
«Manuel do Nascimento»…
Maria
Pois aí tens… . não podia ser melhor. Vamos. Adeus… (encostando-se ao ombro do rapaz, despedindo-se, beija-o com ternura e paixão. O sol desaparece e a lua espreita lá na serra derramando uma luz ainda adormecida sobre a área lagunar. Tempo para num surdo murmúrio o mar se fazer ouvir, num quebra mar suave ao espreguiçar-se no areal da praia.)
2ª Cena
(Cenário representando a mesma embarcação. Apenas o lateral, onde se pode ler, à proa, «Manuel do Nascimento»; só que agora, a navegar, no mar. Na embarcação vão embarcadas duas figuras: Manuel Simões e Maria Manuel. Simulada, a vela está erguida, fazendo parecer que a navegação se faz em alto mar)
Maria
(lançando um olhar sobre os longes).
É lindo o mar! Será que é nesta imensidão, neste azul tão azul, onde nos sentimos intrusos, que encontramos a paz com nós mesmos? Ah!… se o mar nos engana, quem na vida nos alenta? Sabes, meu homem, gostava de ter aqui um ramo farto de camélias brancas para oferecer ao mar. Ao oferecer-lhe o ramo, queria ver o vento roído de inveja, ao vir cheirar a doçura da flor. Aqui, parece que sou imensa; do tamanho que enxergo, e não da pequenez, que realmente sou. Quero levar comigo, e com ele sonhar, o último horizonte: o teu filho. Tão longe, tão longe, parece-me que o sinto. Estou perto, sou eu a fonte.
Manuel Simões
Eh!… rapariga tu hoje estás poeta… ainda pegas o vício ao cachopo…. E ele em vez de trabalhar, vai é papaguear para os salões dos coroados, da «porcalhota»…
Maria
(apontado o longe com dedo)
Olha homem (!) como sabes nesta imensidão, descobrir o caminho certo? São aqueles pássaros alados que to dizem?
Manuel Simões
Não, Maria: tenho aqui um relógio de sol que me diz para que lado vou. E de noite te direi o resto. Vá… tira lá uma bucha, que já tenho o estômago a dar horas.
(Maria, célere, estende um pano, tira de um pote de barro uns rojões e, de uma saca, umas padas de trigo. Destapa uma bacia, aonde, por entre uma molhanca alourada, acremente avinagrada, se descortinam uns peixes de escabeche. Tinha, aspecto e perfume, de enloilar os deuses do mar esfomeados. Comendo vão falando, enquanto Manuel tende a ostaga, retesa um pouco a escota, e fixa o rumo. A luz desce, e é quase noite. Aproveitando a aragem nocturna que sopra para terra, a embarcação avança rápida. Ao crepúsculo, Manuel indica a foz do Mondego, lá ao longe, nas três milhas de resguardo. O vento moderado, batia-lhes nas ideias e inundava-lhes a secura humana do afastamento. Cada vez maior. Terão saudades dos que ficaram? Talvez… mas que interessam essas saudades para a nova vida que procuram (?!).
Maria
Manéu!… agora, de facto, a vida parece-me um tresmalho emaranhado. Tem sentido se o estenderes todo. Como fica depois de cada lanço, é, apenas e só, um novelo.
Manuel
Olha Maria: eu por vezes sonho demais. E é – eu sei lá(?!) – esse sonhar em demasia, que me retira o ser totalmente feliz. Olha! a vida é como esta viagem:– cheia de solavancos. Mas contigo a meu lado, eu sei porque a quero viver. Se aqui não estivesses, sei lá por onde andariam os meus sonhos.
(De manhã, cruzam Nazaré. E pela tardinha, antes de anoitecer, vislumbram as ilhotas lá ao longe. A aragem da noite a refrescar, é daquelas que não apaga, antes atiça, a paixão. Incendiando os corpos…
Maria aconchega-se e enleia-se no corpo do Manuel. E vogam os dois, corpo dentro do corpo, abraçados naquela bela e tranquila noite, sob um céu de Abril onde as estrelas pareciam pirilampos esfogueados. E apenas o marulhar quebra o doce gemido dos ais. É tão grande este silêncio circular, rente ao mar, onde tantos por lá ficaram mudos e quietos, que apenas se ouve um sussurro arrastado)
Maria
Quem te ensinou a falar com o vento, amigo?
Manuel Simões
Foi o coração. Que cuida de tanto o olhar e sentir… Parece que nunca chego a desembarcar dele. Os seus anúncios, neste sáfaro oceano, nem sempre saem certos. Às vezes o decifrar, sai-me às avessas E então, é o caldo entornado. Zangamo-nos, eu e ele, e é um «mar de aflições», até que lhe passe o escarcéu. Ando dois dias sem lhe falar. É… é difícil de entender o vento! Muda mais vezes que uma mulher…
Maria
Ei… …eh! raios: o que estás p’raì a blasfemar? Olha Manel as viages são sempre assim sossegadas?
Manuel Simões
Nem sempre… nem sempre (como que a recordar). Na última, o meu moço esqueceu-se da almotolia do azeite. Chegados à Barra, já que tínhamos de esperar pela maré, mandei-o à vila, a buscá-la. Vá maneia-te antes que chegue a maré: disse-lhe eu. Mas demorou tanto, o simprinhas, que eu, com medo de perder a maré, larguei sózinho para Lisboa. Disse-me, quando voltei da viagem, depois da pregação que lhe fiz e de uns cachaços com que o abanei, que só terá pensado: então o sr. Mestre, não esperou, e vai sem o azeite? Na viagem, sózinho, apanhei trabuzana desarcada. De saltar, encabritar, e tive mesmo de entrar em Peniche, nos limites. E o raio do malino, só preocupado com a falta que me fazia o azeite. C’atè ele (!)… o zamparilhas… fundeou por ali, até ao meu regresso
Maria
E não tiveste medo, sózinho?
Manuel Simões
Ora vai-te… …qual medo (?!): um barco é feito de tábuas, as tábuas não vão ao fundo, logo, raio (!), um barco não vai ao fundo.
Olha Maria: o mar é meu amigo; o mar é sempre amigo dos que o respeitam. Aos homens, bem os podes desrespeitar. Cortam os chavelhos e não se vê. Mas o mar, esse (!), se lho fizeres, perde-te o completo respeito. Há barcos pequenos que levam gente de grandes sonhos; e há barcos grandes que trazem gentes, já sem sonhos. Um barco carregado de sonhos é mais leve. Carregado de desilusão, até lhe apetece ir para o fundo. Vá… vai descansar, que amanhã estaremos em Belém a entregar o «Manuel Nascimento».
Maria
Vou sim Manuel, mas deixa-me perder o olhar errante neste pôr de sol, e deixa-me agradecer à natureza esta viagem. Quero sonhar com tudo que me encheu os olhos e a alma; quero, a sonhar, rever tudo o que vivi e tudo o que senti, mas de um modo ainda mais límpido que este azul do mar que vem lá das suas entranhas. Quero voltar a adormecer à porta da infância.
(e recita olhando o mar, o oiro da luz brilhante do pôr do Sol refletido nos olhos meigos, de um verde d’água inocente)
Fim de tarde ao acaso
Pintada, nem eu sei por quem
Nunca vi tanta cor, tanto amor
Sem gritos ou palavras, tanta alegria,
O mundo me parece fantasia
(Aconchegada, Maria enrosca-se no corpo de Manel, que a envolve como dobra do lençol; dos lados de terra vê-se já, surgir a luz loura do luar, a serpentear na ténue agitação do mar).
Quando acorda, Maria Manuel, de repente, dá-se conta que está no Tejo; vê a Torre de Belém de que tanto já ouvira falar, e sente uma espécie de despertar da alma, ao vislumbrar, nas redondezas, inconfundíveis «ílhavos» que carpinteiravam nas suas embarcações, carenadas. As suas gentes! Deslumbrou-se com a imponência, a lindeza do Jerónimos… …Sol de pouca dura, pois foi a breve trecho solicitada para dar um salto à proa, para o passar cabos. O que fez sem se fazer rogada, ou sequer acanhada. Depois foi anichar-se contra a antepara do castelo de ré. A cidade de que tanto, por outras bocas e desde menina, ouvira descrever, parecia-lhe húmida. O fresco da primavera parecia-lhe mais intenso do que o da sua terra. Do outro lado a margem. O que seria? uma ilha? não sabia… . Talvez mais tarde… o tempo parecia que ia mudar. O estai da frente paneou… . bateu forte, e fez estremecer o «Manuel do Nascimento», empurrando-o contra a muralha. Maria, levou a mão ao ventre, e logo se interpôs a tentar evitar novo assalto. O “barco era já” o seu Manelito, e ela queria protegê-lo de todos os embates.
Manuel tinha um grupo aguardando a sua chegada, para entrega da embarcação, documentos, e lista de carga)
Maria
(espantada seguindo com o braço o horizonte)
Olha: Lisboa, parece ser mais aldeias encalavitadas, que bairros como os nossos. Longos braços a desceram daquela colina abaixo. E tantos… tantos… campanários. Olha Manel! parecem bafientos… abandonados. E as gentes? As gentes do império? Fugiram?… .
Homens da faina no cais
(falando para o Manel)
Então… e a viagem? Que carga trazes contigo?… …parece bem derreada… Que tal é a embarcação?… arrastada ou ligeirinha?
Manuel Simões
Maneirinha… do melhor… saído dos estaleiros do mestre Caramonete. O barco é uma maravilha como todos que saem das mãos do afamado mestre caraveleiro, o Caramonete que, com enxó, é capaz de fazer, de um pinho, um palito.
(Pelo braço do Fragateiro Real, o Manuel foi puxado para o interior do armazém. Era tempo de conversa a sós. O João Fragateiro, assim se chamava o mestre, abriu um mata-bicho. Sentando-se, entregou as quatro moedas de ouro, preço aprazado para a viagem de «varar o mar», que só os “ilhos” tinham a ousadia de fazer. E logo se preparava para acertar um novo “varar o mar”, o marear de uma outra enviada vinda lá da laguna, quando o Manel o interrompe, cerce…)
Manuel Simões
Não mestre. Ó’esculpe…: mas olhe!… quero mudar de vida. Vou ficar por aqui, tentando a minha sorte. Mais caseiro… claro. Para isso trouxe a mulher. Vou assentar arraiais aqui, botando-me à sorte. Aquilo lá por cima, com as águas inquinadas, vai uma mortandade. A vida na ria morreu. Tanto prometido, e tão pouco dado. Deus foi avaro. E até ingrato, com as minhas gentes. Vou tentar as companhas da tarrafa… Sempre deve haver lugar para mais um: tenho bom corpo, e conheço das artes aboiadeiras. Estive muitos anos na Xávega. Sei ler o mar, e sei descortinar-lhe o arrepio dos cardumes.
Fragateiro real
Olha Manel! Que vens acompanhado – e que a companhia é um hino à beleza, luxúria para os olhos, tentação para o corpo – isso já eu tinha visto. Não rapaz… eu não sou cego. Guarda-a, pois emproados como o da tua mulher, são raros. Mas olha: se então o que queres, é ficar por aqui, sempre te digo que cada vez há mais embarcações a descarregar no porto de Lisboa. Vindas dos brasis, das índias, a trasfegar para toda a Europa. Eu – fragateiro-mor, real – preciso de gente hábil para trabalhar com o carreto, a carregar e a descarregar os navios. Se quiseres o lugar de mestre de uma das fragatas – olha!… a que trouxeste – é para ti. Sei o que vales. E enquanto não arranjais pousio, telhado, a mim foi-me concedido habitar na casa da Ribeira da Naus. Desta idade, sózinho, se quiserdes, podeis lá ficar comigo, até se governarem. Tu e a tua mulher. Como se chama, ela? ah! …já sei: ouvi-te chamá-la de Maria Manuel… bonito nome, em bonita mulher, rapaz(e sorri abraçando o Manel).
Manuel Simões
(separando-se do Fragateiro)
Pois aceito mestre; é muita bondade sua. Bem as coisas começam a bulir, e o Manelito do Nascimento, vai nascer em boas palhas… . reais… .
João Manuel
Que dizes… não entendo… o nome não é o da embarcação que trouxeste…? É… não é…?!
Manuel Simões
– É… é!, mestre; mas é o nome, também, abotado ao filho que a minha mulher traz na barriga. E olhe: – Vossemecê vai ser o padrinho.
Fragateiro Mor
– Serei… serei, …Manel, para inveja de umas sobrinhas, pedinqueiras, que andam a fazer as contas ao que o meu suor ganhou.
Senos da Fonseca