terça-feira, maio 11, 2021

 


Maio chega, e com ele a época do tresmalho


                              

 

Maio chega e com ele a época do tresmalho. Abro a porta, respiro o ar da alva, fresco e poderoso, e assisto ao despertar da ria. Atiro os olhos para a água enquanto o corpo não ganha coragem para os acompanhar. Os meus olhos sempre foram uns felizardos: têm sempre tudo o que por vezes nego ao corpo.
Na paisagem que desde logo se encharca de sol, reparo (ou imagino) como deveria ser bonito, outrora, o avistamento do prado da Joana «Maluca». Sem nada que colhesse a linha do horizonte, nessa atapetada planura onde teimosamente despertavam umas vergônteas enfezadas que demoraram gerações até se transformarem nos verdejantes milheirais lagunares, o olhar só esmorecia nas faldas serranas do Caramulo. Que hoje ainda daqui avisto por cima do casario da Srª da Maluca. A maresia invade-me os poros, limpando-me do cheiro «a raposinhos» de uma noite entre vale de lençóis, curando-me dos achaques das viradelas (que travessuras já as não há!...) nocturnas.

 

                

 

Manhãzinha cedo, já lá vai uma azáfama no estender dos tresmalhos do «choco» no lençol azul das águas lagunares. Mesmo aqui, à minha porta, a um braço de distância. Colho a máquina de imagens paradas, e disparo. Maré enche, e é tempo de metodicamente desenrolar a meada e estendê-la numa lonjura que ultrapassa os 400 m. 

                 

 

Atravessada a bateira, esta vai descaindo; e o arrais, agora que já usa o motor e é o único tripulante a bordo, deixa correr entre a concha da mão, o cabo e bóias superiores.Com eles o cabo e dos chumbos inferiores, que depois na água, com a ajuda da corrente, ficarão na vertical, fundeados pelos ferros e poitas intermédios, sinalizados pelas bóias garridas, aboiadas a cada ração mergulhada. O «choco», que nestes meses invade a laguna (num prodígio de vida que as mutações lagunares não matou, e renova a cada época) virá paulatinamente em procura do «manjar dos céus» que sabe posto na mesa, com pompa e circunstância, nesta borda poente lagunar, onde desovará. E eis que, de repente, o pobre, que se julgava convidado «vip»,  enfia-se pela malha larga das albitanas.Numa aflição com o traiçoeiro convite, procura recuar, libertar-se, e fugir. Quanto mais gestícula com os «braços» mais se enreda na malha miúda entralhada nos cabos superiores e inferiores, no dito pano.

 

 
    

 

Estendida a «arte» – aqui a palavra ajusta-se perfeitamente ao ofício – o arrais mergulha o ferro e fundeia. Momento para descanso a enredar-se nos pensamentos da vida. Fumando cigarro após cigarro, ficava à espera que a maré vire, para recolher o redame. 
E vai pensando no estupor da vida…

Na véspera, tinha ouvido um pissofoque na TV a pregar aos «peixes». E o Zé «Lavanco» – assim se chama este «camarada» da manhã – começa a pensar nestes «pissalhos» que lhe atormentam as noites com a sua prosápia, com que atiram a «tinta de choco» aos olhos do zé-povinho, para lhes encaldeirar a vista. E o que é certo é que os peixes – pensa o «Lavanco» –, andam muito eslabaçados. Esfraldilhados de todo, parecendo, como o «choco», a deixarem-se enrodilhar no redame do palavreado chinca.
- Estes codres só olham para cima, e nunca – mas é que nunca, porra! – os fraldocos olham para baixo. Ná – pensa o «Lavanco», este cardume não é como o de peixes. Que olham para cima para baixo, e p’ró lado. Isto é cardume de «chaputas»…
Nesta cambada há mesmo uma peixaria, matuta o «Lavanco»: os ditos «roncadores» que só têm prosápia, arrogância e chança: – pissalhos!!!!. Mas também há dos «pegadores». É o que há mais. Parasitas, labajões; cambada de inchuns. E os «voadores» que só têm ambição no sentar do cu … Mas há também – oh! se há! – muitos «polvos»: traiçoeiros … badalhocos. Monte de boseiros.
E com isto a maré vira.
- Um dia a maré também há-de virar…. sacanas!  ... foi pensando  o «Lavanco», alevantando-se, cuspindo nas mãos, disposto a ir à rede.
E de volta, trazido com a maré, bateira atravessada à corrente, deixa-se descair enquanto mete os panos dentro. Emalhados lá vêm os «chocos» que ainda darão um trabalhão do «caraças» a libertar para a caixa. De interior enegrecido pela tinta que as presas vão largando no estertor final… (como o povo, atirado para o caixote… para ser vendido a «Merkel & companhia»).
E estava eu, pronto a recolher a penates, como um xana, e eis que chega a Zefa. Hoje, sem companhia da amiga, é quando a língua mais se lhe destrava….
- Ah rico!!!! Vossemecê está esgalfo dos olhos.
- Pois Ti Zefa. Aqui a ver o «tresmalhar» dos «chocos»…
- Olhe que o tresmalho é como mulher na cama, diz a Zefa, maldosa no olhar ainda malandreco. E continua: «alinha-se» com a enchente (e só nesta), encosta-se, e dá as albitanas a charir. O home augadinho marra. A gente, auguenta e faz que foge. O calhandras bardaleiro atiça-se, e depois é um badanal. A vagalhoça invade-nos a cama, espincha que espincha, e só desenmalhamos quando estamos derreados. Às vezes arrecuava. E eu logo lhe dizia:
- Ah! Nem adregues…livra-te! Atão não dizas tu que peixe que passa a borda… já não sai. Vá, maneia-te, antes c’a maré vire.
- Ah! Ti Zefa que você deve ter sido chaleira de bom lume, atirei eu….
- Olhe amigo: se não há bom lume, assoprasse-lhe. A carne não é como o peixe: é pecadora. E só um santo de pau carunchoso é capaz de resistir ósdepois dos louvados (lambiscos está Vossemecê a entender?)
- Ora...ora se entendo. O pecado foi a melhor coisa que o homem inventou depois que Deus (um bom sarrazina), dele se fez desentendido.

Senos da Fonseca


  67.   Poemas de Abril Abril: síntese inalcançável Já não há palavras  Que floresçam Abril,  Nem já há lágrima...