sexta-feira, abril 24, 2020


25 de ABRIL 2020




Choro…



Choro este País
Do «Grande Afonso» a mais querer que um País.
Partindo em gloriosa cruzada, gladiou com o mouro infiel   
Para fazer do seu Condado, um Portugal de raiz, 
Numa mão a espada, a cruz na outra mão empunhada.
A mim! A mim! gritou Afonso,
E logo foge o infiel, em debandada. 

Choro este País,

Onde a arraia-miúda se exaltou e se fez graúda
 Parecendo já um povo por inteiro em que se tornou
Ao expulsar o intruso e pérfido castelhano,
Atirando do cimo da torre, à turba, o castelhano Andeiro:
Aqui há um povo a sonhar com Portugal nas suas mãos.

Choro este País,

Do grande el-rei João Segundo
Que os mares assombrosos, terríveis e solitários
Mandou serem navegados, e desvendados,
E  logo as trevas e os medos passaram a estórias
A mostrar a grandeza de Portugal ao Mundo.


Choro este País

De onde saíram cabrais
albuquerques e outros tantos gamas,
Heróis a quem o mundo ouviu contar os mistérios,
Tão grandes como ditosas e louváveis foram, suas famas,
Ao fazer de um País, um  vasto e grandioso Império.

Choro este País

Do imortal vate que nossa epopeia descreveu.
Em versos vertidos da sua pena prodigiosa
Dando ao mundo a conhecer ínclitos Varões.
E os feitos da gesta brava lusitana, grandiosa (!)
Para sempre ficaram gravados
No lirismo épico do imortal Camões.

Choro este País

Que teve de Vieira a palavra eloquente
Para defender os fracos dos abusos dos fortes.
Falando aos peixes por mor do Homem ausente,
E aos homens por mor de Deus sempre presente,
Espalhando a sublime palavra
Botão florido do mais fino recorte.


Choro este País

De Pessoa, o Mensageiro,
Poeta desassossegado cuja genialidade por louca,
Só em si não cabia,
Dispersando-se por outros «eus» que não era o seu.
E por não o ser, foi sempre obra inacabada,
De laborioso mestre a extrair beleza, onde beleza não havia.]     




Mas porque choro, então, País tão grandioso?

Choro este País, não pelo que prometeu ser, mas pelo que é!
Choro o dia em que anunciou não querer,
Nunca mais! ser escravo.
País onde mais do que mandar, era preciso saber obedecer
A si, e não aos outros. A ser livre.
Não “Senhor” de nenhuma guerra
Aqui era o Povo que mandava
Aqui era o povo que reinava



Choro pois, este País, pelo que prometeu ser
E por, afinal, hoje ser
Aquilo que não queria ser.
País este, o meu,
Onde afinal foi mais fácil explorar que colher,
Onde cuidámos mais do vício de ter,                                                                                               
Do que do ser
Alimentando por demais, as ambições de novos corifeus.


E assim o País que queria ver nascer
Ainda não “cresceu”...este ainda não é o “meu”...

SF2020










domingo, abril 19, 2020




O Senhor Zé e o «Visconde»...e o Thomé Ronca
  
Mais uma sota, nesta segunda-feira, permitiu-me o reencontro. Eu, a Zefa e a Bernarda, falámos de muita coisa. De entre elas catei uma bonita «estória». Vo-la conto…
- Olhe – diz a Bernarda: este tempo desembestado faz-me recordar a nossa vida em pequenas. O palheiro onde nos abrigávamos do tempo, feito de um tabuado mal encostado, deixava passar o vento frio por entre as frinchas, que até zunia. Então, nas noites de surriada tiravam-se os cobertores serranos da enxerga e punham-se a fazer de anteparo. E para não ir para a enxerga e ter frio, abusacávamo-nos em volta do borralho. À luz de um candeeiro trémulo, por vias da fisga ventosa que escapulia entre frinchas, íamos ouvindo os maiorais, enquanto uns cavaquitos apanhados do outro lado, no matagal da Maluca, ardiam, mitigando o frio. E entre conversa lá íamos assalgalhando, que brando o jejum.
Numa lengalenga familiar, ouvíamos «histórias» do antigamente. Lembro uma, que fez o encanto da minha meninice. Sabe?!: sempre pensei, porque fui testemunha viva da heroicidade demente daqueles «arraises», que, às vezes, até parecia não regularem bem, quando no meio do areal, frente ao desalmado mar, gritavam: – «bota prómar, que este mar enxogalhado não mete medo a homes». E nós, que ficávamos especadas na praia, arrepiadas a ver o meia-lua encabritar-se na primeira vaga, e logo atrás dela vir a segunda ainda mais danada, arrepanhávamos os cabelos e só sabíamos gritar: –  ai o meu Pai, coitadinho, que lá fica!
Ora um dia, contou o meu avô, o Chico «Cuteta», o Sr. José (José Estêvão) tinha vindo, como habitualmente, à borda a conversar com as «nossas» gentes. A saber da nossa vida. Trazia com ele uns «fidalgotes» da cidade, que se vestiam astrapalhados, dizia o Ti Cuteta, com a areia a entrar-lhes para as polainas. «Que inté» pareciam um barco alquebrado «a meter auga»…






E parando, apresentou-os ao arrais Thomé. Um dos fidalgos, homem de larga bigodeira engomada e retesada que mais parecia imitar o «meia-lua», dirifiu-se sorridente ao Thomé dizendo-lhe:
- Atão vossemecê é que é um dos tais «ílhavos» que o Visconde diz pedirem meças ao campino, a saber qual mais valente (?): se o que defronta o touro, se o que investe o mar!!!!... Sim senhora, finalmente vejo um dessa espécime. E Vossemecê que pensa do que diz «Visconde» (?), pergunta o fidalgo letrado, ao Thomé.
- Ora saiba òspois que eu penso que esse tal Visconde – òsculpe mas não o conheço – é zamparilha. Ora essa: – olhe …







E zás!!! A um boi que vinha dar o chicote ao «calão», fila-o pelos cornos, torce… torce… torce… até que o boi ajoelha e cai de borco na areia, resfolegando e espumando, preso pelas manápulas do Thomé.
Este levanta-se, sacode as mãos, põe o boné, e diz para o amigalhaço do Sr. José:
- Ora diga agora ao tal «Visconde» que faça isto com o mar. E veja quantos homes eram precisos para o abraçar. Todos os que há no mundo. O «manso», esses (!), como-o eu em bifes. Sem sal parecem feitos de palha. O mar, esse (!), – e ao dizê-lo tira respeitosamente o boné – bebe-se aos golinhos, senão afogamos no seu sal. Essas gentes de que fala o dito, enfarpelam-se de vermelho e são bailarinos. Morres-lhe pouca gente, por certo. Olhe em volta Vossa Senhoria, e repare na nossas gentes: vê-os quase todos de preto. Vestem-se assim pelos que ali (apontando o mar) ficaram. Mas isso não os quita de «zangalharem» com ele, as vezes que forem precisas.
Enquanto a conversa decorria, o Sr. José ria a bom rir.
- Pois… Ó Pinheiro!!!, meteste-te com boa rês. Logo este gladiador do mar.

Senos da Fonseca





sexta-feira, abril 17, 2020


SÓ ACONSELHADA A  LEITURA A MAIORES DE 60 ANOS.

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A Taxa Camarae do papa Leão X

           A Taxa Camarae é um tarifário promulgado, em 1517, pelo
papa Leão X (1513-1521) destinado a vender indulgências, ou seja, o
perdão dos pecados, a todos quantos pudessem pagar umas boas libras ao
pontífice. Como veremos na transcrição que se segue, não havia delito,
por mais horrível que fosse, que não pudesse ser perdoado a troco de
dinheiro. Leão X declarou aberto o céu para todos aqueles, fossem
clérigos ou leigos, que tivessem violado crianças e adultos,
assassinado  uma ou várias pessoas, abortado… desde que se
manifestassem generosos com os cofres papais.
           Vejamos o seus trinta e cinco artigos:
           1.    O eclesiástico que cometa o pecado da carne, seja com
freiras, seja com primas, sobrinhas ou afilhadas suas, seja, por fim,
com outra mulher qualquer, será absolvido, mediante o pagamento de 67
libras, 12 soldos.
           2.    Se o eclesiástico, além do pecado de fornicação,
quiser ser absolvido do pecado contra a natureza ou de bestialidade,
deve pagar 219 libras, 15 soldos. Mas se tiver apenas cometido pecado
contra a natureza com meninos ou com animais e não com mulheres,
somente pagará 131 libras, 15 soldos.
           3.    O sacerdote que desflorar uma virgem, pagará 2
libras, 8 soldos.
           4.    A religiosa que quiser alcançar a dignidade de
abadessa depois de se ter entregue a um ou mais homens simultânea ou
sucessivamente, quer dentro, quer fora do seu convento, pagará 131
libras, 15 soldos.
           5.    Os sacerdotes que quiserem viver maritalmente com
parentes, pagarão 76 libras e 1 soldo.
           6.    Para todos os pecados de luxúria cometido por um
leigo, a absolvição custará 27 libras e 1 soldo; no caso de incesto,
acrescentar-se-ão em consciência 4 libras.
           7.    A mulher adúltera que queira ser absolvida para estar
livre de todo e qualquer processo e obter uma ampla dispensa para
prosseguir as suas relações ilícitas, pagará ao Papa 87 libras e 3

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soldos. Em idêntica situação, o marido pagará a mesma soma; se tiverem
cometido incesto com os seus filhos acrescentarão em consciência 6
libras.
           8.    A absolvição e a certeza de não serem perseguidos por
crimes de rapina, roubo ou incêndio, custará aos culpados 131 libras e
7 soldos.
           9.    A absolvição de um simples assassínio cometido na
pessoa de um leigo é fixada em 15 libras, 4 soldos e 3 dinheiros.
           10.   Se o assassino tiver morto a dois ou mais homens no
mesmo dia, pagará como se tivesse apenas assassinado um.
           11.   O marido que tiver dado maus tratos à sua mulher,
pagará aos cofres da chancelaria 3 libras e 4 soldos; se a tiver
morto, pagará 17 libras, 15 soldos; se o tiver feito com a intenção de
casar com outra, pagará um suplemento de 32 libras e 9 soldos. Se o
marido tiver tido ajuda para cometer o crime, cada um dos seus
ajudantes será absolvido mediante o pagamento de 2 libras.
           12.   Quem afogar o seu próprio filho pagará 17 libras e 15
soldos [ou seja, mais duas libras do que por matar um desconhecido
(observação do autor do livro)]; caso matem o próprio filho, por mútuo
consentimento, o pai e a mãe pagarão 27 libras e 1 soldo pela
absolvição.
           13.   A mulher que destruir o filho que traz nas entranhas,
assim como o pai que tiver contribuído para a perpetração do crime,
pagarão cada um 17 libras e 15 soldos. Quem facilitar o aborto de uma
criatura que não seja seu filho pagará menos 1 libra.
           14.   Pelo assassinato de um irmão, de uma irmã, de uma mãe
ou de um pai, pagar-se-á 17 libras e 5 soldos.
           15.   Quem matar um bispo ou um prelado de hierarquia
superior terá de pagar 131 libras, 14 soldos e y6 dinheiros.
           16.   O assassino que tiver morto mais de um sacerdote, sem
ser de uma só vez, pagará 137 libras e 6 soldos pelo primeiro, e
metade pelos restantes.
           17.   O bispo ou abade que cometa homicídio põe emboscada,
por acidente ou por necessidade, terá de pagar, para obter a
absolvição, 179 libras e 14 soldos.
           18.   Quem quiser comprar antecipadamente a absolvição, por
todo e qualquer homicídio acidental que venha a cometer no futuro,
terá de pagar 168 libras, 15 soldos.
           19.   O herege que se converta pagará pela sua absolvição
269 libras. O filho de um herege queimado, enforcado ou de qualquer
outro modo justiçado, só poderá reabilitar-se mediante o pagamento de
218 libras, 16 soldos, 9 dinheiros.
           20.   O eclesiástico que, não podendo saldar as suas


PAPA LEÃO X 

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dívidas, não quiser ver-se processado pelos seus credores, entregará
ao pontífice 17 libras, 8 soldos e 6 dinheiros, e a dívida ser-lhe-á
perdoada.
           21.   A licença para instalar pontos de venda de vários
géneros, sob o pórtico das igrejas, será concedida mediante o
pagamento de 45 libras, 19 soldos e 3 dinheiros.
           22.   O delito de contrabando e as fraudes relativas aos
direitos do príncipe contarão 87 libras e 3 dinheiros.
           23.   A cidade que quiser obter para os seus habitantes ou
para os seus sacerdotes, frades  ou monjas autorização de comer carne
e lacticínios nas épocas em que está vedado fazê-lo, pagará 781 libras
e 10 soldos.
           24.   O convento que quiser mudar de regra e viver com
menos abstinência do que a que estava prescrita, pagará 146 libras e 5
soldos.
           25.   O frade que para sua maior conveniência, ou gosto,
quiser passar a vida numa ermida com uma mulher, entregará ao tesouro
pontifício 45 libras e 19 soldos.
           26.   O apóstata vagabundo que quiser viver sem travas
pagará o mesmo montante pela absolvição.
           27.   O mesmo montante terá de pagar o religioso, regular
ou secular, que pretenda viajar vestido de leigo.
           28.   O filho bastardo de um prior que queira herdar a cura
de seu pai, terá de pagar 27 libras e 1 soldo.
           29.   O bastardo que pretenda receber ordens sacras e
usufruir de benefícios pagará 15 libras, 18 soldos e 6 dinheiros.
           30.   O filho de pais incógnitos que pretenda entrar nas
ordens pagará ao tesouro pontifício 27 libras e 1 soldo.
           31.   Os leigos com defeitos físicos ou disformes, que
pretendam receber ordens sacras e usufruir de benefícios pagarão à
chancelaria apostólica 58 libras e 2 soldos.
           32.   Igual soma pagará o cego da vista direita, mas o cego
da vista esquerda pagará ao Papa 10 libras e 7 soldos. Os vesgos
pagarão 45 libras e 3 soldos.
           33.   Os eunucos que quiserem entrar nas ordens, pagarão a
quantia de 310 libras e 15 soldos.
           34.   Quem por simonia quiser adquirir um ou mais
benefícios deve dirigir-se aos tesoureiros do Papa que lhos venderão
por um preço moderado.
           35.   Quem por ter quebrado um juramento quiser evitar
qualquer perseguição e ver-se livre de qualquer marca de infâmia,
pagará ao Papa 131 librase15 soldos. Pagará ainda por cada um dos seus
fiadores a quantia de 3 libras.

PAPA LEÃO X 

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           No entanto, para a historiografia católica, o Papa Leão X,
autor de um exemplo de corrupção tão grande como o que acabamos de
ler, passa por ser o protagonista da «história do pontificado mais
brilhante e talvez o mais perigoso da história da Igreja».
           (Fonte: Rodríguez, Pepe (1997). Mentiras fundamentais da
Igreja católica.
           Terramar – Editores, Distribuidores e Livreiros -
           (1.ª  edição portuguesa,  Terramar, Outubro de  2001 –
Anexo, pp. 345-348)
           NOTA: Esta é a primeira vez que a Taxa Camarae do papa Leão

X aparece na NET em português.

quarta-feira, abril 15, 2020


Houve um tempo em que havia um REIzinho em ìlhavo.Só o Rei decidia,só o Rei tinha opinião.O Resultado  está hoje à vista.Tudo se perdeu.Foi um tsunami que deixou marcas irrecuperáveis.
Ao mexer nuns papéis li op que em 1973 tinha escrito como promonição.Certinho...Eu bem fui avisando....

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REI NEM ROQUE

Aqui só há Rei ; não há Roque.
Nem paz, nem guerra, nem amor, nem desamor.
Tudo é, sem o ser ; tudo pensa sem pensar
A verdade... a de que, aqui, é Ílhavo a apodrecer,

Sem vida, sem alma, sem chama nem alento.

Aqui o Roque é Rei.
A guerra é a das palavras desagradáveis
Que desagradam por dizerem a verdade, e ousarem negar
A mentira…, a de que aqui, é Ílhavo a renascer…,

Em cada dia que não é dia ; é noite sumida no vento.

Na Nau perdida na bruma em mar infindo,
Pediu o piloto licença ao Rei
para ir em procura do «desejar querer ser» ;

Aqui ninguém sabe que coisa quer ;
Ninguém sabe que alma tem ;
Nem o que é mal, ou o que é bem.
Nem que outra coisa ver
Só ele, REI, sabe como vai ser.

SF (1973)

terça-feira, abril 14, 2020



OS FRALDOCOS




Ora na semana seguinte, enquanto os papéis não chegavam para os entregar ao frei Pachão, prior na capelinha da Costa Nova, num belo dia, quando a barca ao fim da venda trazia as pescadeiras para regresso à vila, o Tóino notou uma tristeza na Maria, e até descobriu umas furtivas lágrimas que enevoavam o seu lindo olhar. E dá de perguntar :
- Maria !, c’a tens tu, cachopa, que na te vejo rir ? O que te padece ?
            Iam já em direcção à Maluca, andados que estavam uns bons cem metros.
- Nada Tóino, nada home, deixa lá… num te apoquentes que não é nada.
Mas a Zefa «Tarrinca», companheira da Maria, não escondeu a razão da tristeza da Maria, e dá de opinar :
- Olhe Vossemecê !, ela está assim porque o Manuel «Charrua», aquele desavergonhado, aperguntouse ela não queria experimentar o fogo dele, que tem mais labareda que o do Ti «Tóino». Mancatufe ! Pilado seco !
- Quê ?! - grita o Tóino «Labareda», pondo mão ao xarolo, puxando-o todo de bombordo, obrigando a barca a uma viradela em cima do eixo. E assim dando a volta, caçou a escota fortemente. A barca pareceu querer saltar e chegar mais depressa ao ponto de partida.
- Esse porco vai ver. Coso-lhe as tripas e dou-as a comer à canzoada c’anda p’raí esgalfa.
E numa orça felina, apertada, para ganhar tempo, mal a barca encosta ao moirões(desta feita um pouco mais bruscamente do que o habitual), lépido, o «Labareda» salta para o trapiche enquanto grita :
- Passem aí uma laçada ao moirão, que eu vou ali e já venho.
- Ah hóme da minha alma, não me aflijas. Pode ser a tua desgraça e a minha - implora Maria que faz tenção de agarrar o Tóino .
Mas este não deu hipótese, e a correr entrou como um furacão pela taberna da Ti «Moura», adentro, fechando de um sopetão a porta, dando-lhe uma volta à chave, guardando-a no bolso. A passo mais repousado foi encostar-se à varanda da tasca e pediu um copo de três. A «ti Moura» vendo o alvoroço que lhe ia na cara, interpelou-o:
- Que foi isso «Labareda» ? O que te fez voltar para trás ? Vens com cara de poucos amigos…

- Olhe «ti Moura» : andam p’ra aí uns fraldôcos a fazerem de homens, a olhar, gulosos, p’ra aquilo que tem dono. Ora eu quero certificar-me o que valem os valentões. Traga-me aí um alguidar para apanhar as tripas destes badólas moinantoManeie-se … que deixei o «animal» mal amarrado.
A um canto, numa mesa, em frente de três copos meio «entornados», estava o «Charrua», acompanhado pelo Xico da «Engrásia», mai-lo Pinto «Canastrão». Deveriam estar a falar dos dixotes, pois logo que viram o Tóino com cara furibunda, calaram-se,  abotoando no semblante a mais séria preocupação.

- Vá!... disse o Tóino, ao Xico e ao Pinto ; lá p’ra fora. E já!...  Se não querem que vos cape, também .
E sugigando-o s pelo camisete arrancou-os do chão, levando-os suspensos nas mãozorras. E enquanto a «Moura» abria a porta, o Tóino atirou borda fora os franganotes que foram mergulhar no areal em frente da tasca, para espanto dos passantes. Voltando atrás, o Tóino agarrou na mesa avantajada, erguendo-a acima da cabeça, lançando-a sobre o «Charrua» que ficou atrunchado contra a parede, atordoado. O Tóino agarrou-o pelos gorgomilhos arrastando-o para a porta :
- Já que te andas a armar em olhudo, vou-te pôr como a tua mãe te trouxe ao mundo, para todos verem o pilado tísico que és. E se tu, ou outro, voltarem a poisar os olhos na minha Maria, faço-vos para morcelas.
E num repente puxou do navalhão e, num golpe fulminante e certeiro, cortou os atilhos dos calções do «Charrua», que lhe caíram pernas abaixo, deixando à mostra as suas partes íntimas. De facto, pouco invejáveis. Viu-se!




 " O Charrua" 


- Vá !...- diz-lhe o «Labareda», vai à tenda da Henriqueta «Pardala» e traz-me um copo de três, se não queres que eu te amanhe.               
O Manel, a tremer, lá foi naquela triste figura para gáudio de graúdos e chocarrice dos miúdos, que gritavam atrás : - Olha o «Pilado triste».
Alcunha de que o «Charrua» nunca mais se libertou. E que o obrigou a pôr os pés, areia fora, na procura de paragens onde a novidade se não soubesse. Mas a mesma correu na proa das enviadas com o vento, e o «Pilado triste» só parou, onde Portugal findava. Em Olhão, nas artes do atum.
                       
Encerrada a questão, o Tóino voltou à barca da passage, agora crismada de Srª da Anunciação, e metendo a proa à Maluca, ali chegou num ápice, que o vento era frescóte.
A lição iria servir para que todo o mundo das companhas olhasse para a Maria com um respeito que levava alguns, mais medrosos, até - e à cautela - a baixarem os olhos, só para os não cruzarem com os da Anunciação «Labareda».

SF
(gravura Ábio de Lápara)













segunda-feira, abril 13, 2020



  PESTE NEGRA


Esta crise do  Covid 19 trás certamente a uns tantos ,a ideia de outras pandemias.De todas, a peste negra , vinda do centro asiático e que penetrou na europa em 1374,foi talvez a mais terrível ,não apenas por altamente letal ,mas ainda, pelo brutal e impressionante ataque que infligia  ao corpo humano ,deixando-o com uma aparência descarnada, esquelética, verdadeiramente chocante e lúgubre. Por aquilo que li sobre o assunto, terá sido bem mais terrível, não só porque mais cruel no aspecto com que destruía o ser humano ,perfeitamente incapaz de lhe fazer frente, como mortífera, pois calcula-se ter dizimado  entre 30% a 50% da população.
Teve ainda aspectos estranhos.




Como hoje, os idosos foram os mais atingidos. Só que a partir de certa altura (1374-1375) o vírus da peste negra sofreu evolução (verificaram-se três mutações ao todo) tendo ficado  conhecida pela “peste dos meninos”, porquanto  grande percentagem de óbitos  verificava-se entre as camadas mais novas. Isso teve consequências muito depois do seu desaparecimento, pois a população do continente,atacadas as camadas mais jovens, terá tido, depois, grandes dificuldades para encontrar o  seu equilíbrio demográfico.
Já neste terrível surto de peste, para a sua propagação, foi fundamental  a vitalidade comercial  que já então se verificava(onde a rota da seda teve papel preponderante). Vinda da Crimeia, foi introduzida no porto de Messina  e em outros portos do mediterrâneo(curiosamente, alguns deles, estiveram fechados a embarcações vindas das zonas mais orientais).Corria o ano de 1374 e de repente,a  mortandade estendeu-se e propagou-se a uma velocidade tremenda. Cidades inteiras ficaram povoadas de cadáveres descarnados, amontoados, sem possibilidade de lhes ser dar sepultura. Ninguém estava protegido, nem se sabia como proteger -se (campesinos, artesãos, abades e abadessas, e até Senhores feudais)
Um aspecto curioso. O fim esta pandemia trouxe uma curiosa, e até. inicialmente incompreensível, vitalidade.Facto é que, com tantas mortes, a propriedade ,os bens, concentraram -se nas mão de um número muito reduzido que, de repente, se viu rico proprietário. Cresceram, assim, as novas oportunidades. O preço do trabalho, no campo ou nos artesãos, aumentou em flecha. A procura por testamentos era uma nova realidade.O dinheiro chegou às bolsa  como nunca tinha acontecido. E, inacreditavelmente surgiu o luxo; as artes prosperaram, as festas tornaram-se hábito comum. Por outro lado os campos esvaziaram-se, o que foi logo aproveitado pelos “novos campesinos” que logo se apoderaram das terras abandonadas. A segunda metade do Séc.XIV e boa parte do Séc.XV foram épocas de fortes tensões sociais, onde os homens dos campos se habituaram a exigir, cada vez mais aos Senhores. Estes avisados dos riscos de não ceder a algumas exigências (abandono das terras,por exemplo) foram, a contra gosto, dando-lhes satisfação.
Quando a peste negra se extinguiu a Europa conheceu, e assumiu, uma nova paisagem social.

Senos Fonseca

domingo, abril 12, 2020


 Agora é sempre a descer


Prestes a arrancar
Mais uma folha
Ao já amarelecido
Calendário,
Apetece-me dizer à vida:

 Pronto ganhaste.
Levaste as minhas lembranças 

E eu por aqui ainda fiquei
A ver, não o que queria,
Mas a não querer já muito do que via.


Vai longo este caminhar
De quem tanto quis sonhar
A guardar folhas e folhas
De horas cheias, desmedidas, 

Outras por vezes
De sentido tão vazias
Tão brancas de horas
A não despertar lembrança
Que vivê-las só me acarretou 
Mais amarga nostalgia
Do que verdadeira alegria. 


Sei...é inútil pedir mais a vida 
E injusto para tantos
Que não tiveram o tapete
Que sempre rolou à minha frente.

 Bom era que a minha vida acabasse 
Ainda no cume da montanha
Que já outros começam a subir;


Vá, não tenham pressa
Que o subir bem pouco custa,
Bem mais difícil é o descer
E manter a dignidade sem cedências, 

A escorregar com humildade
A tactear o caminho
Para ser mais segura, a penitência.


SF

sábado, abril 11, 2020

O Senhor Zé e o «Visconde»


Mais uma sota, nesta segunda-feira, permitiu-me o reencontro. Eu, a Zefa e a Bernarda, falámos de muita coisa. De entre elas catei uma bonita «estória». Vo-la conto…
---------------------------------------------------------------------------------------------------------
- Olhe – diz a Bernarda: este tempo desembestado faz-me recordar a nossa vida em pequenas. O palheiro onde nos abrigávamos do tempo, feito de um tabuado mal encostado, deixava passar o vento frio por entre as frinchas, que até zunia. Então, nas noites de surriada tiravam-se os cobertores serranos da enxerga e punham-se a fazer de anteparo. E para não ir para a enxerga e ter frio, abusacávamo-nos em volta do borralho. À luz de um candeeiro trémulo, por vias da fisga ventosa que escapulia entre frinchas, íamos ouvindo os maiorais, enquanto uns cavaquitos apanhados do outro lado, no matagal da Maluca, ardiam, mitigando o frio. E entre conversa lá íamos assalgalhando, que brando o jejum.
Numa lengalenga familiar, ouvíamos «histórias» do antigamente. Lembro uma, que fez o encanto da minha meninice. Sabe?!: sempre pensei, porque fui testemunha viva da heroicidade demente daqueles «arraises», que, às vezes, até parecia não regularem bem, quando no meio do areal, frente ao desalmado mar, gritavam: – «bota prómar, que este mar enxogalhado não mete medo a homes». E nós, que ficávamos especadas na praia, arrepiadas a ver o meia-lua encabritar-se na primeira vaga, e logo atrás dela vir a segunda ainda mais danada, arrepanhávamos os cabelos e só sabíamos gritar: –  ai o meu Pai, coitadinho, que lá fica!








MAR (foto Celestino Alves)

Ora um dia, contou o meu avô, o Chico «Cuteta», o Sr. José (José Estêvão) tinha vindo, como habitualmente, à borda a conversar com as «nossas» gentes. A saber da nossa vida. Trazia com ele uns «fidalgotes» da cidade, que se vestiam astrapalhados, dizia o Ti Cuteta, com a areia a entrar-lhes para as polainas. «Que inté» pareciam um barco alquebrado «a meter auga»…
E parando, apresentou-os ao arrais Thomé. Um dos fidalgos, homem de larga bigodeira engomada e retesada que mais parecia imitar o «meia-lua», dirifiu-se sorridente ao Thomé dizendo-lhe:
- Atão vossemecê é que é um dos tais «ílhavos» que o Visconde diz pedirem meças ao campino, a saber qual mais valente (?): se o que defronta o touro, se o que investe o mar!!!!... Sim senhora, finalmente vejo um dessa espécime. E Vossemecê que pensa do que diz «Visconde» (?), pergunta o fidalgo letrado, ao Thomé.
- Ora saiba òspois que eu penso que esse tal Visconde – òsculpe mas não o conheço – é zamparilha. Ora essa: – olhe …
E zás!!! A um boi que vinha dar o chicote ao «calão», fila-o pelos cornos, torce… torce… torce… até que o boi ajoelha e cai de borco na areia, resfolegando e espumando, preso pelas manápulas do Thomé.
Este levanta-se, sacode as mãos, põe o boné, e diz para o amigalhaço do Sr. José:
- Ora diga agora ao tal «Visconde» que faça isto com o mar. E veja quantos homes eram precisos para o abraçar. Todos os que há no mundo. O «manso», esses (!), como-o eu em bifes. Sem sal parecem feitos de palha. O mar, esse (!), – e ao dizê-lo tira respeitosamente o boné – bebe-se aos golinhos, senão afogamos no seu sal. Essas gentes de que fala o dito, enfarpelam-se de vermelho e são bailarinos. Morres-lhe pouca gente, por certo. Olhe em volta Vossa Senhoria, e repare na nossas gentes: vê-os quase todos de preto. Vestem-se assim pelos que ali (apontando o mar) ficaram. Mas isso não os quita de «zangalharem» com ele, as vezes que forem precisas.
Enquanto a conversa decorria, o Sr. José ria a bom rir.
- Pois… Ó Pinheiro!!!, meteste-te com boa rês. Logo este gladiador do mar.



  67.   Poemas de Abril Abril: síntese inalcançável Já não há palavras  Que floresçam Abril,  Nem já há lágrima...