sexta-feira, março 26, 2021

 

MANUEL FERREIRA DA CUNHA (1863-1946)

Ainda conheci – e fiz-lhe montes de diabruras de que hoje me penitencio, e que ele aceitava com extremada paciência –, e dele me lembro com perfeita nitidez, o Sr. Cunha.

Era um homem baixinho, de passo miudinho, sempre muito bem agasalhado, exibindo uma enorme e farfalhuda bigodeira retorcida, encavalitada no beiço, que ele continuadamente cofiava, à medida que dum modo pausado ia dando conselhos e avisos, em jeito professoral, didáctico, num tom de voz e atitude, amainados, fazendo gala de uma viva inteligência.




Manuel Ferreira da Cunha tinha sido o proprietário da Farmácia Cunha, hoje Farmácia Senos. E foi ele, solteiro, sem filhos, que sabendo dos parcos – ou nenhuns! – recursos materiais de minha Mãe, mas admirando-lhe a vivacidade, a pertinácia, e a seriedade, a mandou chamar, e lhe propôs condições muito especiais que lhe proporcionaram vir a ter a propriedade da farmácia, sob o encargo de uma renda vitalícia a pagar à irmã solteira de Ferreira da Cunha, D. Guilhermina.

Esta Farmácia tem uma história de cerca de duzentos anos (1836-2008).

É certamente – talvez com a Farmácia Dinis Gomes – um dos estabelecimentos comerciais, com porta aberta há mais anos, na cidade.

Era – e hoje ainda o é, mesmo depois de modernizada -um exemplar de catálogo das mais bonitas farmácias de País, com referência específica e destacada nos livros que abordam a história farmacêutica nacional.
A sua traça inicial – que foi o mais possível respeitada no conceito, aquando da sua modernização – mostrava um esplendoroso móvel expositor com alçado em arco, ladeado por colunas maciças de madeira, apoiadas em parapeito a toda a roda. Na base deste distribuíam-se gavetas de notável expressão artística, que adiante referiremos. No topo posterior, que fechava em semicírculo, de frente para o cliente, podia admirar-se uma lindíssima porta envidraçada, que tinha inscrito a palavra, «Laboratório», encimada por nicho em arco, debruado com um rodapé de trança de madeira, engoivada à mão. No laboratório existia um célebre almofariz para manipulação de químicos e uma lindíssima balança de precisão. Todo o tecto côncavo, era
entabuado a capa e camisa, e rematado por lindíssimos frisos


   



                                                             Porta do «Laboratório Chimico»

A Farmácia teve a sua mais longínqua referência em José António Vidal, farmacêutico e químico, um homem distinto, natural de Vale de Ílhavo, vogal do júri dos que se propunham, então, à habilitação de «farmacêutico».
Era o tempo em que as mezinhas se faziam como expresso na «Farmacopeia Lusitana», ali à demanda do doente. Águas para tudo:
água magistral para a dor da pedra de rim, feita com limões galegos, água para a sarna feita de tanchagem e solimão; água para tísicos,

feita de carne de tartaruga, e muitas outras aguadilhas. Unguentos (?!), mil!... unguento mundificativo dos nervos, feito de mel e terebintina, unguento de fezes de ouro, unturas adversas do nariz, mas e também da moral. E de poses estamos falados: havia-os para todos os malefícios e dos mais diversos tipos; pós de João de Vigo, e os do papa beneditino para os flatos, feito de coentros; e até os pós de Maio para as frieiras. Óleos (?!) muitos e variados: de marmelo, de alcaparras e de alacraus. Tudo como na Farmácia do Gaudêncio.

Oliveira Vidal (primeiro quartel séc. XVIII-1845) foi o proprietário da primeira farmácia que abriu em Ílhavo (7 de Novembro de 1807). Da sua prole, uma das suas filhas, casou com Alexandre Cesário Ferreira da Cunha. Também este farmacêutico, discípulo de José Vidal, e que viria a assumir a farmácia do sogro. Alexandre Cunha – que suponho tenha dado o nome «Cunha» ao estabelecimento (1836) – terá tido um filho, José Vieira que foi também proprietário da farmácia. E que por sua vez a legou a seu filho, Agostinho Vieira. Finalmente, cerca de 1880, a «Farmácia Cunha» chega às mãos do filho de Agostinho, Manuel Ferreira da Cunha.

A Farmácia Cunha tem, pois, a data de fundação de 1836, sendo praticamente contemporânea da fundação da Fábrica da Vista Alegre. Por isso, na parte inferior do escaparate dos medicamentos, atrás referido, inseriam-se (e estão preservadas) vinte e quatro gavetas a que minha Mãe só muito tarde, soube, terem sido pintadas pelo francês Rosseau, o primeiro mestre pintor da V.A.





                                                        GAVETAS DA FARMÁCIA CUNHA (HOJE FARMÁCIA SENOS)

As pinturas das referidas gavetas – expressando um certo ruralismo romântico, onde vetustas mansões se inserem numa paisagem, tema autónomo do quadro, inserida pelo autor em primeiro plano –, embora tenham sido sujeitas a tratos de polé, resistiram a tudo. Até ao sabão de potassa e à escova de piaçaba usada para as esfregar, e abrilhar. São peças lindíssimas, em tom de mel, dignas de acervo museológico, como a fábrica da V.A, aliás pretendeu, em determinada data. Na farmácia existia, ainda, um número notável de frascos de vidro para conter os químicos, que a Vista- Alegre um dia, veio a verificar, tratarem-se terem sido dos primeiros vidros produzidos por aquela fábrica, tendo por isso solicitado alguns exemplares para expor no seu museu.



                                                                           «Frascaria»

Só pois, tardiamente, se soube do facto, e desde então se começou a olhar para a frascaria- assim se expressava no contrato de trespasse feito em 1944, a minha Mãe – com minúcia, o que permitiu colher a percepção da raridade dos tons azulados, arrocheados, castanho amelado, verde garrafa, translúcidos ou transparentes, bem como as suas doces formas, de boca larga e boca estreita, muito elegantes no seu design. Restam uns tantos exemplares na família próxima. E na «Farmácia Senos», claro.

Julgamos interessante referir que uma outra filha de José Vidal casou com Manuel José Gomes, pai do cónego José Cândido de Oliveira Vidal; e pai também de João Gomes, farmacêutico, por sua vez pai de João Carlos Gomes (1836-1886), este também farmacêutico e primo de um outro farmacêutico, Dinis Gomes (esta família Gomes foi apelidada d e «os boticos»).

Voltemos a Manuel Ferreira da Cunha (1863-1946).

Tendo feitos os seus estudos em Aveiro, foi para Coimbra onde concluiu com rara distinção o curso de Farmácia. O ensino superior farmacêutico só nasceu verdadeiramente em 1836.Manuel Ferreira da Cunha, como seu Pai, cursou já na Universidade de Coimbra,

o curso de Farmacêutico de 1a classe. (os diplomas existem, e são públicos na farmácia actual).

Interessado pelo Ensino Público, é nomeado Inspector Primário Concelhio (1884),vindo a fazer parte da Junta Escolar Concelhia.

Colaborou, praticamente, em todos os jornais locais, nos distritais e até em alguns nacionais, da época: «Diário de Notícias», «O Século» «Ilustração Portuguesa» «Distrito de Aveiro» «Os Sucessos» «O Rebate» «Boletim da Liga Naval» «Ecos da Avenida» «Jornal de Ílhavo», «Gente Nova» «Terra dos Ílhavos», «Beira-Mar», «O Ilhavense».

Fez as biografias de Arcebispo Bilhano, Alexandre da Conceição, José Maria Ançã, Gabriel Ançã, Filipe de Oliveira, Samuel Maia, Sousa Martins e Sousa Teles.Foi correspondente do Jornal de Notícias - 40 anos! –, de «O Século» e do «Diário de Notícias». O seu primeiro artigo foi publicado no «Jornal da Manhã», em 1881.

Participou na elaboração do Dicionário «Portugal»
Em
1888 foi eleito correspondente da Sociedade de Farmácia, e em 1908 foi convidado para o alto cargo de Membro da Academia «Phisique Chimique Italienne», para finalmente ser distinguido com o honroso convite para membro da «Societè Académique d’ Histoire International». (1924)

Durante a anexação do Concelho de Ílhavo, por Aveiro (1895), é Manuel Ferreira da Cunha que funda o «Movimento para a Restauração do Concelho», tendo sido ele com os seus escritos e petições quem alimentou a luta que levaria à reintegração, em 1898. Foi ainda Ferreira da Cunha quem redigiu o agradecimento a José Luciano e Castro, agradecendo-lhe a referida reintegração. Em 1900 é eleito Presidente da Direcção dos Bombeiros Voluntários de Ílhavo.

Nos jornais locais Ferreira da Cunha será a primeira personagem a lançar a ideia de um Hospital para Ílhavo, continuada e concretizada por Viriato Teles..
Será ainda Ferreira da Cunha quem envia a petição ao Parlamento, para que seja concedida ao arrais, Gabriel Ançã, uma pensão de sobrevivência.

Ocupou o cargo de Administrador do Concelho entre 1900 e 1903.

Recordo-me dele nas visitas quase diárias que fazia a sua casa, ligada internamente á Farmácia. Ia matar a sede ao púcaro de barro que havia na casinha, em cima da banca de lousa, com o caneco de esmalte pousado no prato que o tapava. Recordo-me de ver o ti Cunha, como lhe chamava, quase sempre rodeado de livros, ou de pena empunhada, a escrever numa letra muito certinha e alinhada, laudas de folhas de que infelizmente não sei o destino, e que urge recuperar. Aproveitava para o arrenegar com qualquer diabrura em que era useiro e vezeiro. O bom velhinho, lá fungava umas palavras, um misto de irritação e ternura que eu na altura nem apreciei devidamente. Era muito miudinho – por isso alcunhado de Pissoquinhas, pelo rapazio da rua – por ser muito pormenorizado, muito metódico, querendo tudo muito bem explicado, não se dispensando de vir dar conselhos a minha Mãe que o ouvia com muita atenção, certamente aproveitando o seu imenso saber.


  


O inferior revela uma análise à urina para saber da presença de diabetes

A vida de Manuel Ferreira da Cunha foi um exemplo de civilidade, tolerância, num homem virtuoso e bom, imbuído de um forte sentido de compreensão para com os outros, disse-nos Américo Teles aquando do seu falecimento em 1946, em «O Ilhavense».
O seu arreigado sentido familiar, protector das irmãs a quem criou situações materiais aceitáveis ao tempo, é um exemplo de fraterna dedicação, renunciando a muita coisa de bom que poderia ter chamado só para si.

MFC foi um farmacêutico distintíssimo, muito meticuloso, honrando a classe de que fazia parte.Que lhe retribuiu quando por unanimidade lhe concedeu um voto de louvor na Sociedade Farmacêutica Lusitana, importante estrutura que muito contribuiria para o desenvolvimento das Ciências Farmacêuticas em Portugal, tendo-se salientado pela grande intervenção no campo da politica profissional, farmacêutica.

Ilhavense dos mais ilustres da sua Terra, ninguém melhor que Ferreira da Cunha, e mais desinteressadamente, soube pugnar pelos legítimos interesses do nosso concelho refere Américo Teles em 25.08.1946.

Senos da Fonseca

quinta-feira, março 18, 2021

 


LENDA DA TERRA DA LÂMPADA


Há muitos… muitos anos, tantos que já ninguém o sabe ao certo,

aconteceu em Ílhavo uma história que virou lenda.

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Era uma vez… uma terra que em menina foi surrada pelo mar que lhe sucumbia aos pés e que depois, já crescida, viu aquele amainar aprisionado pelos braços da sereia lagunar: logo logrou escapulir-se, obrigando as suas gentes, pescadores da borda, a atravessar o prado já então a revessar de verde que se estendia, qual tapete macio, para os levar à Costa-Nova em demanda da sardinha, que, diziam, tal como a mulher, se quer rechonchuda e pequenina. Como todo o gentio do mar, pescadores ou mareantes, sempre os ílhavos foram mais tementes a Deus que a esse cão danado – o mar! – que, por vezes amuado de tanta ousadia, enraivado, ronrona ameaçador em ondas espúmeas ao embater contra os frágeis barquitos em que aqueles ganham o pão para os seus.

Era nesses momentos dantescos que o arrais Ançã lhe gritava: Ah!... danado, se fosses d’aguardente bebia-te só de um trago!

E logo o mar, parecendo amedrontado com o desafio do arrais gigante, alquebrava e, às arrecuas, tolhido, desembestava a tramontana, serenando.


Mas com Deus não se brinca, ou ofende, e os ílhavos, criaturas de fé devota, muito embora confiassem nos seus arrais – que não havia outros de tal igualha por essa costa abaixo –, quando chegados os momentos de aflição, faziam as suas promessas ao S. Pedro, orago da sua devoção que, na Igreja da santa terrinha, no altar, atento, velava pelas suas vidas. Acreditavam.

Apesar da vila ser, naqueles tempos idos, aconchegada e pequena, era escufenada, tendo já desde os nossos primeiros reis uma igreja real, vistosa e imponente, que lhe conferia merecido destaque. Os pescadores e famílias, principalmente o mulherio, eram gentio muito religioso, comparecendo diariamente à missa pelas matinas, levando consigo uma esmola que entregavam às almas para protecção dos seus. Esta igreja desde muito cedo passou a ser das mais importantes e mais ricas de toda a região de Aveiro, exibindo valiosas imagens de Santos em terracota, adornada de ricas alfaias de ourivesaria. Que, de muito faladas eram, por isso, também muito cobiçadas. De tal modo que, aquando das invasões Francesas, os soldados do general Junot a esbulharam das suas riquezas para assim recomporem o seu cofre depauperado.

Conta-se, então, que só uma rica custódia de ouro – que hoje ainda existe – e uma valiosíssima lâmpada (vistoso e artístico candeeiro de prata que descia do tecto alumiando bruxuleante a capela do Santíssimo) se salvaram, porque um tal Malaquias – o Raposo –, antecipando-se à soldadesca francesa, as encapotou na batina, levando-as consigo, enterrando-as. Só passados muitos anos, vendo que o perigo tinha então já passado, resolveu desenterrá-las para as entregar ao prior, que, muito agradecido pela esperteza do acólito, logo mandou preparar grande festa para celebrar o acontecimento do retorno das valiosas peças. Uma festa com direito a pregão prodigamente trombeteado pelos párocos das redondezas que, do alto dos seus púlpitos, prometiam foguetório de arromba, procissão solene que fosse testemunha da virtude da hora e a que não faltaria o ignoto dominicano frei Elias, cuja voz tonante faria ribombar os Evangelhos mailas ameaças da Santa Inquisição alevantando abundosas tremuras em todos aqueles que, pecando, tresmalhados, andariam mais perto de trambolhão no caldeiro

onde  frigiam as almas penadas, do que no azul celeste do paraíso–promessa habitual do sermonário – por onde ricos e pobres se passeiam, irmanados na dádiva de graças ao Altíssimo. Vá-se lá acreditar. Mas nestas coisas do alto mais vale precaver do que ver.

Tanto alvoroço faria acorrer à vila gentiaga estranja para render tributo aos tesouros que voltavam a arejo, para regalo dos fiéis crentes, aboletados por toda a vila em palheiro de compadre, de amigo ou de simples conhecido, tudo gente de boa crença e fulanagem. Andara o povo em grande folgança, a doidejar havia já três dias, com visita obrigatória à esplêndida igreja que, aperaltada com vestes de gala, mostrava, envaidada, as relíquias a quantos as quisessem admirar. Um ror de gente…

No final da festarola era já segunda-feira, dia para estas gentes voltarem à labuta diária depois de reconfortadas com a missa da madrugada. Ainda os galos cucuritavam nos poleiros, na igreja restavam abusacadas apenas algumas beatas que, ouvida a missa, ali ficaram a fazer as suas rezas e, assim palrando, esperavam pela missa seguinte, da manhã; duas sempre reconfortavam mais do que uma só.

Como eram mulheres de palanfrório, daquelas que todas as tardinhas vinham ao rebate contar as últimas, aproveitavam aqueles momentos para pôr a conversa em dia, pois que a festança as afastara daquele convívio diário da má língua, onde as bocas baladeiras falavam disto e daquilo… desta ou daquela, de toda a gente do sítio; o tempo dava para isso, que era tanto que ainda crescia para rezar um Pai Nosso e três Avé Marias.

— Oi… chopa! - olha para quem entrou…, disse às tantas a Maria Calatró, da Malhada, interrompendo a conversa, acto contínuo virando-se para a Josefa do Arnal( que ali estava engrunhada, encapuchada no xaile de burel que lhe cobria a cabeça como se o frio da manhã a tivesse entorpecido) ao tempo em que indicava dois indivíduos que, de escada na mão, com umas cordas aos ombros, tinham entrado na igreja onde ainda apenas a luz mortiça das velas e as das lamparinas da majestosa lâmpada quebravam o negrume. Tinham parado debaixo da mesma, assumindo um ar de consternação e espanto, dizendo em voz alta um para o outro, de modo a que as beatas ouvissem:

–Ora vai-te… que raio de negócio fizemos… Quem é que a há-de limpar por semelhante preço?!…, dizia o mais baixote, parecendo arre- pendido com o negócio.

–Bem… já que justàmos o preço, agora não há nada a fazer… Toca a baixá-la que se faz tarde…, diz o outro, homem de barba cerrada, de aspeito desconfiado, olhar de aspe decidido a saltar sobre a presa ou fugir lesta, se inimigo se abeirasse.


E se melhor o disse, mais rápido o fez: pondo mãos à obra, subiu a escada e arriou a lâmpada perante os olhares assarapolhados da Josefa e amigas, logo a metendo num saco e saindo tranquilamente da igreja, de escada às costas…sobraçando ao ombro o saco onde restava a lâmpada.

– Estais a ver… chopas, como o Senhor prior manda tratar das coisas da Igreja para esta luzir ?!…, diz a Josefa Carqueja para a Calatró – e agora inda hás-de dizer que o home é um mancatufe que nem p’rás novenas serve. És uma mal dizente…raios! Que ainda hás-de ir estorricar no fundão do inferno… morrendas se não falendas, vade retro satanás.

Tocadas as sete badaladas da manhã, o prior lá veio com o sacristão para rezar a segunda missa do dia.

Vinha ofegante o abade, face espaçosa onde ressaiam as bochechas avermelhadas. Que umas  diziam ser do afã do ministério, mas que outras, maldosas, diziam ser fruto das barrigadas das caçoilas do carneiro avinhado ou de se alambazar – à farta! – com a chispalhada que servia de lastro às enguias de escabeche, tudo regado por tinto farto vindo das bairradas, que lhe provocava aziumados borbotões. O cabeção, manchado pelas manápulas pouco asseadas que tentavam aliviar o nó de enforcado, inchava-lhe o pescoço, exsudando-lhe os refegos que ser- viam de caneja para o suor que escorria para a sebada sotaina ruça.

É então que a Calatró, alvoroçada e já desconfiada de tanto cuidado do prior, pois no seu entender não era «arrais» p’ra tão grande barca, lhe salta ao caminho e diz:

— Ó ó!... senhor Abade... tanta pressa para quê (?!) santo Deus…alimpeza podia esperar mais um poico e acabar-se a festa com a nossa lâmpada, cá!...

–Que limpeza estás tu a dizer?... Ó mulher!…E de que lâmpada… estás  para aí a falar?!,  resfolga o padre João dos Mártires.

–A que o senhor Prior mandou alimpar, hom’essa!, que estes olhos que o chão hão-de comer, viram ali… e «q’uinda» agora a levaram, a mando de V. Reverência, responde a Calatró apontando para o tecto vazio da igreja.

E foi então que o Prior olhou para o sítio onde era suposto estar a lâmpada. Vendo-o vazio, de olhos esbugalhados, gritou:

–Ah ladrões. Ah cães!...que me roubaram, grita o aporrinhado abade, vermelho como um pilado da praia, logo se arriando das pernas, caindo para o lado… a bufar em apopléctico estertor.

–Ide depressa buscar auga da benta… que o pobre homem vai-se, grita a Luísa dos Sete Carris para as restantes, ao tempo em que amparava o desfalecido abade nos seus braços de pimpona pescadeira.

–Que vá… olhendas!… É como a lâmpada, assome-se que é um ar que lhe deu, logo diz a Calatró que não perdoava ao prior tê-la um dia mandado para casa onde, disse, tinha mais que fazer que estar ali sentada no rebate da igreja à espera da missa da madrugada.

E logo a Calatró, acrescenta :

–Q’uinté tenho mais pena da lâmpada que do corvo que não faz falta aos filhos, que os não tem, referindo-se ao pobre abade que, pouco a pouco, depois de rebaptizado pela Josefa, começava a dar acordo de si. Uns gorgolhões de cachaça que o sacrista tinha ido, lesto, buscar ao passal, acabaram por recompor o pobre diabo.

— Ai!… filhas…, diz a Luísa, desta vez nem o Raposo nos vale!!!

Em Ílhavo, durante três dias, os sinos dobraram afinados por ordem do prior João dos Mártires; tantos quantos os da festa.

A lâmpada, essa, levada pelos larápios, levou um sumiço…


...até hoje.

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Quando se quiser fazer corar de vergonha um ílhavo, basta dizer:

T’imbora homem… que és da terra da lâmpada!

Mas  deve  seguir um conselho: foge da terra, não te vá acontecer ficares pendurado na borda…que, a um ílhavo desembolado, nem o campino de Garrett, habituado a suster os cornígeos brutos, consegue fazer peito...

SENOS DA FONSECA



terça-feira, março 02, 2021


 


E porque não uma pequena leitura de «OS MAIAS NA COSTA NOVA».

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(....)

Quando desceram ao salão, nove e meia em ponto, já os anfitriões acompanhados de um pequeno grupo de convidados, sorridentes e ansiosos, educada e cerimoniosamente, estavam prontos a dar-lhes as boas vindas. 
Convidados a sentarem-se.A   Carlos da Maia foi dada a direita de Pinto Basto; a Ega, precisamente o canto oposto, ao lado de D. Ana Pinto Basto, muito english, muito fina e cortês, nos gestos e nas palavras. À mesa também os Viscondes de Salreu e Taboeira, e respectivas esposas, e o habitual Conselheiro Ferreira da Cunha. Do grupo fazia ainda parte o bom Arcebispo Bilhano, varão notável pela sua santidade, homem bondoso e sábio, personagem de grande cultura e instrução, raridade da sua casta. Muito longe do ultra montanismo de uma igreja notoriamente reaccionária, miguelista, corrente pouco expressiva em Aveiro, combatida ferozmente num passado ainda próximo, presente na memória de todos, pelo Conselheiro Queiroz. Precisamente o avô do criador de «Os Maias». 
Uma sopa onde o peixe, era senhor e rei, foi servida aos circunstantes. Pairava no ar, com este gesto simples, sem falsos espaventos, um afastamento de demonstração de novo riquismo. A conversa iniciou-se e estendeu-se, fluida, a toda a mesa, cruzando-se em motivações. Sem especulações, ou afirmações casuais ou inúteis. 
Nenhuma alma estava ali para se desnudar em filosofias ocas, mas antes para alimentar a sensação de estar a participar alegremente num repasto familiar. A determinada altura, a anfitriã interroga Carlos: 
– Então Sr. Maia? como vai a vida pela nossa encantadora Lisboa? Estou curiosa – bem curiosa! – de conhecer as suas primeiras impressões com a gente de cá, com quem, julgo, ter já tido a possibilidade de uns primeiros contactos. 
– Pois bem, minha distinta amiga, estas primeiras horas de vivência foram para mim muito curiosas. E até, potencialmente, regeneradoras. Parece-me convalescer. Sinto-me, estranhamente, a entrar em alegre primavera. Em franca recuperação da entediante vida de Lisboa. Pressinto a emoção de ter acedido, de novo, à varanda da vida. E... e... titubeou Carlos , olhar repentinamente fixo numa forma feminina que tinha, silenciosamente, entrado na sala, a cochichar algo ao ouvido da Senhora de Pinto Basto. 
Visão assombrosa a daquela mulher que acabara de entrar discretamente: uns olhos de um verde de água transparente, incrustados num doce rosto tisnado pelo sol, a que uns sedosos cabelos, caindo mansamente sobre os ombros, pareciam realçar um escultural corpo, que se pressentia ágil, voluptuosamente modelado. 
– Bem...ia eu a dizer ...ó Ega,onde ia eu? 
– Pois Carlos, explicavas à nossa anfitriã, a memória das coisas fúteis de Lisboa... 
– Ah... sim, claro: há qualquer coisa que me faz sentir desarrumado. Pressinto que a constatação de um erro qualquer, se apodera do meu espírito. 
– Meu caro Carlos da Maia – interrompe o Arcebispo – na vida sucede, que nem sempre nos jardins maiores se encontram as mais bonitas flores. Às vezes, num árido descampado, surge-nos algo que, num olhar, se destaca a estranha e notada flor. Alegre na sua tristeza de estar ali. Sózinha.. O tédio muitas vezes é a incapacidade de crença. Quem tem Deus não tem tédio. 
– Sr. Arcebispo – diz Ega entrando na conversa, ajustando o monóculo –nos últimos anos da minha vida tenho-me afastado das veredas do Senhor, perdido no decurso de uma vida onde,por vezes, me magoo propositadamente para me sentir vivo. Sonho uma vida erudita, mas ela não chega; sonho com viagens inimagináveis, mas quando compareço ao cais de embarque, recuo. Fujo... fujo... e acabo sempre por voltar à vida quotidiana. O tédio é esta falta de satisfação interior: pensar que penso, sem pensar. Pensar que existo, sem me dar conta que, de facto, o outro eu não existe. Já me mascarei de demónio e quando me vi ao espelho, a julgar que ficava bem no papel de Mefistófeles, o Senhor Deus encarnado no perverso judeu Cohen, correu-me a pontapé. E acabou assim a minha tentativa de fuga endemoniada. Em mim, digo-o com tristeza, a moral não me exige que eu faça bem a alguém; e também não exijo que mo façam a mim. A moral da sociedade actual está no louvor, na exaltação do lodaçal do vício. 
– Meus amigos: peço-vos encarecidamente que não acreditem no meu bom Ega. É um ser exagerado (provocante), mas dócil. Quer ele queira quer não, tem a sua moral. Revolucionária (?),quer ele crer.Um pouco de demagogia à mistura. Mas que seria do mundo sem estes arrufos revolucionários anti tradicionalistas e inovadores? Na prática quotidiana um regaço para o amigo, tanto nas boas, como nas más horas. Eu que o diga. Ao exagero, a sua falta de crendice, resume-se a não fazer bem, nem mal, a ninguém – acorre Carlos em defesa do amigo. 
Atalha o Arcebispo, expressando-se num modo confessional: 
– Bom João da Ega: deixe-me, mal grado o pouco tempo de convívio, assim o considerar: longas, difíceis, e por vezes tortuosas, são as veredas do Senhor. Este assinalou que umas ovelhas são as suas; há outras que não são. E terão de ser trazidas ao redil. Olhe é como a arte de Xávega: a rede é lançada, diariamente. Muitos peixes entram nela, e vêm à praia. Mas são mais os que ficam de fora...
– E ainda bem... ainda bem... meu caro Bispo, senão amanhã não haveria já sardinha para nos deliciar – acode o Marquês da Taboeira, sorridente, jocoso, um alegre personagem, cuja fisionomia sanguínea não permitia enganos quanto à devota predilecção pelos prazeres da mesa. 
– Parece-me acertada – assume a senhora de Pinto Basto com suprema elegância – a opinião do nosso bom Bispo: não aceleremos os tempos. A prédica ainda deixa muitos de fora. Mas os que ficam de fora, por vezes, são como a sardinha. As que ficam de fora até ao próximo lanço, são as melhores. Os «olhos do sábio são a cabeça». Só se deixa ver por dentro, quem nisso está interessado. O sr. Ega talvez não queira ainda que tal aconteça. Respeitemos a sua pretensão. 
Ega ajusta o monóculo, afia o farto bigode loiro, enfia o indicador pelo colarinho gomado da camisa, ajusta o colete de veludo verde- forte, retorce-se na cadeira para melhor se acomodar, e atalha: 
– Ilustríssima Senhora e Sr. Arcebispo: eu gostaria de nunca ser apanhado na rede. Eu quero ficar de fora para ver como será depois. O mundo só avança quando os mais fracos forem enredados. Sua Alteza, o nosso Rei, dá o exemplo: gasta à tripa forra, sempre a meter vales à Nação. Os cofres do País estão mais exangues que o meu mealheiro. Então ficarão os que hão-de acabar com esta pouca vergonha. Tudo me parece uma fraude. Até Lisboa é uma fraude como capital de um País, que o foi, mas já nada é. Só voltaremos a ser gente se vier alguém de fora meter isto na ordem. 
– Mas quem?... quem? inquire o Conselheiro Cunha... 
– Olhe Sr. Conselheiro: uma troika de espanhóis, franceses e ingleses. Cortam a ração a tenças escandalosas que, os ouros dos brasis faziam crer, nunca mais acabar. E pronto. Isto endireita-se. Haja quem mande.Que obedecer é coisa que temos por hábito. 
O dito, com contornos de idealismo revolucionário saído da boca do anafado Ega, era claramente uma provocação diletante. 
– E então depois, pergunta o Conde da Taboeira?
– Corríamos com a corja estrangeira, depois, a cacete. Como fizemos ao Junot. Recuperando a nossa glória de caceteiros-mor da Europa. Se Deus veio a Ourique, será de esperar que venha, então, agora de novo, a Trancoso. O nosso povo é obediente para os da casa. Mas forte para os intrusos. Os nossos políticos é que são o flato pátrio. Uma cambada corrupta de asnos. Um lodaçal pútrido. Porque devem então trabalhar os portugueses? Para os manter em exibição, esmifrando-nos com os impostos? Comigo não: antes que o país entre na bancarrota, vou é gastar a herança a Paris. 
– Ai... o Senhor Ega parece que augura a chegada para breve dos republicanos. Mas não duvide – atalha o Conselheiro Cunha... – não duvide... Mudam os burros... mas a manjedoura será a mesma. A «loba» será a pátria. Os rómulos e os remos, serão sempre os políticos: os monárquicos e os novéis republicanos. Os que vão gastar para Paris, certos de que têm bom gosto e são gente civilizada... E como não podem lá ir amiúde, ficam por Lisboa. A fingir que, ali, é Alexandria do farol. Ah!... para eles a Província é uma morada de tísicos e leprosos. Fica por Lisboa esse pequeno grupelho de mamões ineptos, à espera que, da Província, lhes seja mandado o sustento ganho pelos servos. São vazios da cabeça, sem olhos nela – como refere a D. Ana – para ver que é bem bonita, a nossa capital. 
Vermelho, um pouco atingido nesta apreciação do Conselheiro, Ega pigarreia: 
– Pois: o senhor Conselheiro deu-me farta matéria para o meu livro, cujo título será «Interpretação objectiva de um País». Será uma obra sem artifícios nem escusas, clarificador, contundente, despido de frases bonitas, janotas, vazias de realismo. Onde demonstrarei que o mal, veio de considerarmos e interpretarmos o nosso passado pátrio, sob um ponto de vista exclusivamente materialista. 
– Fico na grande expectativa de o ler. Mas porque não escreve mais, meu caro Ega? 
– Olhe D. Ana, um escritor que se preze – e eu, João da Ega, prezo-me de o ser – tem um grande problema actualmente; é que cada livro tem de ser escorrido de uma caldeirada de pseudo literatura, onde há de tudo. Há que deixar repousar a boa, para a separar da horrenda literatura possidónia. Que tudo critica e tudo põe abaixo. Por isso tenho esperado just the moment. Só se vier outro terramoto, ou uma pestilência silenciosa que arrasem esta terra de embófia, levando as cabeças mirradas destes diletantes pseudo inte- lectuais, é que, então... sim (!), nascerá uma nova literatura. Aí terei o meu tempo para ascender à imortalidade... 
(...)



  67.   Poemas de Abril Abril: síntese inalcançável Já não há palavras  Que floresçam Abril,  Nem já há lágrima...