sábado, fevereiro 06, 2021

 


(Escreveram-se  belas páginas a descrever o tumulto grandioso da  arte xávega. Esquecendo figurantes de primeira que encheram de espanto poetas e simples mirones. Hoje resolvi prestar jus a quem, ficando na praia, permitiu aos outros ir ver os sóis fugidios).


LAVRAR O MAR


Olho aqueles corpulentos

Majestosos e hercúleos 

Bois da velha companha

Que enlaçados ao calão da rede

A vão alando até deixar ofegante na praia

A parir do ventre estripado

O prateado peixe roubado ao mar.


Animais vindos do lado de lá

Do perfume adocicado da resina

dos pinheirais 

Trouxeram-nos à borda a lavrar o mar.

Vão nas manhãs de nevoeiro  em parelhas 

Cabeça baixa, olhar torvo, parecem, citados pelo mar,

A investir por ele vaga adentro, encharcados.


Afagados pela maresia

Nos dias de sol espraiado

Vejo-os resfolgarem, nariz no ar

À procura de uma sombra no areal caiada,

Que aqui não existe. Parecem velhos...

Os bois nasceram já velhos

Na cor pardacenta do seu costado.


Velhos no sossego da sua existência

Vão ruminando no alento da noite, a sua ausência,

Para no amanhã prateado voltar ao fadário.

Sob sol escaldante ou chuva de tarde desmaiada,

Fustigados pelo vento gélido da madrugada

Seguem de olhos turvos, despidos de um qualquer sudário,

Parecem amarrados a uma existência amargurada.


Sigo-os duna abaixo

Ao encontro do mar ousado, quebrado

Mar amargo, mar azul de tão salgado

A açoitar o xávega que alevantado teima ir,

Lá longe onde moram as sereias,

Largar a rede para tirar do ventre do mar

A prata que a terra não pode parir.



E lá vão, dobrados, encabrestados

Vão ao tropeço na areia lassa da duna.

Fustigados pelo aguilhão do abegão

Levam à sua frente, aos tropeções, os mirones

Que vindos de madrugada, de chapéu e botifarras,

Calça arregaçada, desertam em louca debandada

Em tropel, fugindo na frente do estoiro da manada. 

Na praia já se alinham os xalavares.

Os bois doridos pela jornada

Parecem perdidos no areal 

Semeado de escasso espezinhado, prateado.

Hoje não há mais ir e voltar


Hoje mar... podes ir  acolher o sol dourado

E com ele ir, lá longe, nos longes teus, namorar.




[para que as gaivotas voando sobre os vossos beijos me venham de madrugada contar  a estrela  do pássaro e  a  estrela  do  grito teu...MAR!]


SF




sexta-feira, fevereiro 05, 2021

 A TI NORTA

( De   “O LABAREDA”)


(...)

Truca... truca... bole que bole... enregelada e encharcada pela surriada que a açoitava, a Maria resolve, como tantas vezes acontecera, bater à porta da «ti Norta da Bruxa», habitual pousio dos grupos das companhas e viandantes, em cuja varanda da taberna escorropichavam  um copo de três, último alento para a caminhada até à vila. 

Ela, a simpática «ti Norta», nem era lá, nada disso, de bruxedos. A rapaziada d’ ibalho – o Mano, o Sacramento, o Saguncho & companhia – é que vinham com as fidalgotas da Costa Nova, e com o intuito de as amolecer e tornar navegáveis, lhes diziam para tomarem da sua jeropiga.Que, garantiam a pés juntos, tinha bruxedo de amor. 

- Era bruxedo era!... Era mas é para as chicharem ao colo, as boquilhas·, que p’reciam umas augadas- ia pensando a «ti Norta» enquanto enchia os copitos, postos em fila em cima do tampo. Era mas é p’rás engrominharem, assegurava. 

Já noite, a barca partira. A «ti Norta» não esperava alma penada saída daquele iroso tempo, pelo que, a simpática velhinha, fechara a porta da venda. 

Que logo se apressou a escancarar, quando sentiu o chamamento da Maria. Aberta a porta, do escuro, recortou-se a «ti Norta» segurando o candeeiro a petróleo que esparralhava uma luz mortiça, bruxuleante e enfezada, mas suficiente, contudo, para se ver na sua cara um sorriso acolhedor. Um andar ainda desembaraçado, embora aqui e ali uma ou outra tropeçadela com os tamancos ferrados. Cabelos de um branco intenso, prateado, aparecendo por debaixo de um lenço preto, de ramagens amareladas, amarrado em volta de um rosto redondo, tisnado pelo sol e pela salsugem, onde sobressaíam duas maçãs rosadas. Deixando aparecer duas covitas, quando sorria, prazenteira e bem disposta. Era assim a boa mulher, sempre de serviço, para os arrastados. 

- Ah! criatura que inté p’réces - amode - vir lá dos infernos ! Entra alma penada. C’a ta deu?!), p’ra vires com esta trabuzana desarcada. P’réces fugida a lobisome, c’um raio ! Aviste algum ? 

- Cal-se aí, «ti Norta». Astrazei-me por mor do meu Miguelito benza-o Deus e lhe acuda o S. Geraldo que nunca pensei que nosso Senhor me castigasse tanto, pelos pecados que vou fazendo na vida – t’a renego, mafarrico ! - disse a Maria enquanto se benzia três vezes. 

- Entra lá cachopa. Tira um púcaro de água quentinha do panelo, e vai-ta tomar um banho. Leva este camisote de dormir e, óspois , vem p’ró borralho prantar-te, que tenho lá um «caldo de conduto» com que te aqueço as entranhas, e engano a fome. Vá, maneia-te  que eu estou esgalfa , e vou andando c’uns jaquinzinhos de escabeche, que óscreceram  d’onte. 

Tomado o banhito na celha, a Maria atou uma corda ao camisote que lhe assentava compridote, apressada a sentar-se no mocho, perto da lareira, onde uns cavaquitos ardiam, fagulhosos, aquecendo a casinha, ao mesmo tempo que distraíam o olhar. Enquanto isso, a «ti Norta» limpava com o sorrascadoiro a cinza do borralho, juntando-a num montinho, para ao outro dia a despejar no quintal, na horta dos alhos. 

Retirado da trempe e destapado o panelo de onde fluía um odor que pareceu à Maria descido das alturas, com a cônchara, a «Velhinha», boa acolhedeira retirou um atafulhado caldo de sustância . Uns feijões vermelhos serviam de lastro a um naco de toucinho entremeado, escondido no meio de umas couves tronchudas, a que se juntavam umas rodelas de linguiça que conferiam ao caldo, sabor divino. 

Finda a vitualha - o caldo bem aviado - que teve o condão de retemperar forças, a «Norta» retirou do lume uma cafeteira enegrecida onde bolhava um café misturado com cevada. Que verteu para uma meia, para assim coar o trote, despejando-o em duas malgas de «cavalinho», botando-lhes  lá para dentro pedaços de pão de centeio, que embebidos na mistura líquida, negra, tinham o dom de espevitar o bebericador, criando disposição para um dedo de conversa, ao caso, entre duas falastroas, daquelas de, morrendes s’a não falendes. 

- Atão nobedades lá da bila? Disqu’ «Afecta» está outra vez pranhuda do Padre Jordão. Raios!... de cadela aciada.. q’apréce uma simprinhas, a beata. 

Sempre com o pé a puxar p’rá trízia. E o sacripanta, invez de guardar respeito à nossa Senhora, com quem diz «casara», anda é a embarrigar a eito, tudo o que tenha saiote d’alevantar. 

Por falar em embarrigar ; aqui òstrasado, a Rosa «Gueira», contou aqui na venda, que o Balacó esfanicou a cancela à Amélia «Cachina», e iu-se lá p’ró sule, sem dar òstifação, deixando a  inxerida, a oivir as marmurações  - sua esta sua aquela - à espera de um esgalhudo que a queira naquele estado, fora dos conformes. 

- É, pois astão...e não foi tómorólha nenhuma, «ti Norta». Estava mesmo a ver-se que tal assucedia. Ele era um taralhão  ; p’racia pião a dar rapóla . 

- E por cá ? - deu de perguntar a Maria, sabe-se lá porquê. Ou já vai saber-se. Esperem, que neste mundo tudo tem explicação. 

- P’orqui nada òsdenovo. O Tóino vindo lá do norte, inté p’réce que pensa ficar. Mas inda 

não arranjou testo para a panela. 

- Ora vai daí. «Testos» é o que há mais p’rài - diz a Maria parecendo desinteressada da novidade. 

- Pois é ...rapariga, e às vezes as que mais desdenham são as que mais querem comprar - responde a velhota deitando um olhar malicioso e inquiridor ao sorriso bonito que tinha surgido na carinha laroca135 da Maria - para logo acrescentar : 

- Sabas o c’a te digo : o rapaz não é mancatufe nenhum, e inté p’réce que teve mãe fidalga. Poucos andam por aí da sua ogalha , oiviste ?! Não é despescado nenhum ! Bota olho p’ràs tainhas a fazer borlido , à tona d’auga, mas só p’réce que procura peixe lá do fundo, peixe branco, como virgem. E mofa c’uas chaputas. Que não são p’ró seu tempero, como fez à Rosa «Delambida», doidinha d’astrepar por ele acima, como se o rapaz fosse uma enxárcia p’ra todas assuviremao mastaréu. 

Os olhos de Maria faiscaram, desprendendo um fulgor de desejo vindo lá do íntimo do seu ser, como que dizendo : «aqui estou !». 

(....)


Nota: todos os “ilhavismos” estão no original, traduzidas.


quarta-feira, fevereiro 03, 2021

 


O Espelho


Por detrás de cada espelho 

Há um acumular de silêncios por explicar,

Pedaços de vida  amortalhada 

Em tantos passos dados no ar.

 


Nos espelhos perdem-se os sonhos:

Estão lá coisas que não queremos mais ver

E não estão as que  já não existindo,

Gostaríamos que lá estivessem ainda.

 


No espelho tudo dói,

Tudo magoa,

Tudo desilude,

O espelho é como o vento

Que leva o bom

E deixa o que de mau vai restando de nós.



Fui espreitar, curioso, 

Atrás do meu espelho.

Vi 

Choro, sorriso, lágrimas, olhares de dor, sentimento,

Vi

Desalento, quimeras,  mágoas molhadas, razões esmagadas

Vi 

Amores perdidos, amores vencidos, labirintos criados no tempo,

Vi 

Crueldade, desespero, desengano, palavras mordidas, derrotas marcadas, 

Vi

Direitos ofendidos, tortura de silêncio interior, surdo lamento.

 


Dizem que as dores acabam com a sua morte

Só uma perdura  mesmo depois de morrer:

 A Ingratidão… 

Desta tralha havia  muita, atrás do meu espelho.


Peguei na tralha e estendia-a.

Fiz então dos braços 

Mastros erguidos ao céu,

Mezena e traquete cociados,

Fiz das mãos estênsulas postas ao léu,

E entre eles estendi o mariato.

Atei o que vi 

No cordel imaginário do tempo.

Estava ali, eu!... de corpo inteiro.

Assim, nu, exposto ao vento.



Parti o espelho

Quero apenas me olhar 

No espelho dos teus olhos

Ternos, profundos como o mar,

A não querer saber o que fui

Nem o que não fui,

Apenas saber o que ainda sou.


terça-feira, fevereiro 02, 2021

 A Tragédia de Juncal Ancho

E, de repente, o tempo chuvoso, como por encanto, suspendeu o incómodo do molha- tolos. Molha-tolos, porque na Costa Nova, mesmo com este tempo, noutros lugares desabrido, aqui, numa sota, salta-se logo para a rua. E claro, de vez em quando, somos surpreendidos por uma garroa.

Saí para o esticar de pernas diário, sabendo que, mais ali ou mais abaixo, encontraria a Zefa e a Tibéria. Ná, elas não eram mulheres de hibernar com um simples ameaço.

E é que lá vinham:

- Esta melhoria de tempo veio para ficar ou não, minhas gentes? inquisilei eu.

- O tempo é como o marinheiro. Nunca se sabe se veio para ficar se para saltar amanhã

Para nova emposta, reflecte a Tibéria. Pois, isso mesmo. Muito arrazoável. 

 - Era por isso que quando o meu Toino achegava, eu não o fazia esperar, não fosse o mar chamá-lo à pressa. E ainda ele não tinha apoisado o saco, e já eu o beliscava, espenicando-o todo, pronta para lhe tirar o «sarro» dos dias de lide, e achapar-nos ao folhelho: á home que ando com uma fome de ti; anda cá meu bardau, que te estrafego. E nem o deixava respirar tal era a força do abraço. Até parecia, mesmo, uma bárrega esgalmida.

- Delambida de um raio q’inté pracias uma santinha…

- Olhe, Ti Zefa – comecei eu – tenho andado a pensar:

 vossemecês alembram-se da tragédia de Juncal Ancho?

- Ah… olhe que não. Isso foi, sei lá; há que benícias. Eu só ouvi contar, era ainda muito novita. O Ti Gaivotinha, esse sim. Esse até p’rece que era um dos embarcados numa das «ílhavas» que levaram o pessoal à festa. Você conhece a história? – acrescenta…

- Olhe que por acaso conheço, li-a, e também ouvi nos Sete Carris, à Ti Tuna, referi-la várias vezes. E como a pretendo contar com mais pormenores, pensei que Vossemecês me ajudassem.

- Atão hoje é você que fia fino e faz a despesa da conversa. Maneie-se que nós atracamos aqui ao murete.

Então aqui vai:


……os «ílhavos» eram gente de grande fervor religioso, como sempre aconteceu com comunidades piscatórias. Mais tementes aos santos que à aspereza da natureza que defrontavam.

Não havia orago celebrado pela borda da ria que não motivasse dia de folga das lides, e não impusesse uma ida de bateira, com a família e vizinhos, para cumprimento das promessas que amiúde se faziam – que aquela vida era um «cão». Ao mesmo tempo aproveitava-se o folguedo para convívio, ou para pôr em dia,o atrasado conversalhar com conhecidos de fora, em trautos feitos, vulgarmente, por entre o escorropichar de uns copos de vinho, batidos de balcão em balcão, por entre as vendas do sítio.


De entre os oragos de reconhecido mérito – que festa de arromba elegia e glorificava – o S. Inácio do Boco, assumia carácter de invulgar dimensão. A justificar reiterada devoção e consequente visita. O seu altar encontrava-se erecto em Igreja, lá em cima debruçada sobre a ria, sita na colina que alberga no cocuruto o burgo. Logo ali ao dobrar da carreira da barca da «Forja» – Fareja – onde em tempos idos fundearam as barcas e pinaças de alto bordo que vinham mercadejar, às Gândaras. Era visita obrigatória.

Num dos esconsos becos da chousa de Alqueidão, por onde se alinhavam tugúrios de abrigo, a pescadores, marnotos e saveiros, os dias que antecederam a festa foram de intenso parlatório destinado a assumir presença, mas e também, perlengando sobre as vitualhas a incluir no farnel. Que se queria, coisa de regalo.


Chegado o dia, o «Zé da Preta» mai-lo «Thomé da Fidalgota», embarcaram amigos e familiares nas «chinchas», desocupadas e escorreitas de tralhas e estrafegos, onde se aconchegaram vinte e duas almas devotas. Ainda o sol não despontava, desgarraram do cais da Malhada aproveitando para isso a maré que já montava. Partiram alegres, folgazões e prazenteiros, para uma grande jorna que parecia ser capaz de pôr ameno no estupor de uma vida danada. O aquilão dava boa mareação. E quando o dia amanheceu, tinham já na amura de bombordo o palácio dos Botelhos. A manhã acordava com os maçaricos alvoroçados em matinas em procura do primeiro alimento. O sol a levantar-se, em hóstia de vermelhão suave, prometia jorna acalorada, deixando ver a serra desempachada de névoa, limpa lá para cima onde os montes luziam com o farfalho da manhã. Para outras bandas, onde um outro santinho de especial devoção destas gentes, o S. Geraldo, tem o seu pousio, na serra erma.

Vogavam enfarpelados a rigor, os romeiros. De calção branco largueirão, que se estendia até ao joelho encobrindo perna tisnada pelo sol e maresia; barrete descaído sobre o dorso, e camisão de linho, aberto, que deixava entrever o torso de gigantes da laguna. Elas de cara rija. Onde fulguravam dois olhos em brasa, ardentes e brejeiros, engalanadas por chapelinho de veludo preso à nuca por lenço de merino garrido; chambre branco cingido ao colo.Que pedinte de afago sensual repontava nas pregas da camisa floreada. Saiote de baeta descendo rente até aos artelhos, escondendo de olhos gulosos a visão deslumbrante de duas prendadas pernocas que vinham desafogar nas chinelinhas pretas, cingidas aos pés de «gaivina andeira» por cordão de abotoadura. O calor a meio da viagem, fortalecido pelo reflexo na água espelhada da laguna, fazia com que o busto do mulherio se esquivasse por entre o esconder das roupas de aconchego. E que, de entre rendas, brotassem, como pombas brancas aconchegadas em linho, peitos que assomavam e tentavam o olhar de quem, guloseimando, sonhava vê-los. E tocar-lhes. Ou até só aspirar o seu perfume e aconchego.


A aragem do norte cedo lhes permitiu a demanda e o desembarque no cais do moliço; sem delongas – que santos não esperam! – foi (logo) tempo de desembarque e de monta. Por caminho directo se alcandoraram até à Igreja, que naqueles dias treluzia com o seu chão lavado, ensaboado a amarelo, e depois brunido. Junto ao altar dois tocheiros ardiam, ajudando a quebrar a penumbra do templo a que só a porta dava entrada à luz do dia; castiçais de latão do tipo mourisco substituíam em lindeza, que não em valor, a prata afiançada. Só de pousio em outros templos de mais ricas alfaias. Nas paredes em quadros de talha doce, viam-se imagens penduradas de Stª Rosa e Stª Eulália, e outras estampas catitas ou figuras de feições celestes. Prometendo bem-aventuranças por entre copioso (e cheiroso!) efeito de lírios, jarros, mimosas, madalenas e alecrim. Ajoujados em vasos de faiança local conferindo ao templo um doce e suave, e lânguido, perfume celestial.

Hora de ouvir a santa missa. Desbravar o terço benzido, deixar uma esmola, e cumprir o prometido. Satisfeita a obrigação da fé, era tempo de lograr a sombra de uma oliveira – que o sol mordia a terra –, e desempalmar o escabeche mai-las solhas bem emparadas na molhenga. E os bolinhos de bacalhau, que iam assim cumprindo «o antes». Até ao momento de desenfardar o capão esplêndido: – cumpridos que estavam com a dignidade de quem se sente talhado para o fim último do sacrifício, seis meses de cuidada engorda. E que, como «feito» da bem acerejada assadura, exibia um jalme a escodear sem demora, de cuja prática se soltava fragrância divinal. O vinho, em reponta de maré, corria caudaloso pelas gargantas ressequidas que dias de sóis estivais ou de noites de suão tórrido, exsudavam estas gentes da laguna. O Boco, situado nas faldas das bairradas, era sítio privilegiado de boa produção avinhada – fragrante e saborosa. E nesses dias, aproveitava-se a visita para da mesma se fazer adequada publicitação. Assim, não raro, excedia-se o que seria adequada emborcadura, para cedo se atingirem limites de comportamento pouco adequados que, por norma, descambavam em confrontos violentos –verbais e ou físicos – pelos mais fúteis motivos.

Vista a procissão, feitos os últimos escorropichos nos descansos dos tascos do sítio, por entre risos musicais saídos das rebecas dos tocadores de ajuntamentos, e anunciado lá para as bandas do mar o lusco-fusco da noite estival – que embora preguiçosa vinha chegando, e com ela aragem frescota – era hora de partir. Levantaram-se as velas.Era hora de voltar à Vila,pois que ao outro dia, madrugada ainda não acordada, ao primeiro trilo de maçarico cantador era hora de botar o botirão a coar.


Chegados lá para as bandas do pinhal da água fria, o vento tornou-se instável, prenunciando doido corrupio que impedia a boa singradura a norte; as mentes estavam toldadas demais para lhe encontrar o jeito bom para nele navegar. É então que numa golfada rija emborcada pelo través, que a «Preta» vai direito à «Fidalgota» e lhe entra pelo cavername adentro, levando tudo à sua frente .Bico da proa embatendo com violência na cabeça da Zefa, embarcada na «Fidalgota», matando-a de imediato.

Foi o fim; gerou-se uma encarniçada luta mais parecendo uma verdadeira abordagem de corso, com o mulherio em vozearia espavorida ao ver as naifas logo desembainhadas pelos seus homens, que, ébrios do tinto e da odiosa vingança, procuravam sítio e carne por onde se espetarem. Uns ainda dentro da embarcação, outros já na água aonde tinham vindo parar após embate,todos pareciam esquecidos do semelhante «amigo e vizinho», que se tinha, instantaneamente, transformado em figadal inimigo de que só a morte permitiria livração.


Foi uma tarde ensombrada de sangue. Vinte e uma vidas ficaram esventradas; umas dobradas sobre a amurada escorrendo para a laguna, enquanto esbracejavam nos estertores da morte; outras, boiando sobre as águas da ria que desciam para o mar, acompanhadas pelas águas tintas de tanto sangue esvaído.

Apenas um, de entre os romeiros do Stº Inácio, lograria escapar com vida.

À noite, temendo vingança de vizinho ou familiar, tomou lugar numa enviada que estava de partida para Setúbal.E desse modo lá escapou a destino mais do que certo.

O desembargador ao outro dia logo mandou uma patrulha para averiguação do desacato.

No simples relatório que lhe chegou às mãos, apenas constava:

“Das vinte e uma pessoas do foral de ílhavo (sic) desaparecidas, nada se sabe, senão o terem-se ausentado para parte incerta”.

E assim se deu como (legalmente) encerrado, e sem identificação de culpados, um dos piores acontecimentos de sangue fratricida vertido por «ílhavos».

Quando acabei, li emoção nas minhas companheiras de conversa.

- Linda mas desalmada história. Pois. Íamos a todas as festas da ria – Maluca, S. Paio, S. Jacinto. A todas onde houvesse santinho milagreiro. Para lá, ia-se a cantar. Alegres, anchas e vivas. Para cá, vínhamos moídas com o quebranto de tanta folia.

- Pois, diz a Zefa. Parecíamos uma pégorra: para onde vais, Maria (?): – p’rà festa!!!!!! De onde vens, Maria (?): ó tiazinha, venho de onde havia festa.


SENOS DA FONSECA


segunda-feira, fevereiro 01, 2021

 



Horas vagabundas

Roubaram-me as horas vagabundas,
Perdidas na sem razão do fugir à lógica da vida.
Já nelas me não descortino, especado
A olhar o fulgor do sol a se esvair, envergonhado.
Horas de vida sem tempo
Em que eu era o mesmo sem ser igual;
À procura de um ou outro momento
Em que a tua imagem viesse num cavalo alado
Ali, se sentar ao meu lado

Para alívio dos meus ais entediados.

SF


 Choro este País 


Do «Grande Afonso» a mais querer que um País 

Partindo em gloriosa cruzada, gladiou com o mouro infiel]    

Para fazer do seu Condado um Portugal de raiz  

Numa mão a espada, a cruz na outra mão empunhada]

A mim! A mim! Gritava Afonso, foge o infiel em debandada.]  


Choro este País,

Onde a arraia-miúda se exalta e se faz graúda

 Parecendo já um povo por inteiro em que se torna 

Ao expulsar o intruso e pérfido castelhano então

Atirando do cimo da torre, à turba, o castelhano Andeiro:]

Aqui há um povo a sonhar com Portugal nas suas mãos.]


Choro este País,

Do grande el-rei João Segundo 

Os mares assombrosos, terríveis e solitários

Mandou serem navegados, e desvendados

E as trevas e os medos, passaram a estórias

A mostrar a grandeza de Portugal ao Mundo.


Choro este País

De onde saíram cabrais

Albuquerques e outros tantos gamas,

Heróis a quem o mundo ouviu contar os mistérios, 

Tão grandes como ditosas e louváveis foram, suas famas]

Ao fazer de um País, vasto e grandioso Império.


Choro este País

Do imortal vate que nossa epopeia descreveu. 

Em versos vertidos da sua pena prodigiosa

Dando ao mundo a conhecer ínclitos Varões

E os feitos de gesta brava lusitana, grandiosa (!)

Para sempre ficaram gravados no lirismo épico do imortal Camões.] 


Choro este País

Que teve de Vieira a palavra eloquente

Para defender os fracos dos abusos dos fortes.

Falando aos peixes por mor do Homem ausente,

E aos homens por mor de Deus sempre presente, 

Espalhando a sublime palavra, botão florido do mais fino recorte.]



Choro este País 

De Pessoa, o Mensageiro, poeta desassossegado

Cuja genialidade, por louca, só em si não cabia,

Dispersando-se por outros «eus» que não era o seu,]

E por não o ser, foi sempre obra inacabada,

De laborioso mestre a extrair beleza, onde beleza não havia.]       



Porque choro, então, País tão grandioso?


Choro este País, não pelo que foi, mas pelo que é

Choro o dia em que anunciou não querer, nunca mais!, ser escravo

País onde mais do que mandar, era preciso saber obedecer

A si, e não aos outros, a ser livre, não Senhor de nenhuma guerra

A ser o Povo que aqui mandasse, a ser o Povo que aqui reinasse. 


Choro pois este País, pelo que prometeu ser

E por afinal hoje ser, aquilo que não queria ser 

País este, o meu, onde afinal se soube melhor «arrancar» que colher

Onde cuidámos mais do vício «de ter», do que do «ser»

Em que alimentámos por demais, as ambições dos novos corifeus.


E assim o País que parecia voltar a querer nascer

Não nasceu – Morreu!......


SF



  67.   Poemas de Abril Abril: síntese inalcançável Já não há palavras  Que floresçam Abril,  Nem já há lágrima...