segunda-feira, dezembro 20, 2021

 

 Onde se dá conta da 


                                   Terrível Batalha  entre Algarvios e Saveiros

                                                                   Séc. XVIII


No séc. XVIII, a Trafaria era um porto de abrigo ribeirinho, situado na margem sul do Tejo.Com relevância muito especial para os navios provenientes de zonas ou países pestíferos, sendo por isso obrigados a quarentena, antes de atracar a Lisboa. Ao lado do Forte de defesa que vinha já de longa data, fora edificado o chamado Lazareto (edificado em1714 ,substituindo um anterior, de dimensão e condições não satisfatórias, que, por esses motivos, foi destruído), para acolhimento de doentes  infeciosos, a maior parte chegados por mar. A Trafaria, era, por essas razões, terra pouco procurada; por isso despovoada.Com fartos terrenos ribeirinhos livres, ali a duas remadas da boca da barra, logo  cativaria  os “irredutíveis ílhavos” para  aí acamparem o  arraial de pesca,com as suas características barracas. Pescadores  famosos vindos do litoral “lá de cima”, nesse tempo interessados na pesca do sável ( de essas e todas as outras espécies que viessem à rede), a Trafaria, apartada “do mundo,mas fácil de, em ajustada e directa singradura nos seus rápidos saveiros alcançar, e assim abastecer, os mercados de peixe da outra banda. Logo a colónia piscatória de ílhavos e murtoseiros(pois estes por norma seguiam os ílhavos nas suas migrações) viu, ali ao lado, nos areais da Caparica, um excelente e prometedor campo piscoso  para as mais diversas artes(arrasto, tresmalho).Antevendo o momento em  que as ílhavas e chinchorras viriam a ser substituídas pelas embarcações das Artes Grandes, quando a colónia de pesca se estendeu no areal  longo da Caparica, muito apropriada para aquelas artes de pesca.

Com a chegada dos algarvios àquelas paragens, praticando outro tipo de artes(o cerco),logo os atritos e desavenças subiram de tom, tornados frequentes, em disputa da  primazia nas marcações de territórios marinhos. Os algarvios eram, no entender dos ílhavos, mistura de gentes de ascendência mourisca, de trato, pouco ou nada fiável, desrespeitadores frequentes da propriedade alheia, incumpridores de acordos celebrados e, não menos notório, muito truculentos. Por sua banda, os ílhavos, gente pouco inclusiva, tremendamente fechada no seu grupo, avessos a misturas ou partilhas ,ou até a convivência estranhas, logo forçaram pela força, ao arredar lá para sul do areal, os algarvios, impedindo-os  de utilizarem pesqueiros vizinhos da embocadura do Tejo. Os mais apetecidos, porque os mais piscosos.

 As relações mantiveram-se sempre tensas.  O roubo em pleno mar, de peixe e até de armações, em acções tipo corso, eram frequentes. Por vezes com dimensão onde a tragédia esteve presente e em que muitas vidas foram, ingloriamente, sacrificadas nas disputas entre colónias piscatórias.

E assim aconteceu...com a Terrível Batalha entre Algarvios e Saveiros, acontecida nos “Mares da Trafaria”........que abaixo relatamos.

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Era fim de uma tarde de Julho ensolarada por um sol brilhante a caminhar rápido para o ocaso. Entre a terra e o bugio, as aves marinhas  grazinavam  em voos cruzados, sem rumo, parecendo zonzas nas alturas, como que perdidas a detectar nas águas, peixe para a seu esfomeado apetite. O barbaçudo do sol caía, prestes  a esconder-se lá nos poentes, como que apressado para tirar um codorno nocturno para recuperação de tão estafado  dia. Mas ainda aconchegava o remanso das águas que pareciam adormecidas, tal a calma esparralhada pelo seu azul.

Foi então que vindas da entrada do bugio se destacaram os vultos de três lanchas do cerco algarvio, correndo em linha. Armada que parecia trazer poucas intenções de ser visita de cortesia. Antes faziam esperar actos  gravemente atentórios de paz e vivência entre as gentes da faina. Em cada lancha  vinham embarcados uns vinte algarvios, entre remadores bicheiros e redeiros, bem munidos de facas flamengas  e navalhas de ponta bem afiada. Esta gente vinda lá dos algarves, descendente da    mourisca da outra banda, quando  acabada a apanha do figo verde, posto a bom recato, não podendo, já, fazer as corsas surtidas para o seu roubo, vinham por aí acima, dispostas a fazer dinheiro de qualquer modo, mesmo que esse modo fosse o assalto às artes na água, pilhando as ditas  e o peixe, atum ou golfinho, nelas ensarilhados. 

Contornado o baixio frente ao bugio, logo viraram a estibordo. Numa das barcas o proeiro notou que na frente do seu nariz, a umas poucas dezenas de braças, um eriçado esbolhado fervente,das  águas calmas .Logo perceberam que era peixe emalhado em tentativa de fuga das artes. mergulhadas. Sem hesitação ou delongas, atiraram-se às redes esfaqueando-as, esventrando-as, com pressa de meter o peixe emalhado na barriga das suas barcas, nem sequer ligando ou temendo, uma ou outra bateira  saveira, por ali fainando, estendendo as suas artes.

Logo uma delas, mais afoita e rápida, içando o velame, fez rumo à enseada onde por norma os saveiros encalhavam as suas bateiras e se recolhiam, na maior parte do ano, aquartelados em suas pobres cabanas. Em grande e frenético  alarido, mesmo antes de abicar à praia, já os tripulantes do saveiro avisador, faziam-se ouvir, em alta gritaria: 

 - Aqui d’el Rei ....maneai-vos  lazarentos, que a moirama veio vingar-se de Ceuta.E começaram já a pilhar as nossas redes e peixe, os danados corifeus. A seguir vão as vossas mulheres e filhas....que aquela  barbária vêm disposta a tudo.



saveiro da Trafaria

Os ílhavos – gente nada mole, verdadeiras feras quando açoitados pelo mar ou pela desdita, sem conhecerem outra lei que não a da sua conveniência – logo se atiraram às bateiras, carregando-as com tudo com que pudessem pelejar. Em fila logo estrategicamente concertada, a mando imperativo do arrais da companha, logo rodearam, cercando, as lanchas algarvias. Velejando rápido, atacando-as para logo se afastarem, e logo voltarem para  lhes atirar  com ferros de fundear, fateixas,figas,bicheiros: – tudo que ferisse os arraçados ladranzanas. Zurzindo-os com as varas de marcar que, com as bandeirolas ainda içadas, batiam forte e tolhiam a reação aos invasores, ao tempo que os bombardeavam ferozmente com as pedras de fundear as artes. Tudo servia para desbaratar a temível armada mourisca/algarvia onde  estáticos, surpreendidos pela feroz reacção, os embarcadiços  vindos do sul,com os pesados remos empunhados, mas de fraca utilidade na peleja, em  gritaria bem maior que em destreza, tentavam defender-se dos ataques dos terríficos e eficazes ílhos, surgindo rápidos e simultaneamente, por ambas as amuras. As peças de redame que lhes eram atiradas, embaraçavam os algarvios, imobilizando-os ou ensarilhando-os, enguedelhando-os, colocando-os a jeito de serem fortemente zurzidos pelas varas brandidas pelos saveiros com endemoninhada ferocidade.

 Do marcial encontro saía furioso alarido, mistura daquelas bárbaras e rústicas linguagens. Do acampamento da Trafaria toda a gente (conta-se que, nem velha ficou na cama, nem velho ao degrau) tinha descido ao areal para presenciar tão medonha escaramuça.  Aos gritos que iam no local da batalha, juntaram-se os gritos do mulherio de terra, acompanhados por um eriçar patético de braços ao alto, pedindo ao “seu” Deus ajuda contra aqueles berberes, filhos de Alá. No estramboto já cinco tinham morrido; e dois atirados à água, tinham perecido, afogados. O sangue vertido era tanto,  que se afirmou, então, chegar a tingir  as brancas  areias das cristalinas praias, mais parecendo o então sanguíneo Tejo, um novo mar Morto”.

Faltando já as forças a uns,  porque feridos, e a vida a outros, porque mortos, com o cair do sol, foi o fim da batalha com a fuga apressada  das lanchas algarvias que juravam não voltar a intrometer-se com estes irredutíveis e temíveis filhos  de Baco, tão ferozes na luta como  nas lides com o mar. Gentes que só tinham medo que o mar secasse...


                                                                              Forte da Trafaria

 Do forte da Trafaria, avisadas as autoridades marítimas, tinha embarcado  força policial bem armada que, achegando-se às águas da batalha, logo  com disparos de forte aviso, fez ver ao que vinha, dando  por finda a luta, prendendo e conduzindo para o forte do Bugio trinta e tantos dos rapineiros ; e mais outros vinte,  que conduziram à prisão da cidade. 

Com a noite, muitos outros conseguiram fugir à alçada da justiça.

Termina assim o conto desta feroz batalha:

“porque parte ficaffafe a victoria defta batalha naõ corre notícia certa,e fó fe fulfpeita com certeza que ella paflará por dez reis,para a maõ de qualquer curioso,que Deus guarde para fuitento dos Cegos ,e amparo das tavernas.


                                                                 FIM                  

Senos da Fonseca  Dez 2021

 


quarta-feira, dezembro 01, 2021



Hoje fazias anos… Hoje é dia de falarmos…de Ti.


Por cá tudo igual. Tudo mal.

Por «aí» não sei. Mas não tardarei a sabê-lo.

Hoje, ao lembrarem-me da tua falta, diziam-me à laia de consolo – certamente (!) – da minha sorte (?) de ainda ir ,vivendo:

– Olhe que não, olhe que não… atalhei com doce comiseração: isto de ir vivendo mais um dia, não é bem ter um dia a mais. É a lucidez de ter a consciência de se ter um dia a menos para fazer tanta coisa que se pretendia fazer.

Não sei exactamente, onde, mas li (ou ouvi alguém dizer) que a vida não tinha sentido. Eu sempre,assim, o pensei, duvidando do dito. Para mim o que terá sentido é o calor humano que pomos no fazer das coisas da vida. Nos princípios e ideais que nunca abandonámos, na ética com que a vivemos etc. 

 


 

 

 Por isso,ao preocupares-Te, não em usufrui-la, mas em ultrapassá-la nas suas minudências, deste-lhe o sentido que lhe falta, quando se vive …, por viver.

Hoje, a cada dia que passa, percebemos a dimensão da Tua preocupação em ultrapassar «o consentimento da Tua vida».

Um dia perguntaram-me de onde vinham as minhas «certezas» (?): 

Do olhar para o céu e não me impressionar com a sua lonjura. E olhar aqui para a beira, para quem vai a «meu lado» na vida, e sentir-me tão longe de cada um. Não me impressionam (e cada vez menos) os «deuses grandes». Importam-me, isso sim, «os deuses fracos».  

Por isso Te entendi quando parecia que todos os dias (santos e não santos, para Ti todos eram iguais na angústia), a vida te flagelava de propósito, desafiando-Te. 

Senos da Fonseca


quarta-feira, novembro 24, 2021

 



A Zeca   deixou-nos  há 14 anos

Pois a vida andou para a frente. E nós? Percorrê-la sozinho é muito mais difícil e mais bem complicado. E muito menos interessante. Por isso ,resta-nos ter-Vos (todos!) bem presentes, servindo de referência aos nossos actos. O mais que poderei dizer, é que não mudei nada....Não era preciso, pois não?!

Relembro o que escrevi então,nesse dia



....


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FIM DE LINHA

Estou aqui, depois…


Onde quer que estejas, sei que entenderás, porque sempre nos aprendemos a descobrir nos pequenos gestos ou nos tiques, indecifráveis para os outros, evidentes para nós.

Tenho uma vasta, dolorosa e amarga sensação de ficar, agora, só! Já todos se foram; e não sei porquê (?), deixaram-me para trás, como que para guardar a vossa memória, a mim que era o mais frágil.

Retrocedo no tempo em Vossa procura. Nem isso me vale. Parece que ao fazê-lo me é ainda mais nítido que o processo de desintegração já começou. Procuro a lógica de tudo, até da tua partida. E só encontro um sentido para a paz que encontraste, aquela paz que nunca por cá, tiveste. Aqui, neste mundo de desigualdades, Tu nunca a poderias ter encontrado. Fosse o que te rodeasse - a Ti chegava-te. Era impressionante como tudo (o pouco ou o nada) Te chegava, indiferente que eras a qualquer tipo de necessidade vã. Só que o problema não eras Tu, mas os outros. E para os outros, nada era suficiente para responderes ao que sentias ser-lhes necessário - e devido. E por isso não havia guerra que Te chegasse.

Viemos, agora de Te levar, ao teu sitio da Paz.

O sino não tocou. Não porque não quisesse - os sinos sabem por quem deverão dobrar -, mas porque Tu não quererias. Querias, isso eu tenho a certeza, que amanhã ele chamasse a rebate, todos!.. a continuar o que sempre, e só, soubeste fazer: - a distribuir solidariedade.

Pareço hoje encurralado; sinto-me a última rês a preparar-se para o abate. Se a morte - ou quando ela! -, bater de novo à porta, não posso mandar ninguém ir abrir, tenho de ser eu a franquear-lhe a entrada.

Sinto-me, pois, subitamente envelhecido; desamparado de um modo irremediável. Como que amarrado a uma solidão onde me faltam todos os que me rodearam no sonho. Sinto-me só, ao não poder partilhar a responsabilidade com mais ninguém. Agora, puseste-me a ser o número um (!) da família. E parece que o mundo me caiu em cima, como um pesadelo que me oprime e tolhe.

Parece - e não entendo este súbito parecer - que havia restos de infância, ontem ainda, e que hoje desapareceram de vez, irremediavelmente. Todos passarão - a partir de hoje - não a ver-me como o mais novo, mas a ver-me como o último abdicatário destes irredutíveis, que quiseram ser, só e apenas, não indiferentes.


As árvores morrem de pé. Bem vistas as coisas assim foi: foste autêntica até ao fim. E isso - perdoa que Tu diga, mas Tu até o sabias - era o que eu queria que tivesses sido. Neste mundo que não tem moral, nem vergonha, em que a vergonha se transforma em impudor, não transigiste, nem sequer foste cadavérica em vida. Soubeste, até ao último dia, erguer o teu fardo à altura da cilha do burro; os outros preferem que o burro se ajoelhe para o depositar, e fazerem de conta que estão cansados.

E sabes o que lhes rói a alma?: - é que mesmo na sepultura irás prolongar a tua razão, resumida à obstinação que Te comandava e ao frémito afectivo e solidário, que Te movia. Dia a dia estes contornos sobressairão, mesmo que ausente.

«Eles», dia a dia, irão ficando mais expostos na (sua) nudez: de ideias e de ideais, que Te sobravam. Aqui, a leviandade colectiva vai ser confrontada, continuamente, com o que deixaste.

Na hora de Te incensarem - agora! - eu não esquecerei de lhes lembrar os espinhos com que tantas vezes Te dilaceraram.

Acertemos as nossas contas. Se em alguma coisa não fui capaz de Te acompanhar como merecias, foi não ter - nem manter - a Tua UTOPIA.

Por vezes, até, ta censurei; porque não acreditava que depois de tudo, ainda a tivesses. Mas no fim percebi que a tinhas - e a mantinhas intacta - apesar de todos os desaforos que foram desabando por cima de Ti.


Até sempre …


João


Ílhavo, 25 de Novembro de 2007


segunda-feira, novembro 15, 2021


 


FOI VOCÊ QUE PEDIU UM PÊSSEGO ?


...SABE COMÊ-LO ?...


Chegou com um ar desiludido, sorriso fechado ,gestos tensos –em completa «fossa» :

-Então como vai a bizarria ? :- disparei …

-Ácida ,amarga .-monótona, retorquiu .Uma pessegada ! Os Homens começam a ser uma raridade pouco ao alcance de quem vai ficando sobrecarregada com aniversários -que ainda festejamos e que mais razões tínhamos,era,de os lamentar …

Deixa –Te de pieguices : atalhei .

E para que sorrisse lá lhe fui dizendo .

– Por falares em fruta :-Olha que ainda és um bom «pêssego» ! Anima-te !...

Sabes (?) : há dois tipos de pêssegos .Uns lindos por fora ,charmosos ,gulosos :já vi muito gente deles se fartarem à primeira trincadela .Sensaborões …Verdes ...E olha que não é a fábula da «raposa» ...Depois, há os que mantêm a atracção ; macios por fora ao tacto, e quando se trincam ,para além de muito doces , são polpa apetecida.Desfazem-se em gostusura .Húmida.Apetece ir até ao fim.Um bom «pêssego» deve-se comer á trincadela e nunca -nunca !- descascado com faca.Com dentadas suaves ou esfomeadas, vamos avançando e eles derretem-se na boca , fazendo soar as campainhas que ainda dentro de nós se dispõe a festejar, a ditosa sobre –vitualha…Ora, deves, é reparar , que os «pêssegos» verdes exibem-se na praça pública ,em caixotes, ás dúzias ,alardeando impúdica oferta .Um «pêssego» –um bom« pêssego!» - ,sugere-se em oferta intima –mesmo que misturada com outra peças -numa taça de cristal onde faz valer o seu perfume .E a sua macieza .E mesmo que ao toque não seja tão durinho ,isso mesmo é a sua virtude ,convidando à trincadela…

Vi-lhe um sorriso e pensei: está feita a minha boa acção de escuteiro, por hoje …

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POSFÁCIO …

Passados dias voltei a encontrá-La .

- Então ?... aos costumes, não dizes nada!

-Como posso dizer (?!); com a míngua de homens interessantes que por aí vai… atalhou …

-Não me digas …Então já todos comem de faca …?!…

-Pior ; “de faca e garfo” .E chegado ao caroço atiram-no fora,ainda cheio de carninha …

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Este mundo está perigoso …E a distribuição horrível. Uns com tanto; e tantos só com o caroço…Ainda falam do capitalismo selvagem…

Ou será que é mesmo assim : as coisas murcham com o desbotar dos sentidos


Senos da Fonseca


quarta-feira, novembro 10, 2021

 


               Batalhão Guarda Municipal 

                                                                                                         

                                                                                               O Sembrismo “amarelo”

Em 29 de Março de 1834, é criada a Guarda Nacional, fixando-se que a mesma deveria instituir um batalhão em cada concelho. Batalhão esse que vem a organizar-se em Ílhavo, em 1836, ocupando os cargos de co- mando, por eleição municipal, o tenente-coronel Luís António Lomba, o major Francisco Monteiro e o ajudante António José da Rocha. Para capitão da 2ª Companhia foi escolhido José Ferreira da Cunha, um bravo que muito se distinguiria na justeza de carácter, na rectidão de princípios e na ousada valentia que patenteou em momentos críticos da política local. 

Em 13 de Setembro de 1836, a Câmara Municipal faz a aclamação, com toda a solenidade, da Constituição de 1822, aclamação que, registe-se, teve lugar apenas três dias depois da realizada em Lisboa, antecedendo o mes- mo acto que viria a ser realizado no Porto, a 17 de Setembro do referido ano. 

Por esta revolução destituía-se a Carta Constitucional, partindo-se para a formulação da Constituição de 1838 que aparece referida no brasão da Bandeira do Batalhão de Ílhavo. 

 Destas contradições, muito embora a carta se tenha mostrado flexível e tenha respondido aos mais diversos compromissos políticos, o referido suporte constitucional não suportará a ânsia de mudança motivada pelas rupturas entre os siste- mas sociais e políticos e, assim, em 1838, aparece a Constituição Setembrista, cuja intenção seria a de reconduzir o sistema aos princípios democráticos, mas que teria uma vigência curta, de me- nos de quatro anos. 

                                                 

Em 1846, depois de uma reorganização em que,fundamentalmente, se instituiu que os coman-dantes não fossem eleitos pelos municípios, mas.sim pelo governo, o batalhão de Ílhavo passa, a partir de 26 de Agosto de 1846, a ser comandado por Alberto Pinto Basto que, em Outubro do mesmo ano, lhe muda o nome para Batalhão da Vista- Alegre.Título que lhe foi conferido pela Junta do Povo de Ílhavo, vindo também a ser conhecido por 1o Batalhão dos Artistas. 

                                                         Bandeira do batalhão de Ílhavo

E é deste período que se conhece a intervenção do batalhão nas lutas liberais, quan- do as populações de Ílhavo e de Aveiro, sob o comando de João Carlos do Amaral Osório e Sousa, 2o Visconde de Almeidinha, do Morgado da Sr.ª da Nazaré, se juntam aos setembristas do Porto, no pronunciamento do Minho contra o golpe palaciano de D. Maria, considerado uma traição da corte, marchando sobre o Porto, posicionando-se em Vila Nova de Gaia. A 28 de Outubro desse ano pode ler-se em O Nacional. 

Ontem perto da noite tivemos nós, os portu- gueses, a satisfação e a honra de ver entrar nesta cidade, o honrado e valente general visconde de Sá da Bandeira, à frente de alguns batalhões na- cionais de Ílhavo e da Vista- Alegre (O Nacional, n.o 130). 

Foi este o batalhão que acompanhou Sá da Bandeira na acção de Valpaços (Val-de-Passos), tentando atrair o inimigo para fora das muralhas de Chaves492. Desta acção valorosa nas lutas turbulentas do século XIX serão atribuí- das ao batalhão de Ílhavo, por portaria de 22 de Novembro de 1846, quatro Medalhas do 1o grau da antiga e muito nobre Ordem da Torre e Espada,do Valor Lealdade e Mérito pelos serviços prestados em Val-de-Passos. O fim do regime monárquico começava então a delinear-se. Regressando ainda a 1834.

Após as guerras civis, o país assistiria a um ferver revolucionário continuado, vindo das lutas entre um radicalismo que, queria não só a igualdade civil, mas também a igualdade política advinda do sufrágio de toda a nação – e não apenas de uns tantos. E um liberalismo monárquico constitucional que, muito diverso na sua formação, fixava direitos apenas a quem deti- vesse um determinado grau de riqueza – ascensão burguesa– aspirando a uma democracia parlamentar num capitalismo económico, com garan- tia do respeito pelas liberdades individuais. Um meio percurso entre uma monarquia e uma república, puras. Depois da morte de D. Pedro IV sobe ao trono D. Maria II. Exceptuando as grandes urbes (Porto e Lisboa), o país não se reconhecia no regime. As zonas rurais, onde a igreja detinha ainda enor- me peso, mantinham-se miguelistas.


 

                                                        Revolta da Maria da Fonte

Razão porque a luta irá intensificar- -se entre setembristas – ordeiros ou radicais – e cabralistas, situando-se entre o radicalismo e o miguelismo. A reforma do sistema fiscal levantará uma onda de protestos. No Norte do país, no Minho, as novas leis de saúde, impedindo os enterros nas Igrejas, obrigando-os a irem para os cemitérios, fará eclodir a revolta popular da “Maria da Fonte” (1846). Pretendeu-se ver na “Patuleia” – soldadesca sem disciplina – (na qual, como anteriormente referimos, em 1847 combateu o batalhão de Ílhavo, também designado por batalhão da Vista-Alegre ou dos Artistas, integrado nas forças setembristas de Sá da Bandeira) uma segunda fase da revolução popular da “Maria da Fonte”, o que na realidade não é exactamente correcto.  

 










terça-feira, novembro 09, 2021

 


A BANDEIRA 1838



 A referida Bandeira é descrita por Madahil do seguinte modo :

« A Bandeira que se encontra na Câmara , é a que acompanhou o batalhão daqui nas lutas liberais de 1838 ,bordada a seda ,ostenta a legenda RAINHA E CONSTITUIÇÃO DE  1838,sobre cores nacionais da época(branca e azul) e na fita donde pende a Cruz de Cristo bordada lê-se B. da G.N. de Ílhavo » 

Ora parece haver aqui um lapso informativo. A Bandeira se acompanhou algum Batalhão, tal teria acontecido na Guerra da Patoleia que teve lugar em 1846, em continuação da participação  nas lutas de sublevação da Junta do Porto, contra o Golpe Cabralista (6 de Outubro de  1846),tendo entrado na cidade em 27 de Outubro, sob o comando do Visconde Sá da Bandeira.

Aparecem, assim  contradições entre os elementos da época . Diniz Gomes- familiar de Rocha Madahil - em «Costumes e Gentes de Ílhavo» ,(IIVol –ed Companhia Editora do Minho pp 93)  refere-nos o acontecimento com a data de 14 de Maio de 1844.

Certo é que  a Patuleia teve lugar em 1846.Assim Marques Gomes em «Noticias de Aveiro e Seu Distrito»,parece estar certo quando nos refere a presença do Batalhão no acontecimento de Valpaços, em 20 Novembro de 1846.

Mas  duvida que a Bandeira pudesse ter sido levada ,pois, afirma, “ não era crível que por ocasião da Patuleia ,o batalhão se apresentasse no Porto com tal bandeira por nessa ocasião já ali ninguém pensar sequer na Constituição de 1838  (…) mas, 

“Portugueses às Armas ! Às Armas pela liberdade e pela Rainha ! (….)

Viva a Rainha ! Viva a Carta Constitucional !... Palácio da Junta Provisória 11 de Outubro de 1846)” 

Marques Gomes poderá ter razão. Mas certo é que a revolução da «Maria da Fonte» sendo um movimento  espontâneo, bateu-se contra a lei que impedia os enterros nas igrejas (Lei de saúde) e contra a reforma do sistema tributário(os papeletas da ladroeira) pretendendo-se um regresso ao antes de 1842, ao sufrágio directo, o que significava o abandono da carta .

 Pelo que pensamos não estaria tão deslocada a Bandeira da Constituição de 1838 , e é, pois, possível - ao contrário do que afirma Marques Gomes - que tivesse sido levada aos campos da batalha pelos Setembristas de que eram apoiantes  Alberto Pinto Bastos e o irmão  Augusto Ferreira Pinto Bastos(comproprietário da Fábrica da Vista Alegre),  que integravam a Junta Governativa.  

Outra situação diz respeito ás razões porque teria aparecido esta bandeira com estas inscrições, pois ,refere Marques Gomes, existem duas e só duas portarias, determinando as inscrições na Bandeira da Guarda Nacional .



A primeira, de 29 de Março de 1834 (art 6ºe7º), determinava que cada Batalhão tivesse  uma Bandeira azul e branca com a legenda “ Rainha e Carta”

A segunda, a portaria de 14 de Setembro de 1836, pretende que a inscrição acima passe a “Rainha e Constituição de 1822”

 Depois disso nunca mais existiu nenhuma Portaria a fixar inscrição diferente das referidas .A inscrição referindo 1838 ,não teria, pois, validade comprovada.  

Como teria aparecido então a Bandeira do Batalhão de Ílhavo (da V.A)?

Marques Gomes   sugere que a mesma é apócrifa  “resultante do afecto de alguns ilhavenses por estas ideias” 

  Poderia de facto assim ter sucedido :os irmãos Pinto Bastos tê-la-iam mandado executar (bordar ) e acharam que a mesma, e os ideais que representava ,poderiam ser válidos para acompanhar o Batalhão dos Artistas da V.A , ,independentemente  de ter, ou não, validade fixada por decreto .

A bandeira ,que foi entregue à Câmara Municipal de Ílhavo ,juntamente com as quatro condecorações atribuídas ao Batalhão e ao seu comandante, estará ,agora, no Museu .As condecorações ,parece ,ninguém sabe onde param; ou pelo menos ,ninguém sequer me soube informar de que conheceriam a sua existência. 


Senos da Fonseca





segunda-feira, novembro 08, 2021

 

A MATANÇA DO PORCO (naquele tempo)


(Senos da Fonseca)

De entre as memórias de rapazito que com frequência me ocorrem da matança do porco, das mais duradouras, e uma daquelas que com mais intensidade me ficou gravada desse tempo, em que, garoto despreocupado, inserido numa família onde as tradições eram - ainda! - para durar, ia vivendo as peripécias do dia a dia, e pouco a pouco me apercebendo como era intensos e se fortaleciam, os laços de amizade, aproveitadas que eram todas as ocasiões para conseguir tal desígnio.

As relações familiares dos «Fonsecas», lavradores vindos com a história da Vila, eram muito próximas, reforçadas por uma contínua presença em casa de uns e outros, numa vivência onde a partilha era lei.

E nem um facto insólito perturbou essa proximidade.

Refiro-me a que o meu avô, o Prof. Fonseca, ter sido deserdado, e ter perdido o Morgadio. Porquê? - quererá, possivelmente, o leitor, ser informado …

Pois por um rocambolesco caso de amor; uma cena digna de romance Camiliano, quando apaixonado pela Maria Rosa (que foi minha avó), moçoila bonita, rapariga de trabalho, simples e de poucas ou nenhumas posses, decidiu romper com a oposição familiar ao casamento com aquela, que tinha as origens em família pobre de pescadores, os «Arrombas». Decidido a casar com ela, mandou às malvas a recusa dos seus, abastada família de lavradores lá do Cimo de Vila que, como era hábito nesses tempos - já tive ocasião de o contar em detalhe – escolhiam para mulheres dos seus filhos –especialmente do primogénito, o Morgado – mulher de cabedais idênticos, para reforço e engrandecimento da sua «CASA».

Ora, num belo dia, meu Avô, não esteve com meias medidas e filou o padre (seu familiar) pelo pescoço, trancando-se com ele e com a Maria Rosa, na Capelinha da Sr.ª do Pranto, chave do portal no bolso, e onde frente ao altar da Senhora, avisou o fradaço:

-Vá!: -ou case-nos … ou encomende-se que vai de catâmbrias para o inferno. Não me moa a paciência, e poupe a Senhora a espectáculos impróprios para santas.

O pobre, que conhecia bem o Professor, transido de medo perante as palavras que parecia feriam lume, e do olhar decidido e convincente de meu avô – algo que era bem conhecido por aquelas bandas –, logo se apressou a entaramelar o «in nomine patris …» para abençoar e tornar lícita, à luz divina, aquela união. Desse dia em diante, a Maria Rosa - que não deixou, toda a vida, de tratar seu marido por «Sr. Professor »-, foi uma mulher feliz, e uma respeitada mãe de farta prole.

Apesar da perda do Morgadio - e consequentemente de todos os bens - meu avô foi sempre reconhecido como o Patriarca - como o seria depois meu Pai - acarinhado por todos que o tratavam por «Padrinho», venerado, respeitado, e obedecido – quando preciso fosse por um par de bem aconchegados cachações ou reguadas - nas pequenas tricas familiares, sendo o elo de fortalecimento do clã.

Seu filho, meu Pai, tinha ainda tiques claros, reveladores da sua origem, com uma paixão louca por tudo que dissesse respeito à lavra. Nos quintais lá de cima, tudo era simulado à imagem de uma grande lavra: fazia-se farto vinho – do enforcado –, que me competia a mim e a meu primo calcar na dorna; cultivavam-se todas as espécies de verduras; mantinham-se e renovavam-se, com um amor indescritível, árvores de fruto da mais variada espécie e sebavam-se porcos com um desvelo como se tratassem de animais de estimação (embora o destino destes fosse uma morte, morte que quase parecia heróica, gloriosa). Recriava-se, dum modo muito real e muito expressivo, uma casa de Lavoura, de que a irmã Vicência – a tia Vé - era a administradora permanente e a incansável obreira, nos momentos pós aulas…

Neste ambiente a matança do porco era uma verdadeira festa, durando, no mínimo, três dias.

Mas, muito antes da data aprazada para o acontecimento, já eu acompanhava o meu pai a visitar, um a um, «os primos», em verdadeira via sacra com o fim de indagar, e melhor comparar, o estado de desenvolvimento dos porcinos dos primalhos, já que cada qual pretendia que o seu fosse, o maior e o mais vistoso de entre todos e nisto “ cada bufarinheiro louva os seus alfinetes “, é certo. «Primos» era «coisa» que não faltava: - parecia existir por todos os lados, Cimo de Vila, Cruzeiro, Moitas, Vale d’Ílhavo, etc; as visitas sucediam-se, eram constantes, e sempre que se batia à porta, depois dos abraços, era sacramental ouvir:

-Oh primo «doutor», já não vai daqui sem jantar. Que a «Maria» até levava a mal. Vamos provar o palhete, enquanto ela prepara uma cabidela de galo, de estalo.

As «primas Marias» -todas elas! - eram mulheres governadeiras, escufenadas, mulheraças de brio, caprichosas no bem receber, desempoeiradas e breves em ir buscar –e torcer o pescoço - ao melhor cantador da capoeira e, num zás-trás, enquanto a conversa e as provas decorriam, já o bicho estrebuchava na caçarola, cheirando que regalava, o que nos tirava todas as dúvidas –se é que as tínhamos ?! – de desertar.

Lá íamos, então, fazer horas para a adega, no alpendre, para a prova do «enforcado»; retirado o espiche à pipa e aparado no copo a borbulhar, eles diziam – e a mim, confesso, me não parecia - ser veludo a escorregar gorgomilos abaixo, vivinho, fresco, ágil a deslizar, mais parecendo canto celestial a pedir acompanhamento à altura : -um naco de chouriça entre dois taleigos de broa, cozida no dia, tão rescendente que consolava, vitualhas em que eu, propriamente cascava, até me refastelar. Mais uma saúde, mais lérias, vizinho que aparecia e fazia teima de irmos provar «a sua pipa», o que valia é que o dito era «água pintada», e, tal como se bebia, também logo se vertia numa ida ali ao quintal, que já venho….

Claro que o fundamental – dar uma olhadela ao bicho – lá era feito, mirando-se de todos os ângulos com o fim de medir o animal, e de dar palpites. Depois das provas o bicho até parecia aumentar de bojo: -quem bebe pelo S. Martinho faz de velho e de menino.

Chegada a hora, anúncio vindo lá de dentro alertava para a prontidão da cabidela malandra que fumegava na caçoila, já albardada na mesa. Abusacávamo-nos na casinha da lavoura - cozinha do dia a dia -, à lareira, onde chiavam uns cavacos espevitados, local onde o meu Pai insistia em ficar, apesar da pena da « prima Maria», desejosa de pôr os pratos de cavalinho na mesa aos ilustres familiares (?!), guardados que estavam para as grandes ocasiões, no aparador da sala. Por ali ficávamos a contar estórias, em mais um seroar. Às vezes, diga-se, nem sempre por mim muito apreciado, já que lá se ia uma tarde própria para namoriscar, actividade para a qual eu revelava, já então, muito mais credenciais do que para a «lavra». Mas diga-se, que entre umas horas de desvelo amoroso e uma boa cabidela, o diabo que escolhesse. E depois, dias para namorar, eram mais que muitos. E para a cabidela, nem todos. Só quando caía do céu tal iguaria. E nestas coisas, é bem certo: antes desejo que fastio, que o que é bom, não dura. E é bem verdade: - mais vale ovo hoje, que galinha amanhã.

Mas voltando ao bácoro…

O olho do dono engorda o animal mas certo é que era normal, naquele tempo, os mesmos atingirem pesos, entre as catorze e as dezasseis arrobas. Eram animais impressionantes, que para o fim já não se tinham nas patas, vivendo deitados para a seba final, por vezes alimentados à mão, já que nem tal exercício conseguiam fazer pelos próprios meios, dado o estado de prostração provocado pela (excessiva) obesidade, deliberadamente provocada.

O dia da «Matança»

Chegado o dia, logo de manhãzinha, caldeiros bem cheios de água eram postos na lareira da casinha, que crepitava.

O matador era, nada mais nada menos, que o meu primo Manuel Fonseca Jr. - o sénior era o meu Pai. Que recebera as facas do seu Pai, José Fonseca, meu tio – avô. Não, não eram faquinhas de cortar a broa ou chouriça, ou o queijo (com olhos ou sem eles). Nada disso. Eram facalhões de arrepiar um mortal. Que ao velho José Fonseca tinham sido legadas por seu pai, meu bisavô. Dos varões da família, já então só restava eu, por cá. Assim, se a tradição fosse seguida, essas facas – que confesso me arrepiavam! - deveriam ser-me entregues para «continuar» a saga, e exercer o mister, praticamente um monopólio familiar, aqui na terra. Deus me salvasse! - pensava eu, arrepiado só em as ver. Eu nunca neguei o berço: mas só de pensar que tal me podia calhar em sorte, estava disposto, como meu avô - e por muito menos! -, a renunciar a todo e qualquer morgadio de matador.Mais vale um gosto que os três vinténs, é certo, mas eu não tinha queda para ser el matador. Era bem verdade, desculpem lá isso os meus anteriores, que no resto até julgo não os ter deslustrado, que se veja.

Chegava pois o Manuel – um poder do senhor, biganau de uma força bruta, exímio jogador de malha, e habitual ganhador do jogo da corda, presença obrigatória das romarias ao tempo - trazendo as ditas, chegando-se ao animal para com o seu olhar sabedor garantir (apostar!) o peso esperado para o bicho.Tendo sido emigrante quando novo, nos States, fazia gala de se exprimir em americanês: - nice boy - good pig - dizia , e com um primeiro ,« VIVA A PÁTRIA», dava início à função, que homem lento p’ra nada tem tempo…

O suíno que já nem se podia mexer era levado de padiola (ou em cima do arado)


                


                                               Fig. 1- O animal no arado


para o «caminho» para ser colocado no carroço (ou numa escada) ,com a cabeça quase ao nível de solo, e fixo – fosse lá saber-se se o abate correria bem – com um adibal atado aos presuntos posteriores, que o fixavam ao leito da morte, mas mesmo assim fortemente agarrado pelos rabeiros.

                          

                                                                     

                                                        Fig 2-Em cima do carroço

Dois valentes fixavam as patas do animal que ia ser sacrificado. Avante, um deles puxava a pata para baixo, enquanto o outro levantava a dextra do bicho, para cima, O matador colocava então o braço por debaixo do cachaço, cingindo o animal, e com a direita agarrava num pano,                                      

que mergulhava em água a ferver, para, com ele, limpar a zona onde iria dar o golpe fatal. Uma última olhadela, – «camóne let’s go: - VIVA A PÁTRIA», concentração, e aí vai disto: sem hesitar, num golpe certeiro, a faca terminada em bico - uma monstruosa lâmina de uns trinta centímetros – afiada e pronta a cortar papel, entrava no pobre bicho que lançava um grunhido de dor assustador, roncos arrepiantes ao sentir-se ferido de morte. Eu que fazia de conta que passava as facas ao meu primo – que era para me ir habituando: - diziam! - fechava os olhos ao ver o sangue sair em golfadas enquanto o matador rodava a faca, abrindo ainda mais o golpe, no sentido de facilitar a saída do sangue que era aparado num alguidar postado em sítio certo para receber o esguicho.


                                        

                                                      Fig 4 – O aparar do sangue

Era fatal que chegaria o momento, em que o primo Manel fazia de conta que o animal se escapava, e, balançando com a cabeça do pobre bicho, gritava:

-Takerease…baby be quiet …

o que fazia com que o mulherio presente desatasse a fugir, pirando-se como um bando de pardais à vista do milhafre.

A verdade é que em poucos minutos, a vida do animal esvaía-se. Do forte grunhido, ia restando um rumor de sofrimento do animal, como que despedindo-se da vida. Quando já não mexia - salvo pequenos estertores, reflexos musculares – lá vinha novo «VIVA A PÁTRIA» ,«VIVA O ANIMAL» ,o que levava todos os circunstantes a levantarem o seu boné - ou garruço -, saudando o bicho pela galhardia (?!) com que encarara o sacrifício.

No sangue aparado, eram então feitos dois golpes em cruz, e depois de temperado com sal e limão, seguia de imediato para o caldeiro, onde a água a ferver o esperava. Cuidava-se que nenhuma mulher naquele período, tocasse no sangue –“para não o coalhar”. Nunca soube a verdade do dito, mas o certo é que tal se dizia suceder, fosse com o sangue do porco, com o leite creme ou maionese etc. Seria?

O porco era então arriado e deitado no chão.

Ia começar a chamuscagem do seu pelo. Coberto de agulhas, a que era ateado lume, o matador e um ou outro conhecedor, com a ajuda de dois paus de feijões, iam-nas movimentando pelo corpanzil, percorrendo o lombo do animal de modo a chamuscar o cabelo, com o cuidado extremo de evitar qualquer queima do couro.

                                


                                                 Fig5-Preparar a chamuscagem


Era uma operação que exigia muita atenção, destreza e habilidade. Chamuscado de um lado e do outro, com uma fogueira concentrada junto dos pezunhos, retiravam-se as unhas – as castanholas –, momento que servia de diversão aos mais novos, para as meterem nos bolsos dos assistentes. Não era uma operação nada fácil; tinham-se de aquecer bem os pezunhos para os cascos incharem, e se separarem, e puxá-los com eles a ferver, de uma palmada: shit …até fervem, - dizia o Manel Jr., escaldado.

Iniciava-se então a operação da lavagem e raspagem - o fazer a barba - ao couro do animal ; com água corrente e equipados com caliças (de adobe) ia-se afeiçoando o couro cabeludo do bicho, utilizando-se no final uma faca do tipo das usadas no bacalhau para o trote, com que se fazia um escanhoar cuidado, até se obter um couro bem amarelo e macio, aqui e ali chamuscado, mas nunca queimado.

Terminada a tarefa cortava-se o rojão do carro: - o cagueiro do porco. Era-me destinado o agarrar da língua do animal, com toda a força, para, diziam-me – e eu pantono acreditava – que tinha de a segurar para que as tripas não saíssem, por detrás do bicho.

ESTÁVAMOS ASSIM CHEGADOS AO FINAL DO 1º ROUND


-INTERVALO

Da cozinha vinha então um cesto poceiro com sarrabulho cozido, a escorrer em cima de ramos de louro, fresquinho, uma broa cortada e um prato e uma quarta de verdasco. E copos para todos. Depositado o manjar sobre uma toalhinha estendida sobre a barriga do animal, que dispunha bem enquanto se saboreava o sarrabulho e se cavaqueava contando estórias de outras matanças, comparando-se animais, recentemente abatidos.

Terminada a refrega do repasto entrava-se em nova e decidida azáfama.

O porco era puxado para dentro da adega, e nos tendões das patas traseiras era enfiado o chambaril, uma peça de madeira por onde, com a ajuda de uma talha, se içava o animal, fixando-o no gancho preso no tecto.

Bem suspenso, o chão juncado de agulhas para apararem os restos sanguíneos do animal, o matador mudava de faca, empunhando agora uma outra mais curta, com gume tão bem afiado como se tratasse lâmina de barbear, e fazia com ela, uma incisão nas duas abas do animal, de cima abaixo, deslocando o manto da barriga, atoalhando-o nas costas do animal. Desse modo tinha acesso às vísceras do animal; com um alguidar trilhado entre as patas dianteiras, com gestos seguros e rápidos, de sabedoria acumulada, conseguia extrair todo o aparelho digestivo do animal (com especial cuidado, as tripas, para que não rebentassem), que passava ao mulherio, para serem levadas ao rio da Fontoura, onde se procedia uma escufenada lavagem em água corrente, retirando-lhe os folhos: as sainhas .Com as tripas lavadas, esfregadas com sal, far-se-iam as linguiças e salpicões, que iam a estagiar no fumeiro da casinha velha, até ficarem no ponto para degustar.

A mim era-me entregue a bexiga e o pissalho. A primeira, depois de fumada, dava uma excelente bola. Por seu lado, o «dito» do animal, era graxa excelente para ensebar as botas, impermeabilizando-as.

E assim íamos esgotando as horas…

O primeiro dia da azáfama estava a terminar. O animal, limpo, ficava a escorrer todo o resto do dia e toda a noite, pois só no dia seguinte se iniciaria o seu desmancho (desmembramento).

Era chegado o momento de nos sentarmos, matador, ajudantes e alguns familiares, entretanto chegados pelo fim da tarde, em volta da mesa, para um pausado e retemperador repasto, onde se recuperavam os humores e se apreciavam as primeiras vitualhas porcinas do animal, sacrificado.

Uma sarrabulhada bem apurada, sangue cozido acompanhado de fígado cortado às lascas, a boiar num molho gordalhudo onde refogava uma forte cebolada, temperada ao ponto com fartura de pedacinhos de alho, e umas folhas de louro, que lhe davam um odor catita. O verdasco -pinga de estalo, diziam! - corria então da picheira para os copos, que sôfrega e insistentemente eram chamados à boca. E à medida que tal chamada se fazia, a língua começava a soltar-se, e a jantarada tomava foro de festa.

Estômagos já recompostos, vinha um arroz amalandrado de bofes avinhados (e ou de labercas), que fazia companhia a uma bifalhada cortada apressadamente das franjas entremeadas do animal. Noutra pichela, lá vinham as iscas embrulhadas numa cebolada avinagrada, pitéu de fazer soar as campainhas gulotonas, que faziam um indígena levantar-se lesto, quebrando as regras de mesário, não dando tréguas à digestão ao empanturrar-se com a iguaria.

Findo o repasto porcino, lá vinham umas «castanhas abafadas».

Era tempo para divertimento.

O primo Manel era um tocador emérito da concertina. Meu Pai também tocava o mesmo instrumento, embora fosse mais tosco de mãos. Tocava-se e dançava-se numa alegria que envolvia todos os presentes. Até a minha Tia Micas - sempre muito reservada -, não se escusava a desemalar o bandolim para acompanhar os tocadores, que incansavelmente davam à sanfona .Mas o que mais me impressionava era ver o meu tio - avô José Fonseca[1], já cego e com uns bons oitenta anos, cantar ao desafio - no que era inacreditável e inexpectável - a pandegar numa espécie de dança feita sobre os joelhos dobrados, que só muito mais tarde vi ser muito semelhante às danças cossacas.

A noite corria entre palratórios e lenga-lengas, e só tardiamente, já bem lastrados, se recolhiam, os convivas a penates, pois ao outro dia novo trabalho a requerer a presença do matador.

2º Round

Logo de manhã começava nova faina.

Arriado o porco, procedia-se ao seu desmanche, tarefa para o que me lembro ser especialmente dotado: - com muito jeito, dizia-se, parecendo com isso quererem dar-me alento e predisposição, para herdeiro da tradição.

O desmanchar do porco era feito com critério e ao gosto da dona de casa, que dava, amiúde, indicações de que tamanho queria as peças que se iriam separar.

Tudo cortado, peça a peça, procedia-se à salga das mesmas, numa salgadeira de cimento, onde se depositavam as peças separadas por sal suficiente para as conservar, dispostas por ordem, ou critério de utilização: no fundo, acamadas, ficavam as mantas de toucinho; depois os ossos de assuão, costela, coiratos, etc., etc.

Separava-se a carne para rojões que de imediato se vertia para caldeiros de cobre, onde a lume brando se iam estrugindo no unto de pão até ganharem uma cor rosada indiciadora de que estavam prontos para irem para os potes de porcelana, onde ficavam afogados em banha, à espera de utilização futura: - quase sempre breve, ali em casa.

Chegava, então um momento porque há muito ansiava: o hábito de levar o prato aos familiares e amigos: cortada uma febra, juntavam-se umas peças de sarrabulho e fígado, umas folhas de louro e sainhas, e em casos de graduação especial um ou outro rojão. E lá ia eu, lépido, com o cestinho – eu queria lá saber do aspecto! - entregar o dito, esperando, como sempre acontecia, por uma gorjeta, que acumulada de casa em casa, me rendia pecúlio apreciável, quase sempre para investir numa bola de futebol. E não se julgue que eram poucos os distinguidos. Não!.., que a família era grande, acrescendo que para lá desta, havia os amigos, os capitães a quem se retribuía a habitual oferenda da cestada de caras, línguas e samos, que viriam perto do Natal. Por isso, não raro, ouvia minha mãe lamuriar-se, que por maior que fosse o bicho – e era, pois meu pai fazia gala de atingir as 16 arrobas –ia-se todo nos pratos.

Claro que minha mãe não estava a fazer contas, ao que por aquelas épocas recebia, pois este hábito -o prato - era uma perfeita troca, que até fazia jeito, pois não havendo ainda frigoríficos, estas trocas permitiam, pelo menos por estas épocas e durante semanas, comer-se carne sempre fresquinha, o que era um maná. Feitas bem as contas não se ficava a perder, pois todos se esmeravam na oferta. Grandes hábitos, tradições que vinham do tempo onde respeitáveis gentes faziam agasalho da amizade.

À noite, tudo escufenado e ordenado, depois de uma «banhoca» lá voltavam para uma segunda emposta, à mesa. Os convivas aumentavam no número, pelo que as travessas de rojoada eram, só por elas, por tão abundosas, de uma imponência de recriar o olhar guloso.

Por norma, este dia era menos familiar, mais voltado para os amigos. Sempre muitos e dos bons.

Na cozinha, o mulherio preparava a carne para avinhar, e com ela bem temperada, encher a tripalhada já limpa, a aguardar hora de saltar para o fumeiro.

A matança chegava ao fim; novos seis meses para engorda de novo bácoro, entretanto já adquirido na «feira dos treze», e que prometia boa e anafada engorda.

A vida recomeçava então, de novo; colocar o «brinco» no animal para ele não refocilar; chamar o alvitar para o capar, não fossem os apetites estranhos pôr em causa a engorda, atrasando-a, dar-lhe umas colheradas de óleo de fígado de bacalhau para lhe abrir o apetite, boas couves para deslassar o trânsito intestinal, e assim emborcar mais abóbora misturada na farinha que vinha do moleiro de Vale de Ílhavo. E todos os dias avaliar «os gramas» da engorda.

Era bonita esta vida, onde uma boa parte do que comíamos, vinha ali do quintal ao lado: do aido de «Cima» ou do «Lá de Baixo».

A vida tinha encantos; a televisão não invadia o seroar; contavam-se estórias da história, a mesa era local privilegiado de reunião familiar, onde com requinte se depunham vitualhas feitas com tempo e gosto, que paulatinamente – o tempo corria mais devagar! - se iam degustando.

As tradições valiam, ainda então, como ouro de lei, a respeitar.


Senos da Fonseca

1[1] Este meu Tio era o executor e guardador do arco triunfal da Sr.ª do Pranto.Era um poço de sabedoria. Sempre bem disposto, mesmo quando já cego ,dava conselhos amiúde. Lembro-me de um, jocoso :”olha rapaz,a mulher é como a pipa. Quando lhe tirares a espicha vê se esguicha. Se não esguichar, outros lá andaram a bebericar”





sexta-feira, setembro 03, 2021

 

 Ouves o mar a chamar por nós? 


Fui passear à noite ao mar. Fui só para cumprir um ritual, pois parece mal, estar aqui há sete meses, e nunca me ter apetecido ir ao mar. 

Vai-se ao mar, creio eu, olhando o passado, quando a vida  era alegre e despreocupada. 

Certo que em novo, fui dezenas de vezes, à noite, acompanhado (bem acompanhado!) ao mar. Estranhamente parecia que o som das ondas, à noite, tinha o seu quê de toque estranho. Parece que nós próprios, nos tornávamos diferentes ao ouvi-lo. 

Parece naquele som vago da onda que rebenta e nos envolve, se resume a quantidade de esperanças que ganhamos ou perdemos. 

Quando no mar a onda rebenta contra a areia, fica um longo sussurro (choro) que se prolonga, audível, pela noite fora. 

Ontem pareceu que a vida tinha parado. Oh! que sentido de leveza. Coração e vida parados, vagueei no sonho, arremessei, desenhei formas e palavras, regressando àquelas brincadeiras de garotos, em que escrevíamos na areia: 

– AMO-TE (como se existisse de verdade, e em verdade, o amor). 

Ou mais simplesmente se desenhavam dois corações dilacerados por impiedosa seta (unificadora na glória da ....). Todos aqueles símbolos (oi!!!!, tantos...tantos ....) eram uma expressão de sentir ou querer, logo – sei lá se felizmente apagados pela onda seguinte. Claro: a vida a apagar, nós a teimar, na afirmação. Quem sabe nessa idade o que pensa ou até o que deseja (fora do natural e humano desejo (?!). 





A verdade era que,

Aquela música sensual ouvida,

Ritmada com a vaga a enrola,

Na areia da praia parada,

Parecia ser uma ordem

Para que os corpos se alinhassem ao comprido, 

E cumprissem a razão da sua diferença. 

Amei muito ao som da música (enlevo do mar). 

Quando disso me recordo, não choro de saudade. 

Ergo uma taça, brindo, e repito:


Oh! tempo bendito 

Tempo infantil;

De duna em duna

A sussurrar-te ao ouvido:

Ouves o mar a chamar por nós? 

A duna foi a nossa cama florida

O doce colchão do nosso amor

Em festa....de vida nua,

No pulsar aflito sob a paz que vinha Do céu... 

E do mar que a areia, de branco debrua. 


Senos da Fonseca 


quinta-feira, julho 29, 2021

 


O «ílhavo» e o S. Pedro


O «ílhavo», tipo rude e forte, roncão no falar, sempre foi um homem de carácter, cumpridor nas suas obrigações e temente a Deus. Era conhecida a óptima relação que tinha com S.Pedro, orago de predilecção das gentes pisceiras, santinho a quem dedicavam fervoroso e preferencial culto. E a quem, anualmente, com júbilo, pompa e circunstância, rendiam notório e espaventoso festim, para o efeito engalanando a vila e a sua Igreja com colgaduras para receber os visitantes, que desciam a esta santa terrinha, não só e apenas no intuito de gozarem as delícias dos festejos que duravam três dias, mas atraídos, também, pelo bem receber, apanágio destas gentes remediadas,  mãos abertas e coração escancarado, no propósito de fraternal convívio.

Tão boa era a relação destas gentes com o porteiro do céu que, corria à boca cheia, a faladura, ser bastante a evocação da naturalidade, para que, uma alma, ainda que muito penada e bem pesada, ida daqui, visse escancaradas as portas do Céu por aquele sempre atento fiscal do bom comportamento e virtudes, o S.Pedro.Olheiro astuto, sempre diligente e operoso, no intuito de manter o mar bonançoso do céu limpo de fraldocos.

Ora num dia em que o S Pedro foi abrir o portal, deu com um façudo mal-encarado, a quem perguntou:

-Então o que pretendes?

-Entrar no céu.

-E tu mereces a dádiva? O que fizeste para tal? De onde és? 

-De Ílhavo

O S. Pedro mirou …remirou e,muito embora desconfiado, lá lhe disse 

-Entra. Aguarda aí na recepção que eu vou lá dentro confirmar a listagem de embarque, chegada pela última pomba da noite.

Passados uns minutos, quando regressou para dizer ao mal encarado e mentiroso recém chegado, que não era verdade, ele,  ser de Ílhavo, mas que estava, sim, na lista de Vagos ,constatou que o farjano tinha desaparecido e se infiltrara por uma das entradas laterais, nunca mais sendo visto.

S Pedro ficou fulo.( que os Santos, também só são Santos, até certo ponto).

E de si para si, lá foi dizendo: -deixa estar que quando me aparecer cá outro já não me leva assim. Vá lá um santo acreditar nestes safardanas …

Não tardou muito que ouvisse: trás…trás!..trás. Alguém chegava, parecendo  ter pressa para não perder a maré da manhã.

-Já lá vai. Se tens pressa vai lá p’ra baixo, que está mais quentinho. Resmungando enquanto entreabria o portão, perguntou:

-Então quem és, e o que queres

-Oh!... S Pedro, sou o Zé Cachino, lá da Malhada, e cri’ia que m’amabotasse aí p’ra dentro… raio! que venho cansado da viaje e c’riame chichar aí dentro.  Avia-te, raios.C’ ainda perco a enchente.

- E donde és tu, ó Cachino?

-Sou d’ivalho, raios! Atão eu ia lá astrigar-me a mentir sobre a minha terra. Nado, bautizado e cebado, em íbalho, saiba vòssomocê,santinho. Astão tu não m’enxergas, não t’ alembras cá do Zé? C’inté no mês passado fui juiz da festa c’a ta fizemos lá na terrinha da lampada. És mesmo desconfiado. Mexe-te  que estou p’rà aqui todo engaranhido.

-Não é isso, mas é que noutro dia apareceu-me cá um finório de Vagos – daqueles que deixaram o Senhor na rua para acudir ao bacalhau! -  que me enloilou com essa de ser «d’Ilhavo…

-É S Pedro !... raios ,estipor ,deixa-me entrar c’«amando-te  um xalabar de sardinha bibinha,..a saltar …da restomenga, tenta o Cachina convencer o orago. (Que a corrupção nos céus, não é corrupção, mas dadivazinha, pagamento de promessa..esmolna.).

-Entra Cachino, entra ; por essa da sardinha  bibinha a saltar,  estás identificado.


Senos da Fonseca





domingo, julho 25, 2021

 

( Apontamento para o "CHIO-PÓ " em 2013).    Espantosamente ! actual...

"PUTA"de vida

Amigos,Senhoras e Senhores:


Contactado para saber da minha disponibilidade em colaborar com o Chio Pó Pó, em esta nova e muito louvável  iniciativa,  perpassou pela minha cabeça a interrogação: porquê eu a abrir, tão intencional quanto honroso ciclo? 

Encontrei de imediato resposta para a minha questão: é das normas começar-se pelo mais fraco, e, em crescendo, apresentar aqueles de mais significativa dimensão e notoriedade. Assim sendo, aqui estou, humildemente, na tarefa de dar o pontapé de saída para este recuperar do tempo perdido. Que bem pode ser desenhado, se tiver a continuidade  previsível, o àgora . O fim do período mais negro da história cultural das gentes de ílhavo.

Desde logo o meu agradecimento: e com ele o meu abraço aos mentores desta relevante instituição: o "Chio PóPó", instituição de tão velhas e largas tradições. Desde a irreverência que levou á sua aparição, já lá vão mais de uma centena de anos,até às acções (Carnaval e outras)num passado ainda presente  na memória de todos nós. A minha gratidão  e a minha inteira disponibilidade para o que entendam possa ser útil à Instituição .De igual modo o muito obrigado a todos quanto colaboraram neste esforço de, na verdade, consertar algo que vai mal. 

Aqui estou amigos, nos minutos que a «régie» me destinou, para me apresentar (?!) e responder à momentosa questão: o que tenho feito pela Cultura Ilhavense e Suas Gentes?

Ao que tenho feito (?), respondo: – vou fazendo! Pouco. Será certo. Mas que força tem um homem na caneta para lutar com o mostrengo de onde sopraram os ventos apocalípticos que foram vergando o embondeiro da cultura dos «ílhavos», até o colocar de rastos? Tenho-o feito, pois, modestamente. Mais por apego afectivo que por  mestria  de artesão da escrita. Mas já Torga o dizia: escrever é o maior risco, pois se constitui réu no Tribunal  em que serão juízes os leitores futuros das gerações vindouras. Serão pois, a esses, que deixo a tarefa de me avaliar.

Nasci há 74 Anos. Naquela histórica casa da Arcebispo Bilhano: – não porque lá tenha nascido, mas pelos painéis monumentais  de azulejaria que exibe na frontaria, os mais belos que conheço, retratando as minhas gentes. Nascer então, aqui, em Ílhavo, não era bem o mesmo que ir ali ao S.Pedro, de Aveiro, e vir depois a assumir a alforria de ser «um ílhavo nado e criado» na terrinha da lâmpada. Criado, ainda vá. Mas não, «nado». Desculpem lá, mas os ílhavos de hoje são cagaréus diluídos Eu não,:sou de Ílhavo de corpo inteiro. Nado para ir de mar em mar, a sonhar.

Contaram-me que, acabada a ocorrência – feliz para os meus, já que a mim ninguém me perguntou (?!) – abri os olhos desmesuradamente ao meu Pai a quem a «Alicinha» tinha passado o puto loiraço. Já gordinho e anafado logo à nascença. Como a perguntar: e agora pá? O meu Pai, que sempre me falou, só e apenas, verdade, ter-me-à olhado e dito: Oh rapaz prepara-te; olha que a vida traz muitos trambolhões. Promitentes estas palavras. Ainda eu gatinhava e dei um trambolhão que bem poderia ter sido o primeiro e o último. A «Ana Padeira», que me idolatrou até ao seu desaparecimento, deixou-me cair pelas escadas abaixo, e vim parar ao passeio. Conta-se o milagre (os milagres, é bem certo, acontecem sempre aos que neles não acreditam). Quando pensavam o pior, o puto não chorou. Estava, era, como que distraído. A olhar, espantado, para os azulejos. Como que absorto, interiorizando aquelas gentes .Apaixonado. E lá veio outra profecia: o rapaz vai ser homem de paixões mudas, interiores.E hoje revejo: todas as afeições  guardo-as bem no interior. Só finjo o que de facto não amei. E só não amei, o que me não valia a pena amar.

A partir desse dia, os trambolhões sucederam-se. Começava então a minha vida que seria, bonita mas insólita, coquette q.b., desafiadora, plena de aventura. Nela convergiram, e se misturaram, desafios que, hoje, olhando para trás, me arrepiam. Mas sempre nos maus momentos me lembrei do aviso: as guerras só terminam no fim. As batalhas ganham-se e perdem-se. E só no fim se faz a contabilidade.

Claro que os grandes desafios estiveram intimamente ligados à vida profissional. Tenho a consciência absoluta de que pouco ou mais nada, havia aí, para fazer. Foi lindo e preenchido demais o sonho de quem achava que nem no céu há limites. E como não os encontrei, houve tempo para me ensaiar de outras maneiras.

Enche-me de orgulho o tempo que dei de mim à vida cívica. Quis o desafio, sempre e só o desafio (!) – e nunca porque me ofereci ou promovi – conduzir-me ao epicentro de várias e decisivas batalhas nas mais significativas Instituições de Ílhavo. Trinta e seis anos, com algo de comum: com "elas" ultrapassar momentos de crise profunda. Todas as Instituições que me vieram para à mão, curiosamente ou talvez não!, encontravam-se à beira do precipício. Nunca me convidaram para um passeio de facilidades. Nelas não fui – longe disso!- um presidente visitante, mas um presidente próximo, presente. Nos trintae tal  anos em que me dei às Associações da minha terra, em cada uma delas, a minha presença e actividade, toda a gente o sabe, foi diária. Em cada uma delas houve uma guerra a vencer. General que se preze não deixa a linha da frente a cabo raso para se esconder na trincheira. Por isso foi sempre a mim – e só a mim! – que me coube lutar contra o desinteressado, ignoto e despeitado poder. Começou em 68 e só acabou em 2012.  

No desempenho dessa actividade estiveram sempre presentes as minhas gentes.Com o passar dos anos esse deslumbramento pela cultura dos «ílhavos» (não se confunda nem restrinja, mas inclua-se, a actual saga histórica bacalhoeira) seduziu-me pela sua dimensão e grandeza. E pela sua singularidade.

Começou essa paixão, quando aluno da minha Tia Vicência, na Gafanha de Aquém, percebi logo que aquelas eram outras gentes. Mas elas também singulares e autónomas. No Colégio, a minha pesporrência literária cedo se desenhou com o "Prémio Dinis Gomes". Dizem os livros ( dois) que, guardo e leio religiosamente, vezes sem conta, os «Costumes e Gentes de Ílhavo» : ao Joãozinho Fonseca pela sua precoce admiração e exaltação dos valores de ílhavo»                                              

A vida não me deu tréguas mas eu sempre lhe roubei tempo para alinhavar ideias no papel. Que ia, anarquicamente, arquivando. Lia tudo quanto fosse livro para me amanhar com essas grandes figuras do Ílhavo de um outro tempo.

Nas Instituições, paralelamente ao seu engrandecimento e afirmação, procurei que os aspectos culturais estivessem sempre – mas sempre em todas elas,- em paralelo com a sua afirmação. Quis sempre levar as Instituições às gentes, porque não há Instituições vazias de pessoas. Não é este o momento para revisitar esses tempos e essas lutas. Apenas dizer que no tempo da outra senhora (a actual não me parece nada melhor) o Illiabum enriqueceu-se com a presença das mais eminentes figuras da cultura lusa. E até as marchas S Joaninas, então iniciadas, visavam uma iniciativa de recolha do  "Trajo". Orientada pelo Arq Quininha para criar o Museu do Trajo de Ílhavo. Que seria grandioso. Trajo que em nenhuma parte vi melhor, nem vislumbrei maior identificação entre a fatiota e quem a enverga. Adiante...quer na AHBVI, quer no CVCN, quer no Casci, todas viveram tempos para, de um ou outro modo, promover a cultura e a solidariedade entre as nossas gentes.

E os trambolhões …continuaram.

 Homem avisado vale por dez. A cada um deles seguia-se a raiva de fazer mais e melhor. Guardado estava – com data marcada se as asneiras da vida o não obviassem – começar a verter para o papel, em definitivo, o «saber» (o meu, por isso utilizável para o fim que entendesse). Dei início a essa nova etapa, um ano depois do programado. Mas com ganas de pelo menos chegar à minha «Monografia de Ílhavo». Nunca trabalho num só livro. Por vezes interrompo para deixar acamar as palavras e as ideias. Certo de que um dia ali voltarei. Os meus livros são as amantes de nunca me consegui afastar. Olho para eles com um misto de orgulho e admiração. Como olhei para o primeiro corpo nu de mulher amada, de um modo apaixonado, sabendo que,um dia qualquer, me iria dele (e deles!) separar. Dou-lhes toques e retoques, carinhos. Conto-lhe segredos todos os dias. Por isso, antes da Monografia, trabalho de evidente fôlego, fruto de anos de conquistas de saberes, interpretação e interiorizações, foi surgindo ao público  o «Nas Rotas dos Bacalhaus». Sei o pecado original deste livro. O desafio empolgou-me. Creio ser este, um livro completamente diferente de tudo quanto foi editado na matéria. Tem uma Parte II. Não sei se haverá tempo para lhe dar corpo e fim.

 Entretanto havia que cumprir a promessa dada, em jovem, ao Prof Guilhermino. Feita em um dia em que organizávamos a Biblioteca daquele seu aluno que o deslumbrara ainda no banco da sua Escola:- Mário Sacramento. Foi aí, então, que prometi cumprir o seu pedido (ou sugestão),de um dia relembrar esse grande «ílhavo» Alexandre da Conceição. Sublinhando aquilo que considerava um anátema no historial de Ílhavo: – referir  o pecado original desta terrinha, hoje mais do que nunca reafirmado em toda a sua dimensão, de Ílhavo ser melhor madrasta que mãe. E fiz, ainda, outra e maior, porque bem mais difícil promessa a cumprir : repor a verdade sobre Filinto Elíseo (outro «ílhavo», poeta maior entres os maiores, pátrios). Ando com ele há sete anos. Das minhas mãos está (praticamente) acabado. 

Mas no entretanto, prestei modesta, mas sentida e verdadeira homenagem, a esse «grande….grande» mestre de civismo e «ilhavismo», o Prof. Guilhermino Ramalheira, meu particular inspirador.  

 Foi aí que o arraias «Labareda » me saltou ao caminho : o tipo e as gentes que rodopiaram à sua volta, e a recuperação dos «ilhavismos», todo este enleio,toldou-me a programação. 

E como fugir a retratar a minha «Costa Nova», luxuria desavergonhada para os meus sentidos? E fi-lo dum folego. Um mês creio. Pouco mais. A Costa Nova tem um papel preponderante de pousio benfazejo para as maleitas da alma. Um céu esplendoroso, um mar azul infinito onde só o farfalho da onda destoa. A Ria vaporosa e fresca cativa-me. Gosto de a espreitar. Sou um empedernido «voyeur» seu. Ali cumpri o meu destino. Não aquele que as ciganas leem na palma da mão, mas aquele que nos está gravado na profundeza do ser. Determinado apenas pelo modo como deixamos os sentidos reagir ao mundo que nos envolve. A Costa-Nova envolveu-me. E deixei o Filinto em conserva, à espera. Deixei-me envolver, e perder a cabeça, pela «amada». O que é raro. Mas a Costa-Nova, e em especial a ria, foram o regaço que sempre encontrei disponível, acolhedor e terno em todas as horas. Regaço onde lavei as chagas que o surrar da vida me foi abrindo. Aprecio-a tanto na pujança da prenhez da preia-mar, como desperto para a resistência dos lenhos de água sobrantes que o seu choro, despejado diariamente no mar, deixa a descoberto. Gosto tanta de a ver toda vestida de um azul fulgurante,como de a desnudar para lhe deixar aparecer a intimidade das suas linhas que parecem desenhadas a compasso, tal a harmonia das suas curvas e contra curvas. Gosto de apreciar a sinfonia do nascer do dia: vislumbrar aquele barbazanas a espenujar-se dos restos do algodão da neblina matinal, que a serrania lhe impõe para melhor o esconder. Para logo aparecer por cima do espelho da ria, disco de zarcão iluminado a ouro, a projectar-se no palheiral riscado a rigor, encharcando-o de luz. Gosto de recordar a lomba dos meus tempos. Dessa lomba de segredos de amor jurados para a eternidade, a não durarem mais do que um escasso verão; dessa lomba de um areal alourado, semeado de «carneirinhos» perfumados, testemunha de tantos beijos roubados, num depenicar de avezinhas a sair do ninho. E tantas vezes, aconchego nupcial para atrevidamente se ir mais longe, influenciados pela maresia que funcionava lascivamente como afrodisíaco provocador. Mas gosto sobretudo do seu luar. Quando o sol se apaga no poente, e a ria é um banho prateado que nos tolhe e amarra. Inebria. Sinto-a como um descrente que entra na capela Sistina, olha o «céu», e fica absorto, alma em oração titubeante, sentidos perturbado pela grandeza, em silêncio interrogando-se. E  se  existisse,mesmo ????

 Demorou-me um Verão a retratá-la. Foi o livro mais fácil de escrever. Pois se eu a conhecia de cor e salteado (!). Já lá vão quatro edições. Como todos os outros livros, esgotadas. Sou pois um autor feliz. Por as minhas gentes, afinal, interessarem a tantos outros. 

Senti por essa altura o desespero de quase não ter tempo para clarificar e registar para os vindouros, essa grande aventura das gentes lagunares (onde os «ílhavos» foram cartaz de proa).E a sua genialidade em criar embarcações únicas. Desfazer mitos e asneiras ditos pelos maiorais da história pátria, nesse caso errados, foi tarefa que me não entibiou. Na vida sempre o afirmei: ou sabe-se, ou se está calado. E tive a rara felicidade de dar à estampa as embarcações sublimes, na sua forma e na finalidade. Qual delas a mais bonita e elegante. Um engenheiro que sempre privilegiou a forma e a adequação á finalidade, não poderia deixar de se galvanizar com a descoberta. Por isso, saiu o livro «Embarcações que tiveram o seu Berço na Laguna». A vida esperou e houve tempo. E até tempo de ganhar um prémio da Academia de Marinha, enfileirando na saga de Sarmento Rodrigues. 

E quando este prémio me honrou – eu que nunca esperei por outros prémios que não o meu gozo pessoal! – já então  alinhavava a figura desse «ilhavense/aveirense», João Sousa Ribeiro que me empolgara com  o seu  portentoso altruísmo. Homem de uma grandeza épica, de um saber antológico, e de uma afirmação ímpia de cidadão, S.R. conquistou-me a vontade e atenção. Vesti o gabão, e num ápice, fui buscá-lo ás profundezas do esquecimento. Todos o citavam. Poucos ou nenhuns, sabiam o seu historial, a sua grandeza humana. Enorme! Ora e pronto. Tinha de acontecer. Virgoleira que vai á guerra, volta mulher feita e experimentada. Senhora de todas as artes e manhas.

Não, não esqueci quem profissionalmente me deslumbrou. Quem me levou a saber coisas que me justificaram o aceitar, sem corar - muito pelo contrário! – o tratarem-me deferentemente  por  engenheiro. É intolerável, inacreditável, e vergonhoso, que  Ílhavo   não faça perdurar para os vindouros  um dos dois maiores engenheiros civis do seu tempo: o eng Ângelo Ramalheira. Prestei-lhe preito, homenagem e sincera amizade.

Amigos:

A minha estadia na Casa da Costa Nova permitiu-me (e permite-me) noites de regalada beleza. Deslumbramento com esse luar de feitiço em que um homem sonha intrometer-se, e ir com o cheiro da maresia à procura do impossível. Na cadeira postada na varanda que criei naquele absurdo paraíso, parecia-me (e parece) esquecer-me de tudo. Mesmo o de tocar a vida com a mão. A minha liberdade está na minha capacidade de isolamento. Deixo a vida e sinto que é possível viver o amor primeiro, a glória, a derrota. Fico ali longe das asperezas e da insinceridade do fingimento humano. Naquela cadeira estrategicamente posicionada na imensidão da ria, esqueci sempre o que me oprime. Ali ganho forças. Liberto-me.

Fui (e sou!), um ser desgarrado. Porque completamente livre: de tudo e de todos. Imagino-me um escravo que à força do pulso ganhou a liberdade. O maior bem da vida. Tive nesta uma posição estética. Não posso deixar de assim lhe chamar: os insultos ou até impedimentos com que me tentaram ofender, não chegaram a ultrapassar mais do que a soleira da minha indiferença.

Vivi (e vivo!) ali, noites em que a vida vai, foge, vem, e me enlaça. Desejei sempre ter artes para dar mão ao enlevo. Dar o amor às palavras: o mesmo que minha mãe deu quando me teve. Quietinho no sussurro dessas noites, chegam-me notícias de amores que não voltam; sonho que me poderiam fazer crer, utopicamente, ainda ser possível. Embalado na quietude dessas noites, parece-me ouvir tambores ao longe anunciando novos mundos. Onde não se fosse feliz por querer, mas por ser. Tão só! 

Perdi-me em noites –e dias (!)- porque sol da Costa Nova traz com ele os orientes da imaginação, a contar as indeléveis pegadas que fui deixando para trás. Retratei-as. E intui o poeta quando nos diz da íntima certeza/ de que tudo é verdade /o que de nós disser/ a mudez da saudade. Fazia-me bem dizê-las, indiferente a ter ou não nascido para poeta. Sem vergonha de me ensaiar. Doía-me mais não as ter dito.

E sem ter propensão a estados poéticos delirantes – que fique claro!- arregimentei umas palavras, catei-lhes o fel e vinagre, e botei-as ao papel. Primeiro timidamente. Aquilo saía-me (e sai-me) num espasmo. Dava-as à Zida (*uma excelente declamadora que nunca se quis afirmar publicamente, senão uma ou duas vezes) e pedia- lhe que mos lesse. E ou os rasgava ou os alinhavava no Blogue, ouvida uma ou outra opinião. Um dia alguém os juntou chamando-me a atenção para a dimensão. Eram já centenas, sem que soubesse um ao menos (!), de cor. Senti que tenho uma imaginação perigosa, porque volátil. Perco-a, porque são tantas as sensações que me deixo embaraçar pela quantidade.

Uma coisa fique claro: mesmo nessas horas de sonho, nunca perdi o norte: -a vida vive-se, vivendo-a. Não a abastardando.

Aqui chegado, curvo-me perante a V/ amabilidade em terem vindo viver estes momentos comigo.

Atraso a vida sabendo que a morte tem pressa. A magana já me levou o que de melhor tive. Que espere.

Rotularam-me, vai para meio século, de «homem polémico». Perseguiu-me este rótulo. Que maneira porreira e simpática de me chamarem incómodo, ou até outras designações menos sociáveis. Fui preso três vezes por «agressão e ou desrespeito à autoridade. Julgado e ilibado. A Srª Pide distinguiu-me como «um elemento perigoso para a nação». Assim o atesta o processo e a inquirição. Mandou que o Comando da unidade onde me encontrava, exercesse sobre mim apertada vigilância. Era eu o Comandante. Respondi ao ofício garantindo que o referido oficial, será seguido dia e noite. Pudera!: eu até dormia com o referenciado e putativo revolucionário de pacotilha.

Com todas estes desvarios, não escrevi o livro que sempre quis –e quero !-escrever.

«PUTA DE VIDA»


SF – 2013 (CHIO PÓ PÓ )

 



sexta-feira, julho 16, 2021


 


(Revisitando "OS  NOVOS MAIAS NA COSTA NOVA»

(….)

Acomodaram-se os passantes entre aquele mulherio,  com fortes razões do cansaço de um dia de trotear pelas ruelas da vila, a vender o peixe. Mesmo assim, naquela hora descontraída, mostram viço no maneio de gestos e corpos. E cara sorridente. O Zé da «Gaita», homem de barbas ruças, artista feirante da sanfona que, nas suas mãos, parecia que até falava, logo foi desafiado pela Rosa «Galante»:

  - Ah homem «bô», dê-me lá uma gaitada. 

E logo o Arrais Labareda, malandro, jocoso, irónico, atira:  

- Ah raios, andas sempre a pedir gaitadas. Não t’a cansas demónio? Depois começas aí aos saltos, encabritas-te, e ainda me partes um paneiro.

Era tarde para o aviso. Ao som da sanfona, logo uma molhada daquelas mulheres cuja vida era feita de suado e frenético trabalho, mas por natureza mulheres alegres e louçãs, com o pé no chinelo a pedir travessura, saltaram para o centro da embarcação, sacudindo-se e rodopiando, para lá e para cá, ao ritmo de um vira virado. Ega parecia subitamente interessado naqueles corpos bamboleantes, cofiando a loira bigodaça, sorrindo com prazer. Carlos parecia profundamente surpreendido com o ritmo do mexido e rodopiante do bailado, bem marcado pela sincronia do sapateado. Finda a primeira roda, logo o Ti Labareda intrinca com a Rosa, puxando-lhe pela língua:

-Ah rapariga, vais chegar a casa toda derreada. Coitado do Toino.

-Que é lá isso, Labareda: pois assoa-te que estás bem enganado… olha que o mê Toino, hoje, bem tem de pôr o reçoero de molho….Atrapalhado vai ele haver-se…

E para limpar o suor, vai à bolsa e retira um «trapo» branco para fazer de lenço. Foi uma risada geral, pois o pano a que a Ti Rosa limpava a cara, era, tão só, umas «cuecas» brancas, femininas.,

- Ó cachopa: foi engano ou é p’rá arejo? – atira o Labareda sentado no «cagarete», rindo a bom rir.

 -Mas atão, diz a Eugénia «Pardaleira», o teu Toino não ficou lá por Lisboa, na safra de verão?

-Não filha; começou com saudades cá da Rosa, pois aquelas fufas lá de Lisboa não prestam para aviar um home daqueles. Elas bem se apegam, mareiam à volta dos nossos, mas não prestam pró lanço. É tudo aguadilha.

-Pois é; pior só os lá de Lisboa. Aquilo, lá(!), está tudo podre. Bem falta faz o Marquês, que havia de vir cá baixo outra vez, e embarcar aqueles simpras. Mandá-los trabalhar p’ró Brasil, diz a Génia.

Ega parecia ter perdido o sorriso; Carlos exibia um olhar de espanto, revelando um certo interesse na conversa, doidinho por saber o que pensaria o seu amigo Ega, desta pobre gentiaga. Manteria a sua proverbial antipatia, e até desprezo?

-Quem fala assim não é gaga, atalha a Rosa. Se viesse outro terramoto limpava a podridão que por lá vai. Aquilo fede pior que pilado de escasso. Eu andei lá a vender peixe pelas ruelas do Bairro-Alto, e nem podia anunciar o peixe fresco, pois as pindéricas e os penduralhos, só se alevantavam lá para o meio-dia, a bufarem o álcool destilado na noite. Se lhe achegam um fosfro, ai vai o peralvilho. E depois aquelas fúfias botam perfume para tirarem o cheiro da devassa. Mudam de home como eu mudo de camiseta. As ruas parecem todos os dias em festa de S. Pedro: a cornadura dos «Viscondes» cobre a rua de um lado ao outro. Porta sim para lá, e porta não para cá. Arcos retorcidos, maiores que a cornadura do boi marrão do abegoeiro Alcibíades, da Companha dos Luíses.

-Oh! filha mas não se vêem ; e, se se virem, eles não se importam. E se, se importarem, serram-nos…,acrescenta a Génia.

(……)


Senos Fonseca(in cap7 de OS NOVOS MAIAS NA COSTA NOVA)


  67.   Poemas de Abril Abril: síntese inalcançável Já não há palavras  Que floresçam Abril,  Nem já há lágrima...