quinta-feira, julho 29, 2021

 


O «ílhavo» e o S. Pedro


O «ílhavo», tipo rude e forte, roncão no falar, sempre foi um homem de carácter, cumpridor nas suas obrigações e temente a Deus. Era conhecida a óptima relação que tinha com S.Pedro, orago de predilecção das gentes pisceiras, santinho a quem dedicavam fervoroso e preferencial culto. E a quem, anualmente, com júbilo, pompa e circunstância, rendiam notório e espaventoso festim, para o efeito engalanando a vila e a sua Igreja com colgaduras para receber os visitantes, que desciam a esta santa terrinha, não só e apenas no intuito de gozarem as delícias dos festejos que duravam três dias, mas atraídos, também, pelo bem receber, apanágio destas gentes remediadas,  mãos abertas e coração escancarado, no propósito de fraternal convívio.

Tão boa era a relação destas gentes com o porteiro do céu que, corria à boca cheia, a faladura, ser bastante a evocação da naturalidade, para que, uma alma, ainda que muito penada e bem pesada, ida daqui, visse escancaradas as portas do Céu por aquele sempre atento fiscal do bom comportamento e virtudes, o S.Pedro.Olheiro astuto, sempre diligente e operoso, no intuito de manter o mar bonançoso do céu limpo de fraldocos.

Ora num dia em que o S Pedro foi abrir o portal, deu com um façudo mal-encarado, a quem perguntou:

-Então o que pretendes?

-Entrar no céu.

-E tu mereces a dádiva? O que fizeste para tal? De onde és? 

-De Ílhavo

O S. Pedro mirou …remirou e,muito embora desconfiado, lá lhe disse 

-Entra. Aguarda aí na recepção que eu vou lá dentro confirmar a listagem de embarque, chegada pela última pomba da noite.

Passados uns minutos, quando regressou para dizer ao mal encarado e mentiroso recém chegado, que não era verdade, ele,  ser de Ílhavo, mas que estava, sim, na lista de Vagos ,constatou que o farjano tinha desaparecido e se infiltrara por uma das entradas laterais, nunca mais sendo visto.

S Pedro ficou fulo.( que os Santos, também só são Santos, até certo ponto).

E de si para si, lá foi dizendo: -deixa estar que quando me aparecer cá outro já não me leva assim. Vá lá um santo acreditar nestes safardanas …

Não tardou muito que ouvisse: trás…trás!..trás. Alguém chegava, parecendo  ter pressa para não perder a maré da manhã.

-Já lá vai. Se tens pressa vai lá p’ra baixo, que está mais quentinho. Resmungando enquanto entreabria o portão, perguntou:

-Então quem és, e o que queres

-Oh!... S Pedro, sou o Zé Cachino, lá da Malhada, e cri’ia que m’amabotasse aí p’ra dentro… raio! que venho cansado da viaje e c’riame chichar aí dentro.  Avia-te, raios.C’ ainda perco a enchente.

- E donde és tu, ó Cachino?

-Sou d’ivalho, raios! Atão eu ia lá astrigar-me a mentir sobre a minha terra. Nado, bautizado e cebado, em íbalho, saiba vòssomocê,santinho. Astão tu não m’enxergas, não t’ alembras cá do Zé? C’inté no mês passado fui juiz da festa c’a ta fizemos lá na terrinha da lampada. És mesmo desconfiado. Mexe-te  que estou p’rà aqui todo engaranhido.

-Não é isso, mas é que noutro dia apareceu-me cá um finório de Vagos – daqueles que deixaram o Senhor na rua para acudir ao bacalhau! -  que me enloilou com essa de ser «d’Ilhavo…

-É S Pedro !... raios ,estipor ,deixa-me entrar c’«amando-te  um xalabar de sardinha bibinha,..a saltar …da restomenga, tenta o Cachina convencer o orago. (Que a corrupção nos céus, não é corrupção, mas dadivazinha, pagamento de promessa..esmolna.).

-Entra Cachino, entra ; por essa da sardinha  bibinha a saltar,  estás identificado.


Senos da Fonseca





domingo, julho 25, 2021

 

( Apontamento para o "CHIO-PÓ " em 2013).    Espantosamente ! actual...

"PUTA"de vida

Amigos,Senhoras e Senhores:


Contactado para saber da minha disponibilidade em colaborar com o Chio Pó Pó, em esta nova e muito louvável  iniciativa,  perpassou pela minha cabeça a interrogação: porquê eu a abrir, tão intencional quanto honroso ciclo? 

Encontrei de imediato resposta para a minha questão: é das normas começar-se pelo mais fraco, e, em crescendo, apresentar aqueles de mais significativa dimensão e notoriedade. Assim sendo, aqui estou, humildemente, na tarefa de dar o pontapé de saída para este recuperar do tempo perdido. Que bem pode ser desenhado, se tiver a continuidade  previsível, o àgora . O fim do período mais negro da história cultural das gentes de ílhavo.

Desde logo o meu agradecimento: e com ele o meu abraço aos mentores desta relevante instituição: o "Chio PóPó", instituição de tão velhas e largas tradições. Desde a irreverência que levou á sua aparição, já lá vão mais de uma centena de anos,até às acções (Carnaval e outras)num passado ainda presente  na memória de todos nós. A minha gratidão  e a minha inteira disponibilidade para o que entendam possa ser útil à Instituição .De igual modo o muito obrigado a todos quanto colaboraram neste esforço de, na verdade, consertar algo que vai mal. 

Aqui estou amigos, nos minutos que a «régie» me destinou, para me apresentar (?!) e responder à momentosa questão: o que tenho feito pela Cultura Ilhavense e Suas Gentes?

Ao que tenho feito (?), respondo: – vou fazendo! Pouco. Será certo. Mas que força tem um homem na caneta para lutar com o mostrengo de onde sopraram os ventos apocalípticos que foram vergando o embondeiro da cultura dos «ílhavos», até o colocar de rastos? Tenho-o feito, pois, modestamente. Mais por apego afectivo que por  mestria  de artesão da escrita. Mas já Torga o dizia: escrever é o maior risco, pois se constitui réu no Tribunal  em que serão juízes os leitores futuros das gerações vindouras. Serão pois, a esses, que deixo a tarefa de me avaliar.

Nasci há 74 Anos. Naquela histórica casa da Arcebispo Bilhano: – não porque lá tenha nascido, mas pelos painéis monumentais  de azulejaria que exibe na frontaria, os mais belos que conheço, retratando as minhas gentes. Nascer então, aqui, em Ílhavo, não era bem o mesmo que ir ali ao S.Pedro, de Aveiro, e vir depois a assumir a alforria de ser «um ílhavo nado e criado» na terrinha da lâmpada. Criado, ainda vá. Mas não, «nado». Desculpem lá, mas os ílhavos de hoje são cagaréus diluídos Eu não,:sou de Ílhavo de corpo inteiro. Nado para ir de mar em mar, a sonhar.

Contaram-me que, acabada a ocorrência – feliz para os meus, já que a mim ninguém me perguntou (?!) – abri os olhos desmesuradamente ao meu Pai a quem a «Alicinha» tinha passado o puto loiraço. Já gordinho e anafado logo à nascença. Como a perguntar: e agora pá? O meu Pai, que sempre me falou, só e apenas, verdade, ter-me-à olhado e dito: Oh rapaz prepara-te; olha que a vida traz muitos trambolhões. Promitentes estas palavras. Ainda eu gatinhava e dei um trambolhão que bem poderia ter sido o primeiro e o último. A «Ana Padeira», que me idolatrou até ao seu desaparecimento, deixou-me cair pelas escadas abaixo, e vim parar ao passeio. Conta-se o milagre (os milagres, é bem certo, acontecem sempre aos que neles não acreditam). Quando pensavam o pior, o puto não chorou. Estava, era, como que distraído. A olhar, espantado, para os azulejos. Como que absorto, interiorizando aquelas gentes .Apaixonado. E lá veio outra profecia: o rapaz vai ser homem de paixões mudas, interiores.E hoje revejo: todas as afeições  guardo-as bem no interior. Só finjo o que de facto não amei. E só não amei, o que me não valia a pena amar.

A partir desse dia, os trambolhões sucederam-se. Começava então a minha vida que seria, bonita mas insólita, coquette q.b., desafiadora, plena de aventura. Nela convergiram, e se misturaram, desafios que, hoje, olhando para trás, me arrepiam. Mas sempre nos maus momentos me lembrei do aviso: as guerras só terminam no fim. As batalhas ganham-se e perdem-se. E só no fim se faz a contabilidade.

Claro que os grandes desafios estiveram intimamente ligados à vida profissional. Tenho a consciência absoluta de que pouco ou mais nada, havia aí, para fazer. Foi lindo e preenchido demais o sonho de quem achava que nem no céu há limites. E como não os encontrei, houve tempo para me ensaiar de outras maneiras.

Enche-me de orgulho o tempo que dei de mim à vida cívica. Quis o desafio, sempre e só o desafio (!) – e nunca porque me ofereci ou promovi – conduzir-me ao epicentro de várias e decisivas batalhas nas mais significativas Instituições de Ílhavo. Trinta e seis anos, com algo de comum: com "elas" ultrapassar momentos de crise profunda. Todas as Instituições que me vieram para à mão, curiosamente ou talvez não!, encontravam-se à beira do precipício. Nunca me convidaram para um passeio de facilidades. Nelas não fui – longe disso!- um presidente visitante, mas um presidente próximo, presente. Nos trintae tal  anos em que me dei às Associações da minha terra, em cada uma delas, a minha presença e actividade, toda a gente o sabe, foi diária. Em cada uma delas houve uma guerra a vencer. General que se preze não deixa a linha da frente a cabo raso para se esconder na trincheira. Por isso foi sempre a mim – e só a mim! – que me coube lutar contra o desinteressado, ignoto e despeitado poder. Começou em 68 e só acabou em 2012.  

No desempenho dessa actividade estiveram sempre presentes as minhas gentes.Com o passar dos anos esse deslumbramento pela cultura dos «ílhavos» (não se confunda nem restrinja, mas inclua-se, a actual saga histórica bacalhoeira) seduziu-me pela sua dimensão e grandeza. E pela sua singularidade.

Começou essa paixão, quando aluno da minha Tia Vicência, na Gafanha de Aquém, percebi logo que aquelas eram outras gentes. Mas elas também singulares e autónomas. No Colégio, a minha pesporrência literária cedo se desenhou com o "Prémio Dinis Gomes". Dizem os livros ( dois) que, guardo e leio religiosamente, vezes sem conta, os «Costumes e Gentes de Ílhavo» : ao Joãozinho Fonseca pela sua precoce admiração e exaltação dos valores de ílhavo»                                              

A vida não me deu tréguas mas eu sempre lhe roubei tempo para alinhavar ideias no papel. Que ia, anarquicamente, arquivando. Lia tudo quanto fosse livro para me amanhar com essas grandes figuras do Ílhavo de um outro tempo.

Nas Instituições, paralelamente ao seu engrandecimento e afirmação, procurei que os aspectos culturais estivessem sempre – mas sempre em todas elas,- em paralelo com a sua afirmação. Quis sempre levar as Instituições às gentes, porque não há Instituições vazias de pessoas. Não é este o momento para revisitar esses tempos e essas lutas. Apenas dizer que no tempo da outra senhora (a actual não me parece nada melhor) o Illiabum enriqueceu-se com a presença das mais eminentes figuras da cultura lusa. E até as marchas S Joaninas, então iniciadas, visavam uma iniciativa de recolha do  "Trajo". Orientada pelo Arq Quininha para criar o Museu do Trajo de Ílhavo. Que seria grandioso. Trajo que em nenhuma parte vi melhor, nem vislumbrei maior identificação entre a fatiota e quem a enverga. Adiante...quer na AHBVI, quer no CVCN, quer no Casci, todas viveram tempos para, de um ou outro modo, promover a cultura e a solidariedade entre as nossas gentes.

E os trambolhões …continuaram.

 Homem avisado vale por dez. A cada um deles seguia-se a raiva de fazer mais e melhor. Guardado estava – com data marcada se as asneiras da vida o não obviassem – começar a verter para o papel, em definitivo, o «saber» (o meu, por isso utilizável para o fim que entendesse). Dei início a essa nova etapa, um ano depois do programado. Mas com ganas de pelo menos chegar à minha «Monografia de Ílhavo». Nunca trabalho num só livro. Por vezes interrompo para deixar acamar as palavras e as ideias. Certo de que um dia ali voltarei. Os meus livros são as amantes de nunca me consegui afastar. Olho para eles com um misto de orgulho e admiração. Como olhei para o primeiro corpo nu de mulher amada, de um modo apaixonado, sabendo que,um dia qualquer, me iria dele (e deles!) separar. Dou-lhes toques e retoques, carinhos. Conto-lhe segredos todos os dias. Por isso, antes da Monografia, trabalho de evidente fôlego, fruto de anos de conquistas de saberes, interpretação e interiorizações, foi surgindo ao público  o «Nas Rotas dos Bacalhaus». Sei o pecado original deste livro. O desafio empolgou-me. Creio ser este, um livro completamente diferente de tudo quanto foi editado na matéria. Tem uma Parte II. Não sei se haverá tempo para lhe dar corpo e fim.

 Entretanto havia que cumprir a promessa dada, em jovem, ao Prof Guilhermino. Feita em um dia em que organizávamos a Biblioteca daquele seu aluno que o deslumbrara ainda no banco da sua Escola:- Mário Sacramento. Foi aí, então, que prometi cumprir o seu pedido (ou sugestão),de um dia relembrar esse grande «ílhavo» Alexandre da Conceição. Sublinhando aquilo que considerava um anátema no historial de Ílhavo: – referir  o pecado original desta terrinha, hoje mais do que nunca reafirmado em toda a sua dimensão, de Ílhavo ser melhor madrasta que mãe. E fiz, ainda, outra e maior, porque bem mais difícil promessa a cumprir : repor a verdade sobre Filinto Elíseo (outro «ílhavo», poeta maior entres os maiores, pátrios). Ando com ele há sete anos. Das minhas mãos está (praticamente) acabado. 

Mas no entretanto, prestei modesta, mas sentida e verdadeira homenagem, a esse «grande….grande» mestre de civismo e «ilhavismo», o Prof. Guilhermino Ramalheira, meu particular inspirador.  

 Foi aí que o arraias «Labareda » me saltou ao caminho : o tipo e as gentes que rodopiaram à sua volta, e a recuperação dos «ilhavismos», todo este enleio,toldou-me a programação. 

E como fugir a retratar a minha «Costa Nova», luxuria desavergonhada para os meus sentidos? E fi-lo dum folego. Um mês creio. Pouco mais. A Costa Nova tem um papel preponderante de pousio benfazejo para as maleitas da alma. Um céu esplendoroso, um mar azul infinito onde só o farfalho da onda destoa. A Ria vaporosa e fresca cativa-me. Gosto de a espreitar. Sou um empedernido «voyeur» seu. Ali cumpri o meu destino. Não aquele que as ciganas leem na palma da mão, mas aquele que nos está gravado na profundeza do ser. Determinado apenas pelo modo como deixamos os sentidos reagir ao mundo que nos envolve. A Costa-Nova envolveu-me. E deixei o Filinto em conserva, à espera. Deixei-me envolver, e perder a cabeça, pela «amada». O que é raro. Mas a Costa-Nova, e em especial a ria, foram o regaço que sempre encontrei disponível, acolhedor e terno em todas as horas. Regaço onde lavei as chagas que o surrar da vida me foi abrindo. Aprecio-a tanto na pujança da prenhez da preia-mar, como desperto para a resistência dos lenhos de água sobrantes que o seu choro, despejado diariamente no mar, deixa a descoberto. Gosto tanta de a ver toda vestida de um azul fulgurante,como de a desnudar para lhe deixar aparecer a intimidade das suas linhas que parecem desenhadas a compasso, tal a harmonia das suas curvas e contra curvas. Gosto de apreciar a sinfonia do nascer do dia: vislumbrar aquele barbazanas a espenujar-se dos restos do algodão da neblina matinal, que a serrania lhe impõe para melhor o esconder. Para logo aparecer por cima do espelho da ria, disco de zarcão iluminado a ouro, a projectar-se no palheiral riscado a rigor, encharcando-o de luz. Gosto de recordar a lomba dos meus tempos. Dessa lomba de segredos de amor jurados para a eternidade, a não durarem mais do que um escasso verão; dessa lomba de um areal alourado, semeado de «carneirinhos» perfumados, testemunha de tantos beijos roubados, num depenicar de avezinhas a sair do ninho. E tantas vezes, aconchego nupcial para atrevidamente se ir mais longe, influenciados pela maresia que funcionava lascivamente como afrodisíaco provocador. Mas gosto sobretudo do seu luar. Quando o sol se apaga no poente, e a ria é um banho prateado que nos tolhe e amarra. Inebria. Sinto-a como um descrente que entra na capela Sistina, olha o «céu», e fica absorto, alma em oração titubeante, sentidos perturbado pela grandeza, em silêncio interrogando-se. E  se  existisse,mesmo ????

 Demorou-me um Verão a retratá-la. Foi o livro mais fácil de escrever. Pois se eu a conhecia de cor e salteado (!). Já lá vão quatro edições. Como todos os outros livros, esgotadas. Sou pois um autor feliz. Por as minhas gentes, afinal, interessarem a tantos outros. 

Senti por essa altura o desespero de quase não ter tempo para clarificar e registar para os vindouros, essa grande aventura das gentes lagunares (onde os «ílhavos» foram cartaz de proa).E a sua genialidade em criar embarcações únicas. Desfazer mitos e asneiras ditos pelos maiorais da história pátria, nesse caso errados, foi tarefa que me não entibiou. Na vida sempre o afirmei: ou sabe-se, ou se está calado. E tive a rara felicidade de dar à estampa as embarcações sublimes, na sua forma e na finalidade. Qual delas a mais bonita e elegante. Um engenheiro que sempre privilegiou a forma e a adequação á finalidade, não poderia deixar de se galvanizar com a descoberta. Por isso, saiu o livro «Embarcações que tiveram o seu Berço na Laguna». A vida esperou e houve tempo. E até tempo de ganhar um prémio da Academia de Marinha, enfileirando na saga de Sarmento Rodrigues. 

E quando este prémio me honrou – eu que nunca esperei por outros prémios que não o meu gozo pessoal! – já então  alinhavava a figura desse «ilhavense/aveirense», João Sousa Ribeiro que me empolgara com  o seu  portentoso altruísmo. Homem de uma grandeza épica, de um saber antológico, e de uma afirmação ímpia de cidadão, S.R. conquistou-me a vontade e atenção. Vesti o gabão, e num ápice, fui buscá-lo ás profundezas do esquecimento. Todos o citavam. Poucos ou nenhuns, sabiam o seu historial, a sua grandeza humana. Enorme! Ora e pronto. Tinha de acontecer. Virgoleira que vai á guerra, volta mulher feita e experimentada. Senhora de todas as artes e manhas.

Não, não esqueci quem profissionalmente me deslumbrou. Quem me levou a saber coisas que me justificaram o aceitar, sem corar - muito pelo contrário! – o tratarem-me deferentemente  por  engenheiro. É intolerável, inacreditável, e vergonhoso, que  Ílhavo   não faça perdurar para os vindouros  um dos dois maiores engenheiros civis do seu tempo: o eng Ângelo Ramalheira. Prestei-lhe preito, homenagem e sincera amizade.

Amigos:

A minha estadia na Casa da Costa Nova permitiu-me (e permite-me) noites de regalada beleza. Deslumbramento com esse luar de feitiço em que um homem sonha intrometer-se, e ir com o cheiro da maresia à procura do impossível. Na cadeira postada na varanda que criei naquele absurdo paraíso, parecia-me (e parece) esquecer-me de tudo. Mesmo o de tocar a vida com a mão. A minha liberdade está na minha capacidade de isolamento. Deixo a vida e sinto que é possível viver o amor primeiro, a glória, a derrota. Fico ali longe das asperezas e da insinceridade do fingimento humano. Naquela cadeira estrategicamente posicionada na imensidão da ria, esqueci sempre o que me oprime. Ali ganho forças. Liberto-me.

Fui (e sou!), um ser desgarrado. Porque completamente livre: de tudo e de todos. Imagino-me um escravo que à força do pulso ganhou a liberdade. O maior bem da vida. Tive nesta uma posição estética. Não posso deixar de assim lhe chamar: os insultos ou até impedimentos com que me tentaram ofender, não chegaram a ultrapassar mais do que a soleira da minha indiferença.

Vivi (e vivo!) ali, noites em que a vida vai, foge, vem, e me enlaça. Desejei sempre ter artes para dar mão ao enlevo. Dar o amor às palavras: o mesmo que minha mãe deu quando me teve. Quietinho no sussurro dessas noites, chegam-me notícias de amores que não voltam; sonho que me poderiam fazer crer, utopicamente, ainda ser possível. Embalado na quietude dessas noites, parece-me ouvir tambores ao longe anunciando novos mundos. Onde não se fosse feliz por querer, mas por ser. Tão só! 

Perdi-me em noites –e dias (!)- porque sol da Costa Nova traz com ele os orientes da imaginação, a contar as indeléveis pegadas que fui deixando para trás. Retratei-as. E intui o poeta quando nos diz da íntima certeza/ de que tudo é verdade /o que de nós disser/ a mudez da saudade. Fazia-me bem dizê-las, indiferente a ter ou não nascido para poeta. Sem vergonha de me ensaiar. Doía-me mais não as ter dito.

E sem ter propensão a estados poéticos delirantes – que fique claro!- arregimentei umas palavras, catei-lhes o fel e vinagre, e botei-as ao papel. Primeiro timidamente. Aquilo saía-me (e sai-me) num espasmo. Dava-as à Zida (*uma excelente declamadora que nunca se quis afirmar publicamente, senão uma ou duas vezes) e pedia- lhe que mos lesse. E ou os rasgava ou os alinhavava no Blogue, ouvida uma ou outra opinião. Um dia alguém os juntou chamando-me a atenção para a dimensão. Eram já centenas, sem que soubesse um ao menos (!), de cor. Senti que tenho uma imaginação perigosa, porque volátil. Perco-a, porque são tantas as sensações que me deixo embaraçar pela quantidade.

Uma coisa fique claro: mesmo nessas horas de sonho, nunca perdi o norte: -a vida vive-se, vivendo-a. Não a abastardando.

Aqui chegado, curvo-me perante a V/ amabilidade em terem vindo viver estes momentos comigo.

Atraso a vida sabendo que a morte tem pressa. A magana já me levou o que de melhor tive. Que espere.

Rotularam-me, vai para meio século, de «homem polémico». Perseguiu-me este rótulo. Que maneira porreira e simpática de me chamarem incómodo, ou até outras designações menos sociáveis. Fui preso três vezes por «agressão e ou desrespeito à autoridade. Julgado e ilibado. A Srª Pide distinguiu-me como «um elemento perigoso para a nação». Assim o atesta o processo e a inquirição. Mandou que o Comando da unidade onde me encontrava, exercesse sobre mim apertada vigilância. Era eu o Comandante. Respondi ao ofício garantindo que o referido oficial, será seguido dia e noite. Pudera!: eu até dormia com o referenciado e putativo revolucionário de pacotilha.

Com todas estes desvarios, não escrevi o livro que sempre quis –e quero !-escrever.

«PUTA DE VIDA»


SF – 2013 (CHIO PÓ PÓ )

 



sexta-feira, julho 16, 2021


 


(Revisitando "OS  NOVOS MAIAS NA COSTA NOVA»

(….)

Acomodaram-se os passantes entre aquele mulherio,  com fortes razões do cansaço de um dia de trotear pelas ruelas da vila, a vender o peixe. Mesmo assim, naquela hora descontraída, mostram viço no maneio de gestos e corpos. E cara sorridente. O Zé da «Gaita», homem de barbas ruças, artista feirante da sanfona que, nas suas mãos, parecia que até falava, logo foi desafiado pela Rosa «Galante»:

  - Ah homem «bô», dê-me lá uma gaitada. 

E logo o Arrais Labareda, malandro, jocoso, irónico, atira:  

- Ah raios, andas sempre a pedir gaitadas. Não t’a cansas demónio? Depois começas aí aos saltos, encabritas-te, e ainda me partes um paneiro.

Era tarde para o aviso. Ao som da sanfona, logo uma molhada daquelas mulheres cuja vida era feita de suado e frenético trabalho, mas por natureza mulheres alegres e louçãs, com o pé no chinelo a pedir travessura, saltaram para o centro da embarcação, sacudindo-se e rodopiando, para lá e para cá, ao ritmo de um vira virado. Ega parecia subitamente interessado naqueles corpos bamboleantes, cofiando a loira bigodaça, sorrindo com prazer. Carlos parecia profundamente surpreendido com o ritmo do mexido e rodopiante do bailado, bem marcado pela sincronia do sapateado. Finda a primeira roda, logo o Ti Labareda intrinca com a Rosa, puxando-lhe pela língua:

-Ah rapariga, vais chegar a casa toda derreada. Coitado do Toino.

-Que é lá isso, Labareda: pois assoa-te que estás bem enganado… olha que o mê Toino, hoje, bem tem de pôr o reçoero de molho….Atrapalhado vai ele haver-se…

E para limpar o suor, vai à bolsa e retira um «trapo» branco para fazer de lenço. Foi uma risada geral, pois o pano a que a Ti Rosa limpava a cara, era, tão só, umas «cuecas» brancas, femininas.,

- Ó cachopa: foi engano ou é p’rá arejo? – atira o Labareda sentado no «cagarete», rindo a bom rir.

 -Mas atão, diz a Eugénia «Pardaleira», o teu Toino não ficou lá por Lisboa, na safra de verão?

-Não filha; começou com saudades cá da Rosa, pois aquelas fufas lá de Lisboa não prestam para aviar um home daqueles. Elas bem se apegam, mareiam à volta dos nossos, mas não prestam pró lanço. É tudo aguadilha.

-Pois é; pior só os lá de Lisboa. Aquilo, lá(!), está tudo podre. Bem falta faz o Marquês, que havia de vir cá baixo outra vez, e embarcar aqueles simpras. Mandá-los trabalhar p’ró Brasil, diz a Génia.

Ega parecia ter perdido o sorriso; Carlos exibia um olhar de espanto, revelando um certo interesse na conversa, doidinho por saber o que pensaria o seu amigo Ega, desta pobre gentiaga. Manteria a sua proverbial antipatia, e até desprezo?

-Quem fala assim não é gaga, atalha a Rosa. Se viesse outro terramoto limpava a podridão que por lá vai. Aquilo fede pior que pilado de escasso. Eu andei lá a vender peixe pelas ruelas do Bairro-Alto, e nem podia anunciar o peixe fresco, pois as pindéricas e os penduralhos, só se alevantavam lá para o meio-dia, a bufarem o álcool destilado na noite. Se lhe achegam um fosfro, ai vai o peralvilho. E depois aquelas fúfias botam perfume para tirarem o cheiro da devassa. Mudam de home como eu mudo de camiseta. As ruas parecem todos os dias em festa de S. Pedro: a cornadura dos «Viscondes» cobre a rua de um lado ao outro. Porta sim para lá, e porta não para cá. Arcos retorcidos, maiores que a cornadura do boi marrão do abegoeiro Alcibíades, da Companha dos Luíses.

-Oh! filha mas não se vêem ; e, se se virem, eles não se importam. E se, se importarem, serram-nos…,acrescenta a Génia.

(……)


Senos Fonseca(in cap7 de OS NOVOS MAIAS NA COSTA NOVA)


quinta-feira, julho 15, 2021

 Revisitando a Joana  Gramata  a"Maluca"




Aqui sentado no meu canto à beira rio plantado por mim, com um sonhado e não escondido propósito de um dia poder gozar a velhice, desgastado do corpo que não dos sentidos, inebriado por esta ria, tão inquieta quanto eu, mas muito mais prodigiosa na oferta de sensações que dela podemos extrair e guardar,olho para o lado de lá  esta «Iemanjá» das águas vivas, reluzentes, cheias de vida… E agora que já pouca beleza extraio da vida, é ela que (me) consola nestes momentos – eu sei lá?! – se os poderei chamar de criativos. Pelo menos, aqui, criar, significa sonhar, querer, desejar. Sonhar com as palavras que gostaria de dizer, e que, se afinal não digo, é porque me falta o estro.

Mesmo defronte aos meus olhos – ali mesmo! –, ficam as terras da Joana «Maluca», figura histórica por quem sempre tive largo apreço. Como tive – ao menos – «talento» para cimentar amizades que duraram uma vida, essa qualidade historicamente registada na figura da Joana, atrai-me. E há muito, depois que contei a «estória» das visitas do José Estêvão à grande senhora (vide www.senosfonseca.com, clicando na janela Factos & História, em Palheiro de José Estêvão), apetece-me dar um retrato mais preciso da Joana.  

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Às vezes não chega, a um indígena, ser maluco. Para sê-lo é preciso parecê-lo. Ora a Joana Rosa de Jesus «a Maluca» não só o não era, como nem o parecia. A alcunha, coitada, ter-lhe ia vindo de ter casado com um dos primeiros foreiros do Senhor de Vagos, o pastor José Domingos da Graça «o Maluco».

A Rosa de Jesus era uma «Gramata». Nascida em Ílhavo, em 1788, era originária da família dos Gramatas, lá do Arnal, cujo avô, o Tomé Francisco, fora um dos primeiros foreiros que nos fins do século XVII se teria vindo estabelecer para aqueles terrenos arenosos que bordejavam o canal que ia lá para os lados de Mira. Ora o certo é que o Tomé Francisco tomou o nome de «Gramata», que era o nome por que eram conhecidos aqueles terrenos lodacentos que tinham vindo lá das entranhas da ria, e onde apenas parecia capaz de nascer e se desenvolver, uma erva marinha, conhecida por gramata: «diz-se a qual mó do meio produz junco e hoje pela continuação da maré salgada já o não produz, mas sim erva que chamam de “gramata”, apetitoso manjar para o gado».

Em 1883, a Joana «Gramata» e o marido, «o Maluco», que teria vindo lá do sul de Vagos, fazem o aforamento da «Quinta do Feijão», local preciso onde hoje se encontra situada a Capela da Sr.ª da Encarnação (aqui mesmo exactamente no «azimute» da minha proa).

A Joana, já então conhecida por Joana «Maluca», cedo ficará viúva. Não sem ter botado à vida nove rebentos, que lhe darão a bonita prole de 66 netos. Viúva aos 48 anos, irá casar com António Sousa Pata.

Não teria sido fácil ao José da Graça convencer a sogra a dar-lhe a filha. «A Gramata», já gente de sinal, olhava para o rapaz, pastor das castras enfezadas e raquíticas, e tentava inquirir o que «ele» teria de «seu» ou dos seus, tanto fazia.

Ora, numa noite estrelada enquanto fixava as luzinhas lá no alto acudiu ao José – rapaz esperto – uma ideia que logo ao outro dia botou em prática. E enquanto na eira da «Gramata» ia respondendo aos «quesitos» da mãe de Joana, não esteve com meias medidas: – colhendo na mão umas espigas de trigo, atirou à «Gramata»: 

- Olhe Sr.ª amiga: eu pareço um pelintra a vadiar aqui com o gado por estes areais. Mas não colha o gato pela cor do pêlo. Que a casa de meu pai é tão abastada e tão rica, que à noite há tantas luzes a iluminá-la, como grãos que tenho aqui entre mãos». 

E logo ali, a convencida e crédula sogra, aprazou casório.

A Joana, embora de perfil varonil em que uma teimosa barba lhe cobria o queixo realçando-lhe o tipo, era, contudo, uma aprazível e simpática mulheraça. Mulher ridente, faladeira e sempre bem disposta, fumava viciosa e deleitosamente charutos, que amigos e comensais, da sua lauta e farta mesa, lhe faziam oferta, mantendo o stock sempre abastado.

Abria com regozijo a porta aos políticos, recebendo amiúde José Estêvão que se fazia acompanhar pelos ilustres que o vinham visitar ao seu palheiro da Costa Nova. Indo de barca, passava a ria, atracando na mota da passagem, em terrenos que confinavam com as terras da Joana.

Mulher activa, empreendedora, boa na arte de negociar, rapidamente a sua casa emerge como das mais poderosas e ricas da região. Benfeitora, é ela que cede os terrenos da sua quinta onde se virá a instalar a capela da Sr.ª da Maluca, dotando-a com algumas imagens de oráculos, devotos, que amigos de Aveiro lhe teriam oferecido.

A Joana «Maluca» virá a falecer em 28 de Janeiro de 1878.




sábado, julho 10, 2021

 




Maria de Jesus, a « PINTA-CRISTOS»


A Maria de Jesus Neves, universalmente conhecida, em Ílhavo, por «Maria Pinta-Cristos» era uma boa mulher. 

A Maria de Jesus, costumeira artista, reparadora de imagens de oragos, espécie de cirurgiã esteta-ortopédica, graças a uma invulgar habilidade, tinha solução para conserto de toda e qualquer maleita, que, por desmazelo dos fiéis, ou por maladia vinda com o passar do tempo, atacasse «aqueles» em quem, habitualmente, se procurava remédio para as humanas desditas. Os “Santos”, afinal , também adoeciam pois, coitados, só faziam milagres em casa alheia. Para isso, os clérigos da região – e até os de fora –, procuravam a curadeira de santo, pois como veremos, a fama da Maria ultrapassou as fronteiras da nossa santa terrinha. Maior  fama que a dela, só conheci a do «Ceguinho» …

A Maria «Pinta-Cristos» tinha o seu “atelier” no Beco que hoje ostenta o nome da Prof. Maria Vidal - que ao tempo ainda nem sequer ali morava –, mesmo em frente à casa dos meus avós. Vão já lá muito mais que uma dúzia de mãos, de anos. Miúdo, ia sentar-me no rebate de granito que dava para o ambulatório de Santo, seguindo com curiosidade as suas «intervenções»: braços, pernas, cabeleiras, retoque ,de narizes, acentuar das bocas celestiais, e até, novo design para a reparação dos mantos dos oragos; todos (e tudo) …que entrava envelhecido, e ou alquebrado, saía das suas mãos, pronto para, se esses mundanismos já então se realizassem, concorrer a uma quaisquer Sky Fashion .

Era muito simpática, a Maria de Jesus; baixota, bonacheirona, sempre muito escofenada, sempre a bulir, cara marota muito redondinha de onde se salientavam duas maçãs camboesas, muito vermelhuscas a adoçar-lhe o rosto, a Maria dava indícios de ter sido, em nova, uma muito bonita e atraente mulher. Sempre de xaile preto, impecavelmente assente, maleta na mão onde levava os santinhos para despacho, ao recoveiro, lá ia muito afogueada e cumprimentadeira, num passinho miúdo,rápido e ágil, rua abaixo, lá para as bandas da praça. 

Mas de onde teria vindo a sua fama, badalada de paróquia em paróquia?

Vamos lá contar o que ouvimos  num seroar daqueles tempos,  no intervalo da reza em noite de trovoada, enquanto, sentados em cima dos cobertores de papa, luzes apagadas, apenas iluminados por um daqueles candeeiros de petróleo de chama bruxuleante e mortiça, se rogava protecção a Stª Bárbara para a trabuzana que ia lá fora, enquanto na lareira  se punham a arder raminhos de alecrim retirados ao bouquet pascal, muito próprios - entendia-se - para protecção a raios e coriscos.        

Um certo dia apareceu à Maria «Pinta-Cristos», o cónego Justino Belchior, da Murtosa, trazendo uma Srª do Rosário que, apresentava, forte traumatismo craniano, com mossa avultada na cabeça e sem cabeleira (própria) de “senhora dos céus”.

O Pª Justino deixou a santa ao cuidado da Maria que, desembaraçada, logo encontrou meio de fazer uma cranioplastia, para o efeito enxertando uma batata (jovem) na cabeça da dita Santa, fixando a dita batata na terracota, presa por fios barrentos. Depois de tudo bem amaciado, a Maria reconstituiu,   alourou e encaracolou, os fartos e caídos cabelos da Senhora, sobre os quais depositou a aura, que pareceu rebrilhar,ainda mais.

Foi a Santa colocada na Igreja, onde os devotos fiéis admiraram e elogiaram o trabalho dos liftings levados a cabo pela reputada esteticista.

Era o tempo em que, acabadas as sementeiras do batatal, começava a despontar das areias revolvidas por suado empenho daquelas gentes da beira ria, um viço verde-escuro sobre o qual se faziam opinativas previsões. À cautela visitavam-se os Santos  a pedir-lhes  intervenção para que a época fosse frutuosa. Bem diferente da do ano anterior. Não se augurava nada de muito bom. Os terrenos continuavam encharcados pelo salitre  da ria e, por mais moliço e escasso com que se emprenhassem, por maior revolto que neles se obrasse, parecia que aqueles areais sujos do lodaçal, não tinham  maneira de se tornarem ventre frutuoso.

Ora um belo dia, o sacristão, intrigado, veio alertar o beato de que ali, mesmo debaixo do tecto, havia milagre : da cabeça aureolada da Srª da Conceição, despertava viçoso pé de batatal que, dia a dia, parecia medrar cada vez com mais viço. O abade Justino Belchior logo foi inquirir. Não foi preciso sherlockolmear muito para se aperceber da marosca. Tipo esperto, sabedor que, para a produção de fé, um simples acontecimento estranho tem mais efeito que mil sermonários, anteviu, ali, um belo instrumento para dela dar testemunho. Por outro lado, logo entreviu rara oportunidade para tirar os seus proveitos, obter alguma prebenda, para quem, como ele, simples abade da paróquia, tinha levado uma vida a pregar com os bolsos sempre vazios, batina ensebada e polida de uso continuado, a exalçar ser dos pobres  o reino dos céus. O que, convenhamos, é boa prática a recomendar, mas má para uso próprio.   

É certo que ao tempo ainda não havia internet. Mas soprado de boca em boca, o milagre, as gentes começaram a acorrer à igreja, para ver, com olhos de ver ,o  anúncio, do que, diziam ser, sinais anunciadores de um bom ano de colheita farta

Logo o interesseiro Belchior percebeu que estava ali o seu S.Martinho. O  S.Martinho do passal paroquial. E se o pensou, logo o insinuou

- Que sim senhor, mas que era aconselhável - dizia - trazerem umas dádivas para melhor conquistar a mandadora dos sinais. Que nisto de santo, há uns certos, mais interesseiros.

E o certo é que por coincidência, ou outra coisa que,é bem certo,  que as háy…hay!…   o desenvolvimento da palha do batatal  junto da auréola da Santa,  prenunciava colheita como há muito se não via. Foi um carregar para ofertar à Senhora. Sacadas de milho e batatas, frangos, carninha do bácoro recentemente esganiçado, esmolna em moeda de lei. Enfim, tudo o sacrista recolhia, animoso, diligente nos incitamentos e prédicas, esperando que, o Sr. Abade, se lembrasse, neste fastígio de fartura, do seu acólito.

O celeiro encheu; e até verteu fora, dando para ir ao mercado, a Estarreja, para mercadejar o excesso .E desse modo, recolher o suficiente para comprar uns tarecos lá para a casa do pobre cura, que, coitado, também era filho de cristãos, e que, há muito, ansiava por uma sedia onde pudesse abusacar-se, finda a jorna espiritual, na sombra do seiceiro  do passal.

Época feita, apurada a colheita, o povo andava cada vez mais chançudo na sua Senhora; e achava que Lhe deveria ser grato. Por isso, sempre que ia de visita, levava-lhe espórtula  que deixava na caixa colocada para tal fim, aos pés da santa.

Espantoso foi que, terminada a colheita, de um dia para o outro, como que por milagre, o batatal na cabeça da santa, terá desaparecido. O astuto Belchior, em noite azada, tinha extirpado o caule que grassava por entre o cabelame da Santa, e tudo tinha voltado ao normal.

Triste andava o sacrista. Acabara-se o milagre, e para o ano as coisas não prometiam repetição,. Que nisto de milagres, não se pode ser mãos largas e torná-los banais.

E um dia resolveu queixar-se ao cónego:

- Pois é Sr. Abade... Não há bem que sempre dure. Os bons tempos de fartura foram-se. Para o ano temos de voltar aos caldinhos leves de conduto.

- OH! homem indigno do convívio com a santidade!.... descansa, homem - retorque o P. Justino Belchior; fitando a cara do azabumbado acólito - para  o ano o milagre vai ser o do milhal. Prepara o celeiro – disse maroto o abade Belchior,...

Que, nos entretantos, já  tinha vindo a «Íbalho», acertar com a Maria «Pinta-Cristos»– não fosse longa a lista de espera!–a operação da trepanação a levar a efeito, na estação do defeso, que consistiria a em substituir a batata por uns grãos de milho ,envoltos em cera de grilo, muito apropriada para derreter no momento certo .

A Maria de Jesus  nem percebeu as razões para operação tão esquisita e  até nem alcançou das razões porque é que o Padre Belchior, sempre tão forreta, lhe pagou o trabalhinho a dobrar. E que, ainda por cima, lhe deixou um saco de avantajadas batatinhas, tão agradecido se mostrou pelo bom trabalhinho feito pela «Pinta-Cristos».

O certo é que, fosse no segredo dos confessionários ,quebrado, fosse em algum parlatório em fim de lauta jantarada, o certo é que a manha foi ao conhecimento de outros colegas do abade Justino Belchior.

E à Maria «Pinta Cristos» começaram a chegar os pedidos mais esquisitos para delicadas intervenções de enxerto cranianas, todas com uma particularidade comum: ser coisa de grelo.

  

            Senos da Fonseca



terça-feira, julho 06, 2021

 

UMA MAIS QUE MERECIDA, CONDECORAÇÂO

Mário Sacramento (1920-1969)

Mário Sacramento nasceu em Ílhavo, em 7 de Julho de 1920, na casa da sua família, ali ao Largo do Oitão.

Filho de Artur Sacramento, comissário de bordo na Marinha Mercante (homem muito culto, possuidor de um grande carácter e sentido de vida, fi- gura altruísta e solidária – será um dos primeiros Comandantes dos Bombeiros Voluntários de Ílhavo– e de Rita Sarmento, cuja família vinha de pesado tri- buto pago nas lutas Liberais de 1828. O convívio com esta família materna, muito próxima de figuras proeminentes nas lutas por uma nova ordem de liberdade, de igualdade e fraternidade que tinham ido beber à Revolução Francesa (de onde se destaca o tribuno José Estêvão cuja esposa era madrinha de D. Rita Sarmento), teria tido, certamente, influência no jovem Mário que, habitualmente, passava grandes temporadas em casa da família materna. Como ele mesmo recorda no seu « Ave Aveiro »:

“Sob os lampiões dos Arcos, Rua dos Mercadores abaixo, vogavam bateiras conduzindo os teus íncolas (ia a dizer os teus doges) às soleiras das portas. E eu batia palmas de menino com brinquedo, na janela da avó. Casa escura, com mofo a rato, olhares do José Estêvão no louceiro antigo, um opúsculo do Marques Gomes a dizer-me que um tio de antanho fora decapitado pelo D. Miguel, grades de pimpons nas sacadas de pedra antiga — em que um dia entalei a cabeça (para retomar essa tradição, quem sabe?), tendo sido liberto, depois de muito suor e ferros, por um serralheiro do Mindelo”..

Mário Sacramento aprende, autodidata, o Esperanto. Língua que então se sonhava vir a ser, universal :- “um só povo ,uma só língua “. Jovem ainda, logo em Ílhavo, cria, na AHBVI, uma turma aberta para divulgação da mes- ma. O Esperanto, acreditava M.S. seria a antecâmara para a união dos povos sob o fim último das teorias marxistas da igualdade, de direitos e oportunidades, que já então lhe despertavam a atenção e o empenho.

O despertar da cultura na viragem do século XIX 333

Em 1938 (dez de Junho) a PIDE prende-o pela primeira vez, ao mesmo tempo que proíbe a publicação e circulação da revista «A Voz Académica». Tinha, tão só, dezassete anos. A prática, o empenho e aceitação das teses vertidas tão precocemente, começavam a ser perigosas –já! - e a impor- tunar o regime salazarista, que antevia com perspicácia - diga-se - ali se encontrar um potencial e vertido subversor do regime.

Contrariado na sua vocação pelos pais, que o não deixam seguir letras, Mário Sacramento vai estudar Medicina para Coimbra, e completar, depois em Lisboa (1946), o curso. Tempo para aderir ao M.U.D juvenil, movimento de unidade cujo fim era o derrube do regime fascista.

A sua vocação para a escrita salienta-se em 1945, quando apresenta nos Jogos Florais da Universidade de Coimbra, o livro «Eça de Queiroz –Uma Estética de Ironia», distinguido desde logo com o prémio Oliveira Martins. Neste trabalho, Mário Sacramento segue o percurso de Eça (autor a que o ligavam afectos familiares próximos e exultação pelo exemplo do avô de Eça, Conselheiro Queiroz que, em 1828, levantara o povo de Aveiro(e do País) pela afirmação suprema da Liberdade),procurando dilucidar sobre a influência que nele teria tido a vivência de Coimbra – cadinho onde se fundem ideo- logias e novos rumos do pensamento– e assim, descobrir o genial escritor realista, “impressionado execravelmente com o que encontra em Lisboa

Terminado o curso, M.S. vem exercer a profissão para Ílhavo - onde de imediato tem casos clínicos notáveis que o fazem sobressair da mediania ins- talada – abrindo consultório na Rua José Estêvão onde passa a viver com a família. O consultório transforma-se em local privilegiado servindo de ponto de reunião a políticos do contra, reviralhistas e ou revolucionários. Por isso sempre atentamente debaixo dos olhares da PIDE que, amiúde, vi- gia – escancaradamente - os pontos de acesso ao mesmo. Ponto contudo de referência, como local de atendimento para os mais necessitados que, gra- ciosamente – e tantas vezes ainda reconfortados com alguns tostões no bolso para a compra dos medicamentos – dali saíam bem agradecidos, reconsti- tuídos física e materialmente .E que, por vias disso, o irão glorificar, ao atribuir-lhe oepítetode«MédicodosPobres»,comopassaaserconhecido em Ìlhavo.

O ano de 1953 leva-o de novo aos calabouços políticos. Lúgubres inte- riores onde irá sofrer as sevícias (que deixariam rasto...) da tortura do sono, ou do plantão em «estátua», com que habitualmente o regime fascista sa- lazarista mimoseia os seus opositores mais perigosos. Responde às agres- sões, enviando à família escritos cheios de ironia, sabendo de antemão que

334 Ílhavo | Ensaio Monográfico

a primeira leitura dos ditos, será a dos esbirros. E assim os aguilhoa. Resiste, física, anímica e ironicamente, desesperando-os, bandarilhando-os, como se faz à besta cega.

E, na cela, apesar de lhe chegarem a negar a simples consulta de livros, elabora um trabalho intitulado “Fernando Pessoa -Poeta da Hora Absurda” que será publicado em 1958. Um trabalho de que, mais tarde disse, gostaria de refazer, dadas as condições em que foi elaborado. Nele leva-nos à descober- ta da essência comum entre o poeta e os heterónimos - embora assuma se- rem individualidades diferentes – apontando-nos a concepção geral da vida do vate : um beco sem saída!

Em Ílhavo os «próceres» locais impedem-no de trabalhar na Misericórdia, tentando coartar-lhe a carreira profissional. As denúncias de colegas e as maledicências,empurram-no para o exercício médico, em Aveiro (1955),onde se irá estabelecer em consultório aberto, mesmo em frente do café Trianon.

Em 1955, volta a ser levado para a António Maria Cardoso. O então ins- pector chefe dos esbirros pidescos, o grotesco Sachetti (cujas origens se si- tuam em Aveiro), sabe do perigo que representa Mário Sacramento. Ordena por essa avaliação a sua vigília, dia e de noite, atribuindo-lhe uma perigosi- dade preocupante para o regime.

Isso não impede M.S. de ser o obreiro que torna possível, em 1957, o Io Congresso Republicano, de que foi o Secretário Geral.

Em 1959 publica «Ensaios de Domingo» e inicia com Óscar Lopes -in- telectual de quem ideologicamente se manterá muito perto – uma colaboração literária no jornal «O Comércio do Porto».

Em 1961, como bolseiro do Estado Francês, vai para Paris. No Hospital de St. Antoine tira a especialidade de gastroenterologia, apesar de gravemente doente. (pois que durante a estadia – por deficiência alimentar e ou excesso de labor - contrai a tuberculose).

Regressa em 1962, para voltar a ser preso, de novo, ainda nesse ano.

Em 1966, assume-se crítico literário, colaborando no caderno de Literatura do «Diário de Lisboa”. E também na revista «Seara Nova». Nesta colaboração destaca-se o debate sobre a procura de uma “Estética Neo- Realista» ,com a inventariação dos autores nacionais que a perseguem. Era importante para Mário Sacramento encontrar nas diversas propostas ar- tísticas –poesia,teatro,novela, romance, ou até na literatura juvenil (e ou fe- minina)- formas de expressão da arte. Um retrato das preocupações so- ciais, um conflituar com a realidade, um assumir objectivo de uma vivência

O despertar da cultura na viragem do século XIX 335

“ideo-sensível” na posição social dos autores na neo-revolução (que teria de ser inevitável).

Será em 1967 que publicará “Fernando Namora Obra e o Homem” logo seguido de “Há uma Estética de Ironia?”, em 1968.

O Concilio Vaticano II com as suas conclusões e indicações que pareciam definir uma evolução no pensamento da Igreja, mais aberto e mais preo- cupado, mais suportável para o ateu assumido, levam Mário Sacramento a procurar, nas páginas do jornal “O Litoral”, interlocutores para com eles estabelecer um diálogo com o «credo», numa procura de pontos e empe- nhamento comuns, ”apesar” de tudo. Artigos que, mais tarde – já depois da sua morte, em 1971- seriam reunidos em volume publicado sob o título “Frátia –Dilogo com os Católicos”.

Morre em 1969, nas vésperas do 2o Congresso Republicano de que, uma vez mais, foi o principal obreiro – o fogo que ateou a labareda no requeri- mento, ainda por ele redigido. Que se viria a realizar sob o patrocínio do seu espírito, permanentemente presente do primeiro ao ultimo instante, no “Teatro Aveirense”, onde teve lugar .

Salazar, é certo, estava moribundo. Politicamente morto. Mário Sacramento já não veria a queda do regime para a qual tinha sido um dos mais férreos contribuintes, um dos mais entusiastas e dos mais lúcidos, combatentes. Infatigável e persistentemente activista, ousou lutar con- tra tudo quanto de retrógrado, representava e continha, o caduco regime salazarista.

Mário Sacramento adivinhou na sua “Carta Testamento”, redigida em Abril de 1957, onde lúcida e certeiramente faz uma premonição rigorosa do tempo sobrante que, certamente, lhe iria faltar para ver a queda do regime salazarento:

Não viu o que quis; mas quis o que viu” disse-nos nessa missiva em que, dum modo terno mas incisivo, nos lança um aviso:

“Façam um Mundo melhor! Não me façam voltar cá”



  67.   Poemas de Abril Abril: síntese inalcançável Já não há palavras  Que floresçam Abril,  Nem já há lágrima...