sexta-feira, setembro 30, 2022

 LENDA DA TERRA DA LÂMPADA 

Há muitos... muitos anos, tantos que já ninguém o sabe ao certo, aconteceu em Ílhavo uma estória que virou lenda. 

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Era uma vez... uma terra que em menina foi surrada pelo mar que  sucumbia aos seus  pés. E que depois, já crescida, viu aquele amainar, aprisionado pelos braços da sereia lagunar. Irriquieta e fugidia logo tentou escapulir-se, obrigando as suas gentes, pescadores da borda, a atravessar o prado já então a revessar de verde, que se estendia, qual tapete macio, para os levar à Costa-Nova em demanda da sardinha. Que, tal como a mulher, se quer rechonchuda e pequenina. Como todo o gentio do mar, pescadores ou mareantes, sempre os ílhavos foram mais tementes a Deus que a esse cão danado – o mar! Por vezes amuado de tanta ousadia, enraivado,  ronrona ameaçador, desfeito em ondas espúmeas a embater contra os frágeis barquitos em que aqueles ganham o pão para os seus. Nada que os apouquentem ... ou sequer aporrinhem.

Era nesses momentos dantescos que o arrais Ançã vociferava chacoteava : Ah!... danado, se fosses d’aguardente emborcava-te só de um trago! 

E logo o mar parecendo amedrontado com o desafio do arrais gigante, alquebrava e, às arrecuas, tolhido, desembestava a tramontana, serenando. Mas com Deus não se brinca, ou ofende, e os ílhavos, criaturas de fé devota, muito embora confiassem nos seus arrais – que não havia outros de tal ògalha por essa costa abaixo –, quando, chegados os momentos de aflição –que os havia...havia–, faziam as suas promessas ao S. Pedro. Orago da sua devoção que, atento na Igreja da santa terrinha, no altar, velava pelas suas vidas. Acreditavam piamente no dito.... 

Apesar da vila ser, naqueles tempos idos, aconchegada e pequena, era escufenada, tendo já desde os nossos primeiros reis uma igreja real, vistosa e imponente,  conferindo-lhe merecido destaque. Os pescadores e famílias, principalmente o mulherio, eram gentio muito religioso, comparecendo diariamente à missa pelas matinas, levando consigo uma esmolna que entregavam às almas para protecção dos seus. Esta igreja desde muito cedo passou a ser das mais importantes e mais ricas de toda a região de Aveiro, exibindo valiosas imagens de Santos em terracota, adornada de ricas alfaias de ourivesaria, muito faladas e, por isso, também muito cobiçadas. De tal modo que, aquando das invasões francesas, os soldados do general Junot a esbulharam das suas riquezas para assim recomporem o seu cofre depauperado. 

Conta-se então, que só uma rica custódia de ouro – que hoje ainda existe – e uma valiosíssima lâmpada (vistoso e artístico candeeiro de prata que descia do tecto alumiando bruxuleante a capela do Santíssimo) se salvaram, porque um tal Malaquias – o Raposo –, antecipando-se à soldadesca francesa, as encapotou na batina, levando-as consigo, tendo-as  enterrado. Só passados muitos anos, vendo que o perigo tinha então já passado, resolveu desenterrá-las para as entregar ao prior. Que muito agradecido pela esperteza do acólito, logo mandou preparar grande festa para celebrar o acontecimento do retorno das valiosas peças, à igreja. Uma festa com direito a pregão prodigamente trombeteado pelos párocos das redondezas que, do alto dos seus púlpitos, prometiam foguetório de arromba, procissão solene,  testemunha da virtude da hora, a que não faltaria o ignoto dominicano frei Elias, cuja voz tonante faria ribombar os Evangelhos mais as ameaças da Santa Inquisição. Alevantando abundosas tremuras em todos aqueles que, pecando, andariam tresmalhados, mais perto de trambolhão no caldeiro onde frigiam as almas penadas, do que no azul celeste do paraíso – promessa habitual do sermonário – por onde ricos e pobres se passeiam, irmanados na dádiva de graças ao Altíssimo. Vá-se lá acreditar. Mas nestas coisas do alto mais vale precaver do que ver. 

Tanto alvoroço faria acorrer à vila gentiaga estranja para render tributo aos tesouros que voltavam a arejo para regalo dos fiéis crentes, aboletados por toda a vila em palheiro de compadre, de amigo ou de simples conhecido, tudo gente de boa crença e fulanagem. Andara o povo em grande folgança, a doidejar havia já três dias, com visita obrigatória à esplêndida igreja que, aperaltada com vestes de gala, mostrava, envaidada, as relíquias a quantos as quisessem admirar. Um ror de gente... 

No final da festarola era já segunda-feira. Dia para estas gentes voltarem à labuta diária depois de reconfortadas com a missa da madrugada. Ainda os galos cucuritavam nos poleiros, já na igreja restavam abusacadas  algumas beatas que, ouvida a missa, ali ficaram a fazer as suas rezas e, assim palrando, esperavam pela missa seguinte, da manhã; duas sempre reconfortavam mais do que uma só. 

Como eram mulheres de palanfrório, daquelas que todas as tardinhas vinham ao rebate contar as últimas, aproveitavam aqueles momentos para pôr a conversa em dia, pois que a festança as afastara do convívio diário da má língua, onde as bocas baladeiras falavam disto e daquilo... desta ou daquela, de toda a gentalha do sítio; o tempo dava para isso.Era tanto que ainda crescia para rezar um Pai Nosso e três Avé Marias. 

— Oi... chopa! - olha para quem entrou..., disse às tantas a Maria Calatró da Malhada, interrompendo a conversa.Acto contínuo virando-se para a Josefa do Arnal, ali  engrunhada, enxerida,encapuchada no xaile de burel que lhe cobria a cabeça ,como se o frio da manhã a tivesse entorpecido; ao tempo em que indicava dois indivíduos que, de escada na mão, com umas cordas aos ombros, tinham entrado na igreja onde ainda apenas a luz mortiça das velas e as das lamparinas da majestosa lâmpada quebravam o negrume. Tinham parado debaixo da mesma, assumindo um ar de consternação e espanto, dizendo em voz alta um para o outro, de modo a que as beatas ouvissem: 

– Ora vai-te... que raio de negócio fizemos... Quem é que a há-de limpar por semelhante preço?!..., dizia o mais baixote, parecendo arrependido com o negócio.

– Bem... já que justamos o preço, agora não há nada a fazer... Toca a baixá-la que se faz tarde..., diz o outro, homem de barba cerrada, de aspeito desconfiado, olhar de aspe decidido a saltar sobre a presa, ou fugir lesta, se inimigo se abeirasse. 

E se melhor o disse, mais rápido o fez: pondo mãos à obra, subiu a escada e arriou a lâmpada perante os olhares assarapolhados da Josefa e amigas, logo a metendo num saco saiu tranquilamente da igreja, de escada às costas...sobraçando o saco ao ombro. 

– Estais a ver... chopas, como o Senhor prior manda tratar das coisas da Igreja para esta luzir ?!..., diz a Josefa Carqueja para a Calatró.. e agora inda hás-de dizer que o home é um mancatufe que nem p’rás novenas serve. És uma mal dizente...raios! Que ainda hás-de ir estorricar no fundão do inferno... morrendas se não falendas, vade retro satanás. 

Tocadas as sete badaladas da manhã, o prior lá veio com o sacristão para rezar a segunda missa do dia. 

Vinha ofegante o abade.Face espaçosa onde ressaiam as bochechas avermelhadas que uns diziam ser do afã do ministério, mas que outras, maldosas, diziam ser fruto das barrigadas das caçoilas do carneiro avinhado, ou de se alambazar – à farta! – com a chispalhada que servia de lastro às enguias de escabeche, tudo regado por tinto farto vindo das bairradas, que lhe provocava aziumados borbotões. O cabeção, manchado pelas manápulas pouco asseadas a tentarem aliviar o nó de enforcado, inchava-lhe o pescoço, exsudando-lhe os refegos que serviam de caneja para o suor que escorria para a sebada sotaina ruça. 

É então que a Calatró, alvoroçada e já desconfiada de tanto cuidado do prior, pois no seu entender não era «arrais» p’ra tão grande barca, lhe salta ao caminho e diz: 

– Ó ó!... senhor Abade... tanta pressa para quê (?!) santo Deus...a  limpeza podia esperar mais um poiquinho e acabar-se a festa com a nossa lâmpada, cá!... 

– Que limpeza estás tu a dizer?... Ó mulher!...E de que lâmpada... estás para aí a falar?!, resfolga o padre João dos Mártires. 

– A que o senhor Prior mandou alimpar, hom’essa!, que estes olhos que o chão hão-de comer, viram ali... e «q’uinda» agora a levaram, a mando de V. Reverência– responde a Calatró apontando para o tecto vazio da igreja. 

E foi só então, que o Prior olhou para o sítio onde era suposto estar a lâmpada. Vendo-o vazio, de olhos esbugalhados, gritou: 

— Ah ladrões. Ah cães!...que me roubaram, grita o aporrinhado abade, vermelho como um pilado da praia, logo se arriando das pernas, caindo para o lado... a bufar em apopléctico estertor. 

— Ide depressa buscar auga da benta... que o pobre homem vai-se, grita a Luísa dos Sete Carris para as restantes, ao tempo em que amparava o desfalecido abade nos seus braços de pimpona pescadeira. 

— Que vá... olhendas!... É como a lâmpada, assome-se que é um ar que lhe deu– logo diz a Calatró que não perdoava ao prior tê-la um dia mandado para casa onde, disse, tinha mais que fazer que estar ali sentada no rebate da igreja à espera da missa da madrugada. 

E logo a Calatró, acrescenta : 

— Q’uinté tenho mais pena da lâmpada que do corvo que não faz falta aos filhos, que os não tem, referindo-se ao pobre abade que, pouco a pouco, depois de rebaptizado pela Josefa, começava a dar acordo de si. Uns gorgolhões de cachaça que o sacrista tinha ido, lesto, buscar ao passal, acabaram por recompor o pobre diabo. 

— Ai!... filhas..., diz a Luísa, desta vez nem o Raposo nos vale!!! 

Em Ílhavo, durante três dias, os sinos dobraram afinados por ordem do prior João dos Mártires; tantos quantos os da festa. 

A lâmpada, essa, levada pelos larápios, levou um sumiço... 

...até hoje. 

Senos da Fonseca

quarta-feira, setembro 28, 2022

                                                                              
 A roda nunca pára. Nunca!


Conto os anos por cada mês de Setembro, de cada um deles.

Ligo pouco à data de aniversário, até porque começa com ela o ano que pretendo levar até ao fim. Eu quero. Ainda e sempre.

Mas chegado Setembro começa como que o desencanto, a noção de que rapidamente este (ano) já se foi…

Daqui ao fim é um tiro.

A passagem do tempo é, por assim dizer, pelo menos para mim, relativa. Ou melhor a velocidade com que se esgota, não tem (para mim) a mesma escala: - suportável até este período, e inclementemente apressada, a partir de agora.

O tempo (meteorológico) sente-se de repente, parece também mudar. A cor empalidece, os finais do dia são tristonhos, e isso causa claro mal-estar. O banquete que me chegava deste azul da ria visto da minha janela parece estar já nas arrumações. No levantar da festa.

O sol inclina-se cedo para o ocaso, a fragrância da maresia dilui-se no resfriado da noite e no ar perpassa um fluido de melancolia, e até de saudade. De nós…




A beleza onde diariamente dessedentava a intranquilidade de espírito de tantos afazeres, languesce, definha. Paira no ar um certo torpor espreguiçado, esmalmado. Uma promessa de voltar um dia destes. Volta de certeza. Nós é que poderemos já aqui não estar.

Inquieto, dorido, penso nesta dança corrida que é a vida humana. Começa de quê e para quê?

Não sei. Sei contudo apenas, e com certeza, onde acaba. Na dança (da vida) as gerações sucedem-se. Ela, a mangana, mantém-se.

A vida é um carrossel. Gira entre montanhas e profundezas. Entramos a rir; saímos descorçoados por a viagem ter demorado tão pouco

Por vezes temos a sensação de parar nessa dança das voltas. Pura ilusão. Estamos redemoinhando apenas; a roda continua a girar, e nós corremos dentro dela. Mesmo parados estamos a correr no tempo. Nunca para trás. Nunca! Sempre para a frente.


Senos da Fonseca

(foto Ana Gomes)

segunda-feira, setembro 26, 2022






AINDA O MMI.


E porque andamos em maré de falar do MMI, repesquei este texto - vejam lá! – de 2007, onde abordei o caminho ínvio seguido por uma nova leitura(não errada,mas claramente incompleta, começando pelo fim)da história dos “ílhavos”.

Não fará mal lembrar que outros nunca se acomodaram à indiferença do “olhar” para o nosso historial: uns por ignorância; outros por estratégia politiqueira; outros porque estar calado ,parece bem.... .

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Há mais história- muita! - para além do bacalhau.....

Volto a esta matéria. Veio até mim um coro de indignação - provindo de vários quadrantes -provocados pela abordagem de Ribau Esteves – cataménio monstruoso - nos setenta anos do Museu .De vez em quando as pessoas sentem o insulto e a menoridade de tratamento com que os «ílhavos» são brindados por esta personagem.

Deixemos o lixo …-----------------------------------------------------------------------------------

O livro «Museu com Memória» que elogiei no Blog anterior –ponto final !- contém abordagens que ,no meu entender, necessitam de alguma fixação.

No final do livro, numa espécie de ensaio antropológico ,Elsa Peralta produz um estudo de cariz académico ,ao principio demasiadamente pesado - tantas são as citações evocadas em procura de uma roupagem para o Museu de Ílhavo- peso que à medida que o ensaio se desenvolve, é aliviado .Não sei se muitos leitores o irão levar até ao fim, Seria bom.

Algo me justifica uma observação .

A prof. Elsa insiste, um pouco, na história das cisões, dissidências, conflitos representacionais ,contidas na história do Museu, o que me parecem considerações um pouco excessivas.

Assinala o que lhe parece ser um pouco de incongruência entre o Rocha Madahil que tinha protagonizado uma imagem de Ílhavo enquanto comunidade do mar - a história mal contada do brasão –e a sua proposta de uma exposição de uma panóplia de temas ,desde a etnografia á cerâmica, passando pelas artes e pela industrias locais ,para a celebração da terra e das suas gentes. Estávamos, pois, longe de um museu marítimo, diz-nos .

Ora eu penso –e não tenho aqui o espaço para o justificar –que esta leitura pode ter um pouco de imprecisão, provavelmente consequência do entendimento do que significava ,naquele tempo ,a memória marítima, a guardar .Qual era, pois?

Em 1922,altura em que Madahil propôs, nem sempre com acerto e lógica ,o Brasão, ou em 1933 ,altura em que define as bases para o Museu ,por exemplo, não haveria ainda qualquer memória para guardar da Faina Maior, o projecto museológico em que assenta, hoje, o Museu , fazendo da mesma a memória privilegiada a salvaguardar. Porque essa faina –sublinhe-se -mal tinha(?!), naquelas datas ,ainda começado .E nem se entenderia ao tempo a relevância da nossa posição na mesma –ou até se escamoteasse a identificação com a mesma –por razões que seria interessante abordar, mas não aqui. Falo da parte da Faina Maior que ainda não foi abordada, e que inevitavelmente um dia o será ….

Na altura, a questão era, em termos de memória : dez séculos de laguna ; três séculos a desbravar novas terras, inserindo gentes completamente diferentes, no ser e no modo de estar, aqui chegadas; três séculos de migração em condições singulares, que nos identificaram como individualidades diferenciadas das restantes; três séculos de actividade numa industria em que a arte era a vocação que a distinguia, entre todas. E séculos de individualidade no trajo, de uma riqueza e diversidade notáveis, que tinham sido assinaladas no século anterior, e ainda presentes ao tempo.


Que escolha fazer ,com tudo isto ?Essa era a questão.


A preponderância de João Carlos ,e do seu pendor artístico, ou da identidade com os ícones glorificados, na altura, toda gente da borda (Thomé Ronca , Ançã e outros), eram as compreensões sobre o principal ,a que se lhes juntava a memória do traje.

Quando na verdade ,Ana Maria Lopes, na sequência de «À glória desta Faina», indica que o caminho a seguir passaria por o museu poder e dever estar melhor representado no sector da pesca à linha (1989),a ideia ,valorizada com o então recente desmoronamento daquela actividade, acontecido em anos anteriores, tornou mais premente a necessidade de a preservar ,embora se tenha tratado de um período passageiro da história , embora épico :- pouco mais de sessenta anos, numa história de dez séculos!... .Todos perceberam que esta opção seria a correcta, mas seria ainda mais correcta se as outras memórias pudessem caber em outros projectos complementares (por exemplo pólos museológicos). Induz-se do livro que para a escolha deste caminho,foi preponderante o condicionalismo das instalações, muito limitadas no espaço disponível, a exigir uma escolha de síntese museológica..

Mas pensaria A.M.L. que a questão etnográfica ligada á memória do traje não valeria a pena ser equacionada, pondo-a por isso, completamente de parte? Desconheço o que pensa. Até porque A.M.L será uma das ultimas pessoas existentes (locais) com conhecimentos suficientes –e seguros – de a sistematizar ,e até, de lhe dar corpo.

O que se passou depois ?!…

É a própria autora do Ensaio, Elsa Peralta, quem logo no inicio nos ensina que os museus são uma expressão ideológica da nova ordem politica .E quando a história chega por sua mão – por ela contada - a 2001 ,parece ter-se esquecido que foi isso mesmo que sucedeu., e nesse período entra por caminhos bem escusados, de glorificação A história do Museu, de facto, a partir dali, tomou então outro rumo, imposto por uma nova ordem politica –local – que toma a seu cargo a definição da especificidade da memória a guardar. Claramente uma definição que interessava ao poder politico aproveitar, mais preocupado com a divulgação externa da imagem do Museu, do que com identificação interna com as gentes locais .A inserção do Museu passou a ser mais fora do que dentro. Ao sobrevalorizar a Faina Maior ,esquecendo, praticamente, a memória da outra Faina, a Menor(?!)- só agora timidamente recuperada na exposição temporária da «Diáspora» - aventura com que nos identificámos de corpo inteiro ,ao contrário no sucedido, na Faina Maior ,onde isso não aconteceu ,nem de perto nem de longe, optou-se pelo caminho fácil ,que dá mais dividendos .A leitura da Faina Maior não compreende apenas a versão que dela temos dado. Já o disse por várias vezes. Este olhar, aqui, é a nossa leitura ,mas não é a única leitura.

A escolha está feita .Mas o percurso não está encerrado. Por muito que se pretenda fazer passar essa ideia

Voltaremos a falar disso .


Senos da Fonseca (Out 2007)





 

Aquilão


Foste cantado por Plínio

Quando vindo lá da serra

Trazias contigo

O perfume da urze e o cheiro da caruma.

Descendo, encosta abaixo , caminho ínvio

Sobrevoando a terra, apressado,

Para te vires refrescar na laguna


Exsudaste o marnoto

Fazendo-lhe correr rios de suor

Enquanto cometias o prodígio

De transformares água em flor,

E assim nascia o sal.

Mais do que um milagre.

Igual, só o vivido no natal!




Teu sufoco causticava

O moço do moliceiro

Que de vara ombreada

Percorria a auto estrada da borda

Na procura de um novo veiro.

Enquanto lá ao longe

Um maçarico sonolento ,acordava.




Fazias do mar ,lama

Levando contigo a «xávega»

A paragens que pareciam infindas.

E o arrais endoidado por ti

Seguia-te como à sereia

Sem saber se havia mar e norte

Ou se o atrevimento findava, em morte.

Senos da Fonseca


sábado, setembro 03, 2022

A minha visita ao S.Paio

Segunda –feira, mal ataviado e mal informado,procurei, contudo, não faltar ao encontro anual com o Orago.
Desamoirei o «Costa-Nova», essa beleza de bote de fragata (já agora aqui fica a informação, pois andam sempre a perguntar-me que tipo de barco é aquele), icei velas e, toque- toque – no caso bole-bole que o vento estava mareiro- em duas horas e meia atracava o “Costa Nova” ,ao cais dos pescadores, na Torreira.
A meio da singradura, na ilha da Testada descobri dois enormes bandos de flamingos  que, sossegados - tão sossegados que nem reagiram ao meu pum-pum! para ver se os fazia levantar, e assim admirar o deslumbrante espectáculo daqueles pernas longas ,rosados, flaps em baixo, a ganhar altura - procuravam a mariscada que lhes dá os salpicos da plumagem




                     

                                                                 Os flamingos


Chegado á Torreira, o foguetório estreloiçava no ar, avisando que a festa ainda ia a meio. E a procissão, também, pensei eu de que ….
Amainadas as velas, trincados os cabos, arrumadas as tralhas, fechados os paióis de proa e ré, olhei espantado para uma série de bateiras embandeiradas que se faziam ao regresso. Interrogado um amigo com quem regateei (?!), em tempos, no Moliceiro «O Ilhavense» - paz á sua alma e a quem assim ordenou o seu fim, o de apodrecer no cais da Bruxa - fui informado que a regata dos «Chinchorros» em que eu pretendia participar, hors – série, se tinha realizado no sábado.
Bem, engano por engano - um homme nasce p’ra ser enganado, se for que não se importe
                         

                                         cangas (inspiradores dos brochados do "Moliceiro")


Cangas há muitas!.... dizia o Felisberto, «Ógado da Inês «Mamalhuda» - que até de vaca era corno!......

 Decidi render de imediato visita ao S.Paio, não fosse ele levar a mal, a falta de urbanidade. Com santos, nada há como os não indispor. Zangados podem atirar cá para baixo, alguma maroteira.
A procissão, essa, já não ia no adro, pois tinha feito o seu percurso. Os andores jaziam já encanteirados dentro da igreja, ainda exuberante e prodigiosamente floridos, exibindo, ao lado, um dístico: Proibido roubar flores. Sem mais. 
Que raio, interroguei-me eu. Lá que se roube um Multibanco, eu compreendo. Mas uma flor(?)... Uma flor:-flor.... Não das outras, está bem de ver!.. Se ali estivesse a Manelinha Leite, aproveitava para afirmar com aquele ar de beata empedernida: - a onda de criminalidade já chegou ao interior dos lugares de culto, tudo por culpa desses maçons socráticos.
E foi então, aí, que vislumbrei o S.Paio.Não o o pequeno e mulato S.Paio, avinhado como uma linguiça, escurecido por tanto baptismo com tintol.

Este Orago tem uma história.

 

A Torreira (meados séc.XVIII) é um pouco mais nova que a Costa-Nova. Começou por ser um ponto do litoral onde se empregou a Xávega. Ora, conta a tradição que, um dia, na coada de uma das artes, terá vindo arrolado um santinho de pau, com rosto de criança .Logo foi adoptado para orago, por aquela gente da borda. Companhas sem orago, não puxa remo . O ser o orago, uma criança, até teria as sua vantagens, deveriam ter pensado aquelas gentes. Mas para o que eu não encontro explicação, é para o facto da tradição mandar verter almudes de vinho sobre a criança-santo, despejando-os pela cabeça abaixo do pobrezito. A  tal ponto que as faces rosadinhas tomaram uma cor arroxeada que mais parece provocada por cirrose de figadeira empapada em vinhaça, a que só falta, uma cebolada, para dele fazer umas excelentes iscas.
Ora o S.Paio é santo de muita devoção lá para a Galiza. E eu acredito que, aqueles que trouxeram as Artes Grandes, no séc.XVIII, para estas bandas, teriam trazido com eles o santinho, dando conta do seu feitio milagreiro. A entrega do santo deveria ter tido festa de arromba. E copos a mais. Às tantas foi um banhada. E daí a tradição foi o que foi . Mas ao que parece, já não é…

Voltemos ao rendez – vous:
No andor estava o Orago que, muito embora exiba a cara de menino, tem um corpo de rapaz espigadote. Estive tentado a dizer-lhe: -Vai chamar o teu irmão mais novo. Mas como nisto de falar com santos, não sei em que dialecto se faz, decidi antes inquirir uma santa, que, ajoelhada em frente do irmão mais velho, se lhe encomendava, confiadamente.


 


                           

                                                          O S.Paio (espigadote)

-Olhe por favor, não me sabe dizer o que é feito do santinho «bebedola»?
-Está guardado….
-Então porquê? Não me diga que têm medo que o roubassem…adiantei eu, com cara de santa ingenuidade.
-Pois olhe o senhor, que até «assucedeu», uma vez….Uns «escaramentados velhacos», quiseram levá-lo p’rá Aveiro….Mas não é por isso. É que faziam –lhe uma tropelias e o Sr Prior achou por bem acabar com elas…
O santo não compareceu ao encontro, não por sua culpa ,que até devia de gostar desta visita de um ateu, respeitoso, seu conhecido e com quem mantém bom relacionamento desde há mais de cinquenta anos. Paciência…
Como habitual dei uma volta pelo arraial da feira antes de entrar numa das muitas tasquinhas para a bacalhauzada do costume. São dois quilómetros de barraquinhas das vendas.Tudo de marca(?!): malas Versage, óculos Raybam, camisolas La Coste, Calvin Kleiner, etc. etc. Este ano proliferavam, contudo, os hair dressers a anunciar:
Fazem-se TERERÉS e RASTA
Nas vendas de roupa, por todo o lado se exibiam body’s para todos os gostos e tamanhos: vermelhinhos como as «papoilas saltitantes» do Benfica, negros como a Briosa, ou branquinhos como as pombas que pretendem engaiolar.
Dei comigo a apreciar como uma Murtoseira avantajada, daquelas que só debaixo de um capote de Varino disfarça os refegos, mirava e remirava, tirando medidas a um dos vermelhos, tipo fio dental. Não entendi lá muito bem – ou imaginei - como seria a avantajada moçoila , vestida (despida), com o bodesão a conformar-lhe as regueifas. Ainda se fosse ás riscas.O que estaria ela a pensar fazer com aquele body extra largo? Dei tratos de polé á minha imaginação ,que dizem fértil, a pensar no que seria o ataque do bode (salvo seja)
Mas a verdade é que, na feira, se encontra tudo.
Por exemplo: - eu que me vejo atrapalhado sempre quero comprar uns boxers (fino não é?!) -XL, lá, tinha ao dispor a medida XXXL. A 5€ a molhada. Não podia perder a oportunidade, até porque a marca era convidativa: «DESPERADO», assim mesmo. Elucidativo e apelativo para aqules momentos , em que, um home se vê com as ditas na mão…
Adiante que estamos a falar de coisas sérias...…
Regressei ao cais. Foi aí que deparei com um grupo especado, embasbacado, contemplando o «Costa-Nova». Claro que quando cheguei meteram conversa, inquirindo onde tinha eu ido buscar aquela maravilha. Palavra puxa palavra, e eis que do grupo, há um velhote simpático que me atira:


 
                                                               O «Costa-Nova»

-Pena é que tenha sido pintado «à moliceiro». 
Foi lamiré bastante para eu já o não largar…
-Então mestre diga-me porquê…
-Olhe: - ali e ali faltam os botões de rosa; ali, àquelas letras falta-lhe ressaimento, e no painel de popa falta a corda da embelezadura. E a bica não é pintada em preto.

Fiquei espantado: andei eu na semana passada a dilucidar sobre as diferenças, levando horas a ensaiar a dissertação, e o homenzinho, um pintor de “Varinos”, “Faluas” e “Fragatas”, explica-me, ali, tudo bem explicado, em duas penadas. Exactamente como eu pensava ser. As diferenças são, de facto, abismais.
Então abri o jogo e lá lhe expliquei que eu sabia a diferença. Só que não podia levar o barco todos os anos à Moita para ser pintado por mestre. E assim, tinha-me socorrido do que havia (do melhor!) por cá. Como não havia outros para acomparar, fiquei-me pelos mestres de cá, e o barquinho faz um vistão. Pudera…
Conversa puxa conversa, e quando dou comigo – e com o «Costa-Nova» - velas içadas, ambos desejosos de regressar para trazer cumprimentos do orago á Srª da Saúde,o CN estava em seco: encalhado, abusacado no lodaçal.

-Estou bem aviado, pensei. Agora vou passar aqui a noite. 
Resolvido lá me atirei para o lodo. E zás: fui por ali abaixo. Espetado até à cintura, eu já queria era, ao menos, saltar para dentro da embarcação . Mas o que vale é que por aquelas bandas tenho muito gente conhecida. Lá vieram quatro murtoseiros, safar-me: -a mim e ao «Costa Nova».

         A calmaria apanhou-me entre águas, e lá arrolei com a maré e com um sopro de vento, até ao CVCN.
Lancei mourão às dezanove. Tempo de tirar as arrufadas da bica da proa. O  CVCN estavaDescontraidamente lá vim para casa, todo sujo de lodo, quando ouvi uma voz:
-Onde é que vai de cuecas?!

      Então não era mesmo verdade que despidos os calções …por causa do lodaçal, eu nem tinha dado
         que vinha naquele preparo!....
           Ao menos se estivesse atento, tinha calçado as «Desperadas».
           Cumpri a minha promessa. As contas com este "santinho". ficam em dia.

           



Senos Fonseca. (2004)



  67.   Poemas de Abril Abril: síntese inalcançável Já não há palavras  Que floresçam Abril,  Nem já há lágrima...