segunda-feira, dezembro 20, 2021

 

 Onde se dá conta da 


                                   Terrível Batalha  entre Algarvios e Saveiros

                                                                   Séc. XVIII


No séc. XVIII, a Trafaria era um porto de abrigo ribeirinho, situado na margem sul do Tejo.Com relevância muito especial para os navios provenientes de zonas ou países pestíferos, sendo por isso obrigados a quarentena, antes de atracar a Lisboa. Ao lado do Forte de defesa que vinha já de longa data, fora edificado o chamado Lazareto (edificado em1714 ,substituindo um anterior, de dimensão e condições não satisfatórias, que, por esses motivos, foi destruído), para acolhimento de doentes  infeciosos, a maior parte chegados por mar. A Trafaria, era, por essas razões, terra pouco procurada; por isso despovoada.Com fartos terrenos ribeirinhos livres, ali a duas remadas da boca da barra, logo  cativaria  os “irredutíveis ílhavos” para  aí acamparem o  arraial de pesca,com as suas características barracas. Pescadores  famosos vindos do litoral “lá de cima”, nesse tempo interessados na pesca do sável ( de essas e todas as outras espécies que viessem à rede), a Trafaria, apartada “do mundo,mas fácil de, em ajustada e directa singradura nos seus rápidos saveiros alcançar, e assim abastecer, os mercados de peixe da outra banda. Logo a colónia piscatória de ílhavos e murtoseiros(pois estes por norma seguiam os ílhavos nas suas migrações) viu, ali ao lado, nos areais da Caparica, um excelente e prometedor campo piscoso  para as mais diversas artes(arrasto, tresmalho).Antevendo o momento em  que as ílhavas e chinchorras viriam a ser substituídas pelas embarcações das Artes Grandes, quando a colónia de pesca se estendeu no areal  longo da Caparica, muito apropriada para aquelas artes de pesca.

Com a chegada dos algarvios àquelas paragens, praticando outro tipo de artes(o cerco),logo os atritos e desavenças subiram de tom, tornados frequentes, em disputa da  primazia nas marcações de territórios marinhos. Os algarvios eram, no entender dos ílhavos, mistura de gentes de ascendência mourisca, de trato, pouco ou nada fiável, desrespeitadores frequentes da propriedade alheia, incumpridores de acordos celebrados e, não menos notório, muito truculentos. Por sua banda, os ílhavos, gente pouco inclusiva, tremendamente fechada no seu grupo, avessos a misturas ou partilhas ,ou até a convivência estranhas, logo forçaram pela força, ao arredar lá para sul do areal, os algarvios, impedindo-os  de utilizarem pesqueiros vizinhos da embocadura do Tejo. Os mais apetecidos, porque os mais piscosos.

 As relações mantiveram-se sempre tensas.  O roubo em pleno mar, de peixe e até de armações, em acções tipo corso, eram frequentes. Por vezes com dimensão onde a tragédia esteve presente e em que muitas vidas foram, ingloriamente, sacrificadas nas disputas entre colónias piscatórias.

E assim aconteceu...com a Terrível Batalha entre Algarvios e Saveiros, acontecida nos “Mares da Trafaria”........que abaixo relatamos.

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Era fim de uma tarde de Julho ensolarada por um sol brilhante a caminhar rápido para o ocaso. Entre a terra e o bugio, as aves marinhas  grazinavam  em voos cruzados, sem rumo, parecendo zonzas nas alturas, como que perdidas a detectar nas águas, peixe para a seu esfomeado apetite. O barbaçudo do sol caía, prestes  a esconder-se lá nos poentes, como que apressado para tirar um codorno nocturno para recuperação de tão estafado  dia. Mas ainda aconchegava o remanso das águas que pareciam adormecidas, tal a calma esparralhada pelo seu azul.

Foi então que vindas da entrada do bugio se destacaram os vultos de três lanchas do cerco algarvio, correndo em linha. Armada que parecia trazer poucas intenções de ser visita de cortesia. Antes faziam esperar actos  gravemente atentórios de paz e vivência entre as gentes da faina. Em cada lancha  vinham embarcados uns vinte algarvios, entre remadores bicheiros e redeiros, bem munidos de facas flamengas  e navalhas de ponta bem afiada. Esta gente vinda lá dos algarves, descendente da    mourisca da outra banda, quando  acabada a apanha do figo verde, posto a bom recato, não podendo, já, fazer as corsas surtidas para o seu roubo, vinham por aí acima, dispostas a fazer dinheiro de qualquer modo, mesmo que esse modo fosse o assalto às artes na água, pilhando as ditas  e o peixe, atum ou golfinho, nelas ensarilhados. 

Contornado o baixio frente ao bugio, logo viraram a estibordo. Numa das barcas o proeiro notou que na frente do seu nariz, a umas poucas dezenas de braças, um eriçado esbolhado fervente,das  águas calmas .Logo perceberam que era peixe emalhado em tentativa de fuga das artes. mergulhadas. Sem hesitação ou delongas, atiraram-se às redes esfaqueando-as, esventrando-as, com pressa de meter o peixe emalhado na barriga das suas barcas, nem sequer ligando ou temendo, uma ou outra bateira  saveira, por ali fainando, estendendo as suas artes.

Logo uma delas, mais afoita e rápida, içando o velame, fez rumo à enseada onde por norma os saveiros encalhavam as suas bateiras e se recolhiam, na maior parte do ano, aquartelados em suas pobres cabanas. Em grande e frenético  alarido, mesmo antes de abicar à praia, já os tripulantes do saveiro avisador, faziam-se ouvir, em alta gritaria: 

 - Aqui d’el Rei ....maneai-vos  lazarentos, que a moirama veio vingar-se de Ceuta.E começaram já a pilhar as nossas redes e peixe, os danados corifeus. A seguir vão as vossas mulheres e filhas....que aquela  barbária vêm disposta a tudo.



saveiro da Trafaria

Os ílhavos – gente nada mole, verdadeiras feras quando açoitados pelo mar ou pela desdita, sem conhecerem outra lei que não a da sua conveniência – logo se atiraram às bateiras, carregando-as com tudo com que pudessem pelejar. Em fila logo estrategicamente concertada, a mando imperativo do arrais da companha, logo rodearam, cercando, as lanchas algarvias. Velejando rápido, atacando-as para logo se afastarem, e logo voltarem para  lhes atirar  com ferros de fundear, fateixas,figas,bicheiros: – tudo que ferisse os arraçados ladranzanas. Zurzindo-os com as varas de marcar que, com as bandeirolas ainda içadas, batiam forte e tolhiam a reação aos invasores, ao tempo que os bombardeavam ferozmente com as pedras de fundear as artes. Tudo servia para desbaratar a temível armada mourisca/algarvia onde  estáticos, surpreendidos pela feroz reacção, os embarcadiços  vindos do sul,com os pesados remos empunhados, mas de fraca utilidade na peleja, em  gritaria bem maior que em destreza, tentavam defender-se dos ataques dos terríficos e eficazes ílhos, surgindo rápidos e simultaneamente, por ambas as amuras. As peças de redame que lhes eram atiradas, embaraçavam os algarvios, imobilizando-os ou ensarilhando-os, enguedelhando-os, colocando-os a jeito de serem fortemente zurzidos pelas varas brandidas pelos saveiros com endemoninhada ferocidade.

 Do marcial encontro saía furioso alarido, mistura daquelas bárbaras e rústicas linguagens. Do acampamento da Trafaria toda a gente (conta-se que, nem velha ficou na cama, nem velho ao degrau) tinha descido ao areal para presenciar tão medonha escaramuça.  Aos gritos que iam no local da batalha, juntaram-se os gritos do mulherio de terra, acompanhados por um eriçar patético de braços ao alto, pedindo ao “seu” Deus ajuda contra aqueles berberes, filhos de Alá. No estramboto já cinco tinham morrido; e dois atirados à água, tinham perecido, afogados. O sangue vertido era tanto,  que se afirmou, então, chegar a tingir  as brancas  areias das cristalinas praias, mais parecendo o então sanguíneo Tejo, um novo mar Morto”.

Faltando já as forças a uns,  porque feridos, e a vida a outros, porque mortos, com o cair do sol, foi o fim da batalha com a fuga apressada  das lanchas algarvias que juravam não voltar a intrometer-se com estes irredutíveis e temíveis filhos  de Baco, tão ferozes na luta como  nas lides com o mar. Gentes que só tinham medo que o mar secasse...


                                                                              Forte da Trafaria

 Do forte da Trafaria, avisadas as autoridades marítimas, tinha embarcado  força policial bem armada que, achegando-se às águas da batalha, logo  com disparos de forte aviso, fez ver ao que vinha, dando  por finda a luta, prendendo e conduzindo para o forte do Bugio trinta e tantos dos rapineiros ; e mais outros vinte,  que conduziram à prisão da cidade. 

Com a noite, muitos outros conseguiram fugir à alçada da justiça.

Termina assim o conto desta feroz batalha:

“porque parte ficaffafe a victoria defta batalha naõ corre notícia certa,e fó fe fulfpeita com certeza que ella paflará por dez reis,para a maõ de qualquer curioso,que Deus guarde para fuitento dos Cegos ,e amparo das tavernas.


                                                                 FIM                  

Senos da Fonseca  Dez 2021

 


quarta-feira, dezembro 01, 2021



Hoje fazias anos… Hoje é dia de falarmos…de Ti.


Por cá tudo igual. Tudo mal.

Por «aí» não sei. Mas não tardarei a sabê-lo.

Hoje, ao lembrarem-me da tua falta, diziam-me à laia de consolo – certamente (!) – da minha sorte (?) de ainda ir ,vivendo:

– Olhe que não, olhe que não… atalhei com doce comiseração: isto de ir vivendo mais um dia, não é bem ter um dia a mais. É a lucidez de ter a consciência de se ter um dia a menos para fazer tanta coisa que se pretendia fazer.

Não sei exactamente, onde, mas li (ou ouvi alguém dizer) que a vida não tinha sentido. Eu sempre,assim, o pensei, duvidando do dito. Para mim o que terá sentido é o calor humano que pomos no fazer das coisas da vida. Nos princípios e ideais que nunca abandonámos, na ética com que a vivemos etc. 

 


 

 

 Por isso,ao preocupares-Te, não em usufrui-la, mas em ultrapassá-la nas suas minudências, deste-lhe o sentido que lhe falta, quando se vive …, por viver.

Hoje, a cada dia que passa, percebemos a dimensão da Tua preocupação em ultrapassar «o consentimento da Tua vida».

Um dia perguntaram-me de onde vinham as minhas «certezas» (?): 

Do olhar para o céu e não me impressionar com a sua lonjura. E olhar aqui para a beira, para quem vai a «meu lado» na vida, e sentir-me tão longe de cada um. Não me impressionam (e cada vez menos) os «deuses grandes». Importam-me, isso sim, «os deuses fracos».  

Por isso Te entendi quando parecia que todos os dias (santos e não santos, para Ti todos eram iguais na angústia), a vida te flagelava de propósito, desafiando-Te. 

Senos da Fonseca


  67.   Poemas de Abril Abril: síntese inalcançável Já não há palavras  Que floresçam Abril,  Nem já há lágrima...