domingo, agosto 30, 2020



FOI VOCÊ QUE PEDIU UM PÊSSEGO ?

...SABE COMÊ-LO ?...

Chegou com um ar desiludido, sorriso fechado ,gestos tensos –em completa «fossa» :


-Então como vai a bizarria (?):- disparei …


-Ácida ,amarga .-monótona, retorquiu
.Uma pessegada ! Os Homens começam a ser uma raridade pouco ao alcance de quem vai ficando sobrecarregada com aniversários. Que ,ainda festejemos, mais razões tínhamos,era,de os lamentar …


Deixa –Te de pieguices : atalhei .


E para que sorrisse lá lhe fui dizendo .


- Por falares em fruta :-Olha que ainda és um bom «pêssego» ! Anima-te !...Sabes (?) : há dois tipos de pêssegos.Uns lindos por fora,charmosos,gulosos :já vi muita gente deles se fartarem à primeira trincadela .Sensaborões …Verdes ...E olha que não é a fábula da «raposa» ...


Depois, há os que mantêm a atracção; macios por fora ao tacto, e quando se trincam,para além de muito doces , são polpa apetecida. Desfazem-se em gostusura húmida. Apetece ir até ao fim.


Um bom «pêssego» deve-se comer à trincadela e nunca – mas nunca !- descascado com faca.Com dentadas suaves ou esfomeadas, vamos avançando e eles derretem-se na boca, fazendo soar as campainhas que ainda dentro de nós se dispõe a festejar a ditosa vitualha…


Ora deves, é reparar que, os «pêssegos» verdes exibem-se na praça pública em caixotes, às dúzias ,alardeando impúdica oferta .Um «pêssego» –um bom« pêssego!» - sugere-se em oferta íntima –mesmo que misturado com outra peças -numa taça de cristal onde faz valer o seu perfume .E a sua macieza E mesmo que ao toque não seja tão durinho,isso mesmo é a sua virtude,convidando à trincadela…



Vi-lhe um sorriso e pensei: está feita a minha boa acção de escuteiro, por hoje …


----------------------------------------------------------



Passados dias voltei a encontrá-La .


- Então ?... aos costumes, não dizes nada!
-Como posso dizer (?!); com a míngua de homens interessantes que por aí vai… atalhou …



-Não me digas …Então já todos comem de faca …?!…


-Pior; “de faca e garfo” .E chegado ao caroço atiram-no fora, ainda cheio de carninha
---------------------------------------------------------

Este mundo está perigoso …E a distribuição horrível. Uns com tanto; e tantos só com o caroço…Ainda falam do capitalismo selvagem…


Ou será que é mesmo assim: as coisas murcham com o desbotar dos sentidos

Senos da Fonseca

sábado, agosto 29, 2020



OS MAIAS NA COSTA NOVA (cont)


(....)
Um toque de búzio prolongado ecoou. Era o aviso para as mais atrasadas. Que deveriam estugar o passo, se queriam apanhar a barca. Rapidamente carregados os canastros vazios, numa algazarra confusa e nem sempre própria para os ouvidos, o arrais larga. Vela içada, cheia no vento, rumando para a outra banda.
Acomodaram-se os passantes entre aquele mulherio, que com fortes razões do cansaço de um dia de trotear pelas ruelas da vila, a vender o peixe. Mesmo assim, naquela hora descontraída, mostram viço no maneio de gestos e corpos. E cara sorridente. O Zé da «Gaita», homem de barbas ruças, artista feirante da sanfona que nas suas mãos parecia que até falava, logo foi desafiado pela Rosa «Galante»:
– Ah homem «bô», dê-me lá uma gaitada.
E logo o Arrais Labareda, malandro, jocoso, irónico, atira:
– Ah raios, andas sempre a pedir gaitadas. Não t’a cansas demónio? Depois começas aí aos saltos, encabritas-te, e ainda me partes um paneiro.
Era tarde para o aviso. Ao som da sanfona, logo uma molhada daquelas mulheres cuja vida era feita de suado e frenético trabalho, mas por natureza mulheres alegres e louçãs, com o pé no chinelo a pedir travessura, saltaram para o centro da embarcação, sacudindo-se e rodopiando, para lá e para cá, ao ritmo de um vira virado. Ega parecia subitamente interessado naqueles corpos bamboleantes, cofiando a loira bigodaça e sorrindo com prazer. Carlos parecia profundamente surpreendido com o ritmo do mexido e rodopiante do bailado, bem marcado pela sincronia do sapateado. Finda a primeira roda, logo o Ti Labareda intrinca com a Rosa, puxando-lhe pela língua:
– Ah rapariga, vais chegar a casa toda derreada. Coitado do Toino.
– Que é lá isso, Labareda: pois assoa-te que estás bem enganado... olha que o mê Toino, hoje, bem tem de pôr o reçoero de molho... Atrapalhado vai ele haver-se...
E para limpar o suor, vai à bolsa e retira um «trapo» branco para fazer de lenço. Foi uma risada geral, pois o pano a que a Ti Rosa limpava a cara, era tão só, umas «cuecas» brancas, femininas.
– Ó cachopa: foi engano ou é p’rá arejo? – atira o Labareda sentado no «cagarete», rindo a bom rir.
– Mas atão, diz a Eugénia «Pardaleira», o teu Toino não ficou lá por Lisboa, na safra de verão?
– Não filha; começou com saudades cá da Rosa, pois aquelas fufas lá de Lisboa não prestam para aviar um home daqueles. Elas bem se apegam, mareiam à volta dos nossos, mas não prestam pró lanço. É tudo aguadilha.
– Pois é; pior só os lá de Lisboa. Aquilo, lá (!), está tudo podre. Bem falta faz o Marquês, que havia de vir cá baixo outra vez, e embarcar aqueles simpras. Mandá-los trabalhar p’ró Brasil, diz a Génia.

Ega parecia ter perdido o sorriso; Carlos exibia um olhar de espanto, revelando um certo interesse na conversa, doidinho por saber o que pensaria o seu amigo Ega, desta pobre gentiaga. Manteria a sua proverbial antipatia, e até desprezo?
– Quem fala assim não é gaga, atalha a Rosa. Se viesse outro terramoto limpava a podridão que por lá vai. Aquilo fede pior que pilado de escasso. Eu andei lá a vender peixe pelas ruelas do Bairro-Alto, e nem podia anunciar o peixe fresco, pois as pindéricas e os penduralhos, só se alevantavam lá para o meio-dia, a bufarem álcool destilado na noite. Se lhe achegam um fosfro, ai vai o peralvilho. E depois aquelas fúfias botam perfume para tirarem o cheiro da devassa. Mudam de home como eu mudo de camiseta. As ruas parecem todos os dias em festa de S. Pedro: a cornadura dos «Viscondes» cobre a rua de um lado ao outro. Porta sim para lá, e porta não para cá. Arcos retorcidos, maiores que a cornadura do boi marrão do abegoeiro Alcibíades, da Companha dos Luíses.
– Oh! filha mas não se vêem ; e, se se virem, eles não se importam. E se, se importarem, serram-nos..., acrescenta a Génia.



E não só; fazem figuras de ricos, falam grosso e emproados, mas a gente entrega o peixe, e lá mandam para o livro. E o pior é que mal a gente se precata, levam um fumo que nunca mais se lhe põem os olhos em cima. Calhamaços de um raio, ajunta a Génia. Houve um simpras bem abotoado que começou a charir-me as saias, a prometer cama e mesa, e eu sem lhe dar cúnfia. Vai daí o pato bravo de bigode – aqui como este nosso amigo (apontando o Ega) – adiantou-se mais do q’o devia, c’a tive de lhe gritar ao ouvido: p’rá cama vai uma mulher séria com um homem bem aviado; e vossemecê se dá mais uma remada, capo-o com a minha navalhinha de amanhar as enguias, explica a Génia, puxando da naifinha bem afiada...
O que valeu foi que a sanfona deu de gaitar, e logo a conversa se arrumou ali. O Manel Graça, morria de riso por dentro, ao ver os amigalhaços tão severamente colocados na praça pública, ficando a saber o que na província se pensava da vida perdulária e malandra, vivida na capital do reino. Políticos corruptos,comprados a pataco, e toda uma teia de sustentados pelas famílias aboletadas provincianas, que mandavam as mesadas aos filhos e netos, para estrunfar nos salões e botequins na boa-vai-ela.
Chegados à Costa-Nova, logo foi indicado a Carlos o quarto contíguo ao de Ega, também este debruçado sobre a Ria. Marcado o jantar para as nove e meia, houve tempo suficiente para os dois amigos trocarem impressões.
– Então caro Ega (?), com esta tua descoberta, o que te vai na alma, sempre insatisfeita, sempre a pensares que a vida é uma degeneração continuada. Meu amigo: hoje não te pressinto afinal tão pessimista. Algo me parece mudado em ti... – atira Carlos.
– Pois olha que sim. É verdade. Tenho descoberto coisas interessantes com estas pessoas. E começo a ter sérias dúvidas do sentido exacto da vida que levamos lá por Lisboa. Estes pobres são gente. Gente que leva uma vida de sofrimento, mas digna e valente. E não olham para trás, se necessário for, a arriscar a vida por um simples conhecido. Tudo neles é verdadeiro: o sofrimento. Mas e também a repentina alegria de viver a vida no pouco que esta lhes oferece. Esta gente sonha. E só com isso já é feliz. Aqui dar os bons dias ao desconhecido, tem mesmo um sentido verdadeiro: parecem empenhados que tal aconteça...
– Oh! Ega, je suis enchanté mon ami... estou cheio de curiosidade. Olha (!), depois do episódio da Eduarda, de que ainda não estou totalmente são, tudo quanto tenho feito, ou tudo quanto tenho sido, parece-me falho de sentido. E a vida que temos levado soa-me a uma peça de teatro pouco realista. A vida é como uma garrafa de bom cognac: não se pode beber sem que acabe e fique vazia. Bem... vamos lá jantar, e ouvir os nossos anfitriões. Perceber que género de pessoas alberga esta nova classe burguesa, activa, empreendedora, de quem se espera mudanças radicais.


(.......) 

Senos da Fonseca



quarta-feira, agosto 26, 2020




OS MAIAS NA COSTA NOVA (2 excerto)

 (::::)

Ora... ora, João da Ega, confesse lá: – esse afrancesamento das virtudes nacionais (menus incluídos), já vem de muito longe. E sempre deu bota. «Raia», dizemos nós por cá. Não é por ser bom. Treta nenhuma: é por ser chiquérrimo, consentido pelo livre cambismo aplicado à culinária, no caso.
Carlos gozava a cena. Estes remoques do jovial Graça, dirigidos ao Ega, Ega que considerava Paris e tudo quanto de lá vinha genial, supremo, incomparável, deviam ser um sapo vivo, difícil de engolir por Ega. Talvez por isso, o seu amigo se mostrasse hoje tão bebericão.                                                                                                                                                            Ilust. SARA BANDARRA
– E digo-lhe mais, Ega – continuava Graça: cá os de Aveiro, não temos monumentos como os Vossos lá por Lisboa. Os nossos «Jerónimos» são estas tascas como a do velho «Palhuça». E digo- lhe, meu caro: prepare-se... que ainda só vai dans les entrées. Prepare a vasilha, intercalando uma canja. Oh! uma canja; uma «chora» de cabeças de peixe, um verdadeiro monumento bíblico da arquitectura gastronómica. Verá...
Em grande algazarra, entrara um pequeno grupo de moços e moças. Grupo folgazão, falando alto num linguajar de troca de conso- antes e terminações fechadas. Linguajar sonoro, estridente, cheio de uma entoação cantarolada. Vozearias da beira-mar. Reconhecendo o Graça, logo foram apresentados aos lisboetas, como estudantes coimbrões com largos anos de tarimba estudantil. Em despreocupadas férias. E como de amigos brotam mais amigos, e o melhor sítio para os criar (e sustentar) é uma boa e bem recheada mesa, aceitaram o convite que lhes foi dirigido por Graça. Descontraidamente, pediram pratos e forquilhas, e dá de se atirarem ao conteúdo do caldeiro. Uma engraçada moça, de nome Etelvina, tez fina e ar azougado capaz de prender e até cativar o olhar, mostra-se mandona e imperativa, clamando para um dos empregados de serviço:
– Ó Dâmaso, traz-me lá para a mesa um «champorrion» bem aviado... Se o saber o que era tal beberragem levantou curiosidade, certo é que Ega e Carlos cruzaram um interrogativo olhar, onde perpassava a ideia, que nem longe, a figura do petulante Dâmaso parecia querer se afastar. De quem se julgavam por uns tempos afastados, em corpo e pensamento. E c’um raio (!): tal parecia erzipela contagiante; logo ali, iria aparecer um Dâmaso qualquer, encarnado num outro tipo da beira mar. O pior foi que, passado o momento da evocação, que pareceu logo afastar-se – apenas uma mera coincidência – ficaram patéticos quando, célere após o pedido, aparece na porta uma figura que dava inegáveis parecenças físicas com o fami- gerado Dâmaso, a figura pastosa dos salões lisboetas. Ali estava um criado de estalagem, com figura flácida, bochechudo, untuoso nos gestos, e no andar de passo curto.
– Oh amigo, diga-me cá, que estou suficientemente intrigado: Você tem algum aparentado lá por Lisboa? – pergunta o Ega intrigado, curioso e perplexo.
– Pois saiba vossa Senhoria, que parece, não tenho a certeza, que lá estará a trabalhar, não sei onde, um irmão que mal conheço: o Manuel Dâmaso «Salseda»?
– Oh... oh... valha-me o diabo encornado: explique-me lá o imbróglio da história? – titubeia o Ega, com ar ridiculamente espantado. Oh! Carlos, mon dieu, estás a ver o mesmo que os meus olhos vêm? – inquire virando-se para Carlos da Maia.
Este boquiaberto, como que assombrado por deparar com um lobishomem (lá que os hay... hay... estava ali a prova, provada), nem ousa abrir a boca.
– Pois a minha história será como tantas outras, diz o criado da estalagem. A minha mãe era a Maria «Sal-seda». A alcunha vinha da pele branca, rara por estas bandas, a lembrar o alvo do sal. De uma macieza de seda. Ora lá pela beira-mar, iam e vinham os almocreves, com os burricos a carregar o peixe. Volta que volta, enleio que enrodilha, o burriqueiro faz um filho à Ti Maria. Botam-lhe o nome de







Manel Dâmaso «Salseda». O burriqueiro ia e vinha, promessa atrás de promessa, cama sempre pronta a acolher a fome das desertas serranias, e, passados três anos, vê o dia este seu criado, que se chama João Dâmaso «Salseda». Pelo areal, no rapinanço das redes, e pelo abrigo dos palheiros, cumprimos a meninice de pobretanas. A minha Mãe a acudir-nos para, pelo menos, nos livrar da fome. Mas quis o destino, que uma doença rara no sangue, a levasse de um dia para o outro. O burriqueiro ainda apareceu mais tarde. Fez tratos com os meus tios, e levou com ele o meu irmão, Manel. Viram-no Vossas... Senhorias ?!; pois eu nunca mais lhe pus a vista em cima. Soubemos por um outro safardana serrano, que tinha dado o miúdo a uma velhota, lá para perto do Douro, velhota de quinta herdada, amoedada, piedosa, bemquista do Senhor. Disseram que teria mandado o Manel «a estudar», para Lisboa. Estudar é uma maneira chic de dizer. Talvez a arranjar mulher que o pusesse de casa e mesa.
– Esta agora... esta agora... balbuciava Carlos... ai Dâmaso, meu Damasosinho, volta a contar-me a história do Comendador de Cristo, do «chiquérrimo a valer», das torrentes de fêmeas balza- quianas que te lambem a bochecha, e com quem borregas a matar paixões extasiantes, que eu conto-te a tua história, filho de burri- queiro serrano.
(......)
– Então ó Graça, amanhã vais à Assembleia (?)... inquiria a azougada Etelvina. Não faltes! olha que a festa vai ser de arromba. A banda do João Pretinho promete um frenesim de se lhe tirar o chapéu. E chapéus, bonitos e singulares sombreros, vão aparecer sublinhando as carinhas mais «larocas» da região.
– Claro: então a festa não se fazia sem mim, minha rica menina. E fica desde já combinado: prometes-me um passo de dança, diz o Graça.
– Oh! meu amigo: uma ou duas. O carnet ainda não está cheio, e uma rapariga «abusacada», a apanhar um banho de assento, a ver os outros bailar, definha, tortura-se, amofina. Olha: leva aqui os Teus amigos, que há por lá boa pescaria.
– Quem sabe, quem sabe (?), adianta Ega, cofiando o farto bigode; porque bom peixe, pela amostra aqui presente, não faltará. Resta saber se vai ao anzol.
– Pois Sr. João da Ega: aqui não é o peixe que vai morder o anzol; é o anzol que que tem de se chegar ao peixe, carregado de engodo – responde sarcástica e insinuante, olhar atrevido, a azougada e bela Etelvina.




(C

segunda-feira, agosto 24, 2020


Nota. Por vezes ,ou quase sempre, os trabalhos lentos de procura de factos(porque é de factos que se contrói a história) afasta-me de me ter ensaido noutros caminhos.Aqui vai um pouco ...de um trabalho que me deliciou....


OS MAIAS NA COSTA -NOVA.

(....)

Logo muito cedo – Ega – que na primeira manhã não apreciara a hora madrugadora, era acordado pelo movimento do local, pois a «mota» contígua à casa, entrando ria dentro, era local preferido pelas peixeiras para aí lavarem o peixe, e o encanastrar. Também ali era local de grande bulício, com os variados mercantéis a carregar o peixe salgado em barricas, encanteirando-as em barcas que o iriam levar para os diversos entrepostos postados ao longo da laguna, ou rio acima, lá para as faldas das serranias beirãs.





Descobriu assim Ega, o trabalho esgalmido destas gentes, rostos mortificados pelo esforço no ganho de uns parcos rendimentos que lhes permitem, pouco mais, que a sobrevivência no dia-a-dia. E à janela, em situação privilegiada para observar a lufa-lufa, Ega deita o olhar para a ria aquietada nestas primeiras horas do dia. E o que vê deslumbrou-o. A magia dos azuis que se postavam e prolongavam à sua frente, vindos da natureza preguiçosa, larga e extensa, prologava- -se no esverdeado das terras serranas. A tela que tinha defronte deixou-o perplexo. Finalmente!: ali à sua frente estava a inspiração suprema para o poema da sua vida. Sentia-o a florir, a pedir horizontes para se concretizar. Bastar-lhe-ia reproduzir a tela que tinha defronte dos olhos: – os azuis desmaiados pela neblina húmida, coada, que os desbotavam; os tufos esfarrapados de umas nuvens matinais colados na borda, no outro lado; o «moliceiro» ronceiro, vela solta, gadanhando o fundo lagunar, enchendo-se de fitas de um castanho dourado macio; os tripulantes equilibristas, correndo lestos sobre a borda da embarcação, com a vara ombreada, ferrada ao fundo lodoso; gaivinas que mal acordadas, pigarreiam nos ares à procura de um ou outro peixito que distraído, tinha vindo espreitar à superfície sem medir saber o perigo que tal atrevimento lhe custaria.




Carlos, assim o esperava, chegaria amanhã. Ega cerrou os vitrais e cantarolando Verdi, Chi e mai, chi e qui in sua vece?, seguiu a enfarpelar-se, aperaltando-se a rigor no seu abotoado paletó de verão, encimado por palhinha parisien. Ajeitou o cabelo alourado e cofiou a bigodaça majestática, espetando-lhe as pontas, revirando-as para cima. E de imediato desceu à sala onde eram servidos os breakfast para se recompor da ressaca da noite da véspera. Que em casa dos Mourões fora copiosamente regada de um excelente douro sobejamente frutado, vindo lá das suas quintas do Douro. Uma verdadeira iguaria para regalo do beiço. Lastrado por petit couchon rôti, exórdio à contenção possível, necessária para saber parar a tempo de uma «empaturradela» letal. E para sobremesa fora servido um arroz doce a nadar nuns dourados ovos, manjar conventual elaborado pacientemente entre «pai nossos e avé marias», que, acompanhado por um vintage alourado de estalar na boca, para assim melhor penetrar e reter no palato., fazendo cantar hossanas às alturas. O cardápio era de um português vernáculo. Nele não havia francesismos para identificar as iguarias. Ega não resistiu, contudo, a introduzir-lhe a bastardia franciù.
Ega pretendia ocupar parte da tarde a fazer visita de cumprimentos, «à gente fina» com o fim de anunciar a chegada de Carlos, fazendo a cada uma, uma introdução-apologia do seu amigo que, estava certo, provocaria só por si mesma, um ah!!!!!!.
Já à noite, ao serão, numa súcia de amigos, senhoras e cavalheiros presentes pareciam verdadeiramente interessados, ávidos, em conhecer esse exemplar flamejante, distinto da high society lisbonense. No dizer de Ega garantidamente muito chic. Homem prático, compreensivo, bom e inteligente, para quem a instrução de uma criança não era só recitar Tityre, tu patulae recubans, mas levá-la a saber factos, coisas úteis, coisas práticas. Carlos – explicava Ega com ênfase –recebera instrução apurada e aprimorada. Tirara em Coimbra o seu curso de medicina. Que só não exercera em absoluta dedicação, por uma não necessidade de ganho material. Já que eram bastantes os largos cabedais de seu avô. Após o desaparecimento de seu filho, Pedro Maia (pai de Carlos), tudo pusera ao dispor do neto.
As expressivas, pródigas e entusiasmadas referências feitas a Carlos, no redor daquele novo e interessante círculo de amizade, foram suficientemente capazes de levantar a curiosidade, e o expresso desejo de saber quão demorada seria (ainda!) a sua chegada.
– À saúde do «amigo» Carlos da Maia, o gentleman lisboeta que importa conhecer – dissera o sempre bem-disposto «Manelinho» da Graça – erguendo o seu copo onde espumava a frescura de um champanhe bairradino.
– Hip!... hip!... urrah!... responderam os presentes, bombar- deando o pobre João da Ega com as perguntas: saber como, quando, e a que horas, chegaria o «amigo» Carlos, de quem pareciam já íntimos.
Ia ser de arromba a estadia na Costa-Nova destes dois espécimes lisboetas (....)

segunda-feira, agosto 17, 2020



A propósito de um comentário à foto publicada pelo João Parracho


A olhar para essa foto, que conhecia de há muito,mas sobre a qual não me tinha detido, reparei em dois barcos moliceiros ,com as proas brochadas a branco.
Este pormenor que(já) explico no livro ”Embarcações que Tiveram seu Berço na Laguna” ajuda a discernir, aquele que para mim foi um dos casos mais difíceis de interpretar (ou afirmar)quando andei envolvido no estudo das Embarcações.
O saber com exactidão (a maior possível) a data do aparecimento da embarcação tipo Moliceiro(à falta de documentação) foi muito  problemática. Saber se houve um ,dois ,ou até, três tipos desta embarcação, deu trabalho desarcado de busca na memória das gentes. Teorizar pelo incrível formato da sua proa(característica que o identifica, diferente de todas) aspas...aspas...
Vamos lá então :

A apanha de moliço (verde) deverá ter sido iniciada por volta de 1667.Q uando se começaram a arrotear os terenos lamacentos das “gafanhãs”.E depois ,mais tarde(Séc.XVIII) se iniciou o povoamento dos terrenos a norte da Torreira(hoje Quintas do Norte).
Sabemos por documentação da época que a bateira ”Ílhava” -a mais polivalente embarcação da ria- foi utilizada nesse começo para catar o moliço. Contudo ,o facto de não ter draga e bordo (era uma bateira),não permitindo o correr do moliceiro sobre as mesmas ,arrastando as ervagens, tinha largos inconveniente que urgia resolver.Mais: tinha um pontal muito elevado(0,70m) o que dificultava imenso o levantar e o embarcar do moliço.

Poderemos então teorizar que o Moliceiro terá aparecido por todo o Séc. XVIII(provavelmente fim).Em 1883 havia já, 1342 embarcações ; no princípio do Séc.XIX havia 1200 arrais; em 1900 havia 1054 (ver mapa livro)

Um único tipo(monotipo) como no caso do Mercantel?

No Moliceiro aparem-nos três tipos de construção que mostram claramente a sua identidade(ou proveniência construtiva).






Das Gafanhas (miroas) nasceu uma embarcação de linhas pobres (no desenvolvimento),de pequena capacidade(3 ton) que, dada o curto trajecto que fazia dada a proximidade da apanha (canal de Mira) ao local onde descarregava(Gafanhas e Poço da Cruz),fazia empostas curtas diárias.Era uma embarcação para trabalho, toda brochada a negro, sem grandes mostras ou caprichos, a que depreciativamente se pôs o nome de “matola”.






                                                 






                                                    2 matolas(duas bicas diferentes)





                                           moliceiro do norte versus matola



A outra embarcação, muito semelhante a esta, nasceria pelos arredores de Aveiro .As suasmviagens eram ,colher o moliço e levá-lo à  descarga ao Rio Boco.
Ora aqui surgiu-me toda uma série de gravuras em que esta embarcação (barcas sem qualquer duvida)aparecia brochada de branco(e apenas de branco) no painel da proa, sem inserção de qualquer imagem ou rodapé.




São assim aqueles “moliceiros” que se podem apreciar na foto referida. E que vêm dar mais uma ajuda.Cconfirmaro que há anos tínhamos proposto. Eram embarcações feitas por Esgueira, Aveiro, Ílhavo etc

(Nota:admitimos que estas embarcações tenham sido, como a Ílhava o foi, empregues no carreto. Isso talvez venha explicar a sua presença no porto bacalhoeiro,como mostra a foto)














Outro problema bem diferente foi o caso do Moliceiro  “murtoseiro” .Este Moliceiro não abastecia apenas as os terrenos do Norte da Torreira, e os das beiradas da Murtosa.











As embarcações e suas tripulações (que passaram a ser os proprietários das embarcações vivendo da apanha, e não apenas lavradores que desciam à Ria, ou mandavam os seus contratados) vinham descarregar em grande quantidades(a maior) ao sul do canal de Mira, abastecento toda a Gândara. E também ao Rio Boco.Isso impôs uma alteração na dimensão da embarcação, que passou  a 14/15 m ,capaz de carregar perto de 5 Ton.(com falcas).Eram viagens que demoravam três, quando não quatro marés. A capacidade era assim importante.
A forma em “peito de cisne”,dada ao moliceiro,que o torna diferente de todas as outras ,tem uma explicação que não é difícil compreender.







Todos os pormenores construtivos das embarcações lagunares(suas formas,requisitos e até pormenores, que parecem à primeira vista despiciendos, têm uma razão. Adaptação a uma finalidade pretendida.
Chegamos então á questão: quando e como aparecem os painéis que tornam o moliceiro o ex-libris lagunar?






















sábado, agosto 15, 2020






O ílhavo é mais do que um vulgar arquétipo resultante das influência(boas ou más) do meio geográfico: o fruto das suas circunstâncias.
O seu projecto, a sua teimosia, a sua perseverança, a sua resistência à adversidade, a sua ansia de lonjuras fez dele figura com lugar destacado na história pátria.

Mas quem foi,e o que foi ,esse “ílhavo”?

Ao fim e ao cabo, foi o que sempre me motivou: perceber os meus anteriores...libertá-los do anátema redutor de serem só e apenas, actores de  um único acontecimento(período histórico). Esquecidos que. afinal, somos o produto de um projecto áureo (único)de cinco séculos (?) que se integrou e se relevou na determinação   lusíada de abandono do projecto mediterrânico. Os ílhavos foram os atlantistas de plena convicção. Foi com gentiaga como esta que demos passos decisivos civilizacionais.

Sim !,creio que era chegada a hora de me concentrar e arrumar de uma vez por todas a questão da singularidade do arquétipo ilhavense: o ílhavo.
Ao contrário do que muitos pensaram e verteram em textos pouco ou nada consistentes,a semelhança das variantes humanas regionais lagunares, foram escassas. As diferenças foram muito maiores e exprimiram-se com muita maior intensidade  no aspecto psicológico ,cultural e até social. É certo que o homem lagunar ,enraizado e limitado a um espaço geográfico vizinho, teria de absorver e transmitir alguns caracteres onde se catam identidades. Os contactos teriam sido intensos, mas a aculturação esteve sempre presente. A diversidade cultural do homem lagiunar não se deixou inquinar pela diversidade da sua proveniência ancestral.
O ílhavo é profundamente diferente do murtoseiro, como o é do ovarino e como o é do cagaréu.
De onde lhe veio essa identidade diferente?
De onde lhe veio predomínio da imaginação para o longínquo do mar, numa identidade sonhadora que durou séculos? De onde lhe veio a conciliação terra /mar? De onde lhe veio a inquietude e a aventura? Que linha divisória-e como se manteve- com diferenciação absoluta, a vizinhança? Uns acreditando e esperando a boa vontade dos deuses para ungir a terra promissora, os mitos e rituais de fertilidade, vivendo o passar do tempo entre o berço e o túmulo .Outros “os da água”, alimentados pelo sonho que os despertou e impulsionou, à partida em procura do novo. Pouco lhes importando que o túmulo venha a ser  a causa do sonho(da paixão): o mar. Importou-lhes o descobrimento do desconhecido, do distante. De varadouro em varadouro em  procura da rampa de lançamento para a partida perseguida.

Mas ao querer avançar- vem de longa data esta pretensão- pergunto para quê? Ílhavo é hoje um fantasmagórico deserto cultural. Destruir foi fácil. E falar diferente ,parece hoje inutilidade sem sentido.
A palavra “cultura” deixou de ter qualquer sentido. Vende-se ”disso “ a cada canto,em cada cais,em cada malhada, em cada fundeadouro. Vende-se sem se fazerem contas ao retorno. Vende-se cultura a metro, a milhas, a pés. Bem hajam os promotores de tantos cantautores.

 Deles será o reino da “Nocha”.

Senos da Fonseca

segunda-feira, agosto 03, 2020



Alqueidão e os seus Palacetes.


No século XVIII podemos já referenciar na vila o Visconde de Almeidinha – D. José Osório do Amaral Sarmento –, casado com a Baronesa de Almeidinha, D. Maria Benedita de Sousa Queiroz Bizarro, detentora, desde 1828, do Morgado da Nossa Senhora da Nazaré[1] que referimos ao abordar o Chão dos Pobres. Esta senhora era dona de uma enorme fortuna, o património mais rico da província. Incluía a Quinta da Sr.ª das Dores, em Verdemilho, e vários palacetes em Aveiro, para além de possuir diversos vínculos (Mortágua e outros). Esta fortuna imensa viria a esvair-se, até à ruína, nos finais da primeira metade do século XIX (1847), passando a casa de Alqueidão, e a Capela, à pertença de estranhos à família.


O palacete de Alqueidão[2] teria sido residência esporádica, no século XVIII (cerca de 1721), do capitão-mor de Ílhavo, João Sousa Ribeiro, que habitual- mente moraria no seu palacete de Aveiro, no largo do Terreiro.
A mesma zona de Alqueidão , onde no século XVIII e XIX se encontravam as casas mais ricas da vila, seria também a escolhida para a residência




da família Alcoforado, de onde se distinguiria a D.Henriqueta Maia, filha de
Manuel da Maia Alcoforado. Senhora de grande bem fazerm, muito ligada às actividades religiosas e de caridade, privilegiando a Igreja com entregas valiosas. E também à comunidade local, à qual ofereceu os terrenos[3]para a câmara de então, criar o Jardim Municipal que tem hoje o seu nome. Casada com o Dr. António de Cerveira[4],a sua família era detentora de uma grande casa com inúmeras propriedades, algumas delas aforadas (ainda em 29 de Setembro de 1894 é feita uma escritura de remissão /venda do foro de um terreno seu, a favor de José Jesus Pequeno).
No século XIX seria ainda num local mais a nascente dos Alcoforados, designado ao rio da Vila, que se situava a casa opulenta do prior João Martins dos Santos, senhor de grandes posses[5]. Nesta casa (situada entre a actual Junta e o antigo colégio ) vivia o pároco com duas sobrinhas ( e um sobrinho) , uma das quais D. Catarina que, vencida a oposição do tio, viria a casar com Manuel Maia Vieira, descendente de lavradores ricos da vila. Maia Vieira, que os pais destinavam à rendosa vida eclesiástica412, teria sido assolado por louca paixão votada a D. Catarina, vindo a distinguir-se na vila ao exercer, mais tarde, o alto e poderoso cargo de capitão-mór de Ílhavo, acabando por se tornar dono de uma das maiores fortunas da terra.

É ainda referido, habitar na vila, no prédio onde mais tarde se viria a instalar o Teatro, o Capitão Sousa Pizarro(tio de D. Benedita Pizarro, mais tarde Viscondessa de Almeidinha), homem fidalgo de grande prestígio e reconhecimento na comunidade.
Senos da Fonseca


[1] Na doação de D.Manuel a D.Jorge, Duque de Coimbra,é afirmado: porém mandamos aos nossos contadores, almoxarifes, escrivains das ditas terras (...) e a quaisquer outro corregedor, juízes, meirinhos... aver e lograr e possuir as ditas terra (...) o que, ao que se pensa tendo aplica- ção para Ílhavo, como para Aveiro, vem focalizar a existência de um número elevado de funcionários régios espalhados pelas urbes. (SILVA, Maria João Marques, in Aveiro Medieval, p. 85.
[2] Também conhecido por N.ªSr.ª dasNeves, derivado do vinculo(instituído)de se rezar na sua capela, uma missa cantada, em cada ano, em dia da N.ª Sr.ª das Neves.

[3] Que tinham sido anteriormente sua propriedade e que, por essa razão, para os oferecer teve de os readquirir.
[4] Este Dr. António Frederico de Cerveira, casado com D. Henriqueta Maia, foi um homem de grande superioridade moral e intelectual e, acima de tudo, de uma total disponibi-lidade para os pobres a quem, no primeiro dia da Primavera, oferecia sempre um lauto bodo. Presidiu à câmara municipal, sendo de sua iniciativa a construção da estrada Ílhavo – Costa-Nova, bem como do Matadouro. Recusou o cargo de Governador Civil.
[5] Este prior era ,acima de tudo um comerciante de bacalhau(negócio que detinha com o sobrinho).E aquando da construção da Igreja,como era seu encargo a construção da capela -mór, quis que o construtor empolasse o preço da construção da Igreja,para incluir na empreitada, aquele valor.

  67.   Poemas de Abril Abril: síntese inalcançável Já não há palavras  Que floresçam Abril,  Nem já há lágrima...