segunda-feira, setembro 30, 2019



Hoje lembrei-me do Labareda . do Labarede e da Ti Norta.


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( De .  O LABAREDA)


Truca... truca... bole que bole... enregelada e encharcada pela surriada59 que a açoitava, a Maria resolve, como tantas vezes acontecera, bater à porta da «ti Norta da Bruxa», habitual pousio dos grupos das companhas e viandantes, em cuja varanda60 da taberna escorropichavam 61 um copo de três62, último alento para a caminhada até à vila.
Ela, a simpática «ti Norta», nem era lá, nada disso, de bruxedos. A rapaziada d’ ibalho63 – o Mano, o Sacramento, o Saguncho64 & companhia – é que vinham com as fidalgotas 65da Costa Nova, e com o intuito de as amolecer e tornar navegáveis66, lhes diziam para tomarem da sua jeropiga.Que, garantiam a pés juntos, tinha bruxedo de amor67.
- Era bruxedo era!... Era mas é para as chicharem68 ao colo, as boquilhas·, que p’reciam69 umas augadas70 - ia pensando a «ti Norta» enquanto enchia os copitos, postos em fila em cima do tampo. Era mas é p’rás engrominharem71, assegurava.
Já noite, a barca partira. A «ti Norta» não esperava alma penada saída daquele iroso72 tempo, pelo que, a simpática velhinha, fechara a porta da venda.
Que logo se apressou a escancarar, quando sentiu o chamamento da Maria. Aberta a porta, do escuro, recortou-se a «ti Norta» segurando o candeeiro a petróleo que esparralhava73 uma luz mortiça, bruxuleante e enfezada, mas suficiente, contudo, para se ver na sua cara um sorriso acolhedor. Um andar ainda desembaraçado, embora aqui e ali uma ou outra tropeçadela com os tamancos ferrados. Cabelos de um branco intenso, prateado, aparecendo por debaixo de um lenço preto, de ramagens amareladas, amarrado em volta de um rosto redondo, tisnado pelo sol e pela salsugem, onde sobressaíam duas maçãs rosadas. Deixando aparecer duas covitas, quando sorria, prazenteira e bem disposta. Era assim a boa mulher, sempre de serviço, para os arrastados74.
- Ah! criatura que inté p’réces - amode75 - vir lá dos infernos ! Entra alma penada. C’a ta deu76(?!), p’ra vires com esta trabuzana desarcada. P’réces fugida a lobisome, c’um raio ! Aviste algum ?
- Cal-se aí, «ti Norta». Astrazei-me77 por mor do meu Miguelito benza-o Deus e lhe acuda o S. Geraldo que nunca pensei que nosso Senhor me castigasse tanto, pelos pecados que vou fazendo na vida – t’a renego, mafarrico78 ! - disse a Maria enquanto se benzia três vezes.
- Entra lá cachopa. Tira um púcaro de água quentinha do panelo79, e vai-ta tomar um banho. Leva este camisote de dormir e, óspois 80, vem p’ró borralho prantar-te81que tenho lá um «caldo de conduto» com que te aqueço as entranhas, e engano a fome. Vá, maneia-te 82 que eu estou esgalfa 83, e vou andando c’uns jaquinzinhos84 de escabeche85, que óscreceram 86 d’onte87.
Tomado o banhito na celha, a Maria atou uma corda ao camisote que lhe assentava compridote88, apressada a sentar-se no mocho, perto da lareira, onde uns cavaquitos ardiam, fagulhosos89, aquecendo a casinha90, ao mesmo tempo que distraíam

o olhar. Enquanto isso, a «ti Norta» limpava com o sorrascadoiro91 a cinza do borralho, juntando-a num montinho, para ao outro dia a despejar no quintal, na horta dos alhos.
Retirado da trempe e destapado o panelo de onde fluía um odor que pareceu à Maria descido das alturas, com a cônchara, a «Velhinha», boa acolhedeira92, retirou um atafulhado caldo de sustância 93. Uns feijões vermelhos serviam de lastro a um naco de toucinho entremeado94, escondido no meio de umas couves tronchudas, a que se juntavam umas rodelas de linguiça95 que conferiam ao caldo, sabor divino.
Finda a vitualha - o caldo bem aviado - que teve o condão de retemperar forças, a «Norta» retirou do lume uma cafeteira enegrecida onde bolhava um café misturado com cevada. Que verteu para uma meia, para assim coar o trote, despejando-o em duas malgas de «cavalinho»96, botando-lhes 97 lá para dentro pedaços de pão de centeio, que embebidos na mistura líquida, negra, tinham o dom de espevitar o bebericador, criando disposição para um dedo de conversa, ao caso, entre duas falastroas98, daquelas de, morrendes s’a não falendes99.


- Atão nobedades100 lá da bila101? Disqu’102 «Afecta» está outra vez pranhuda103 do Padre Jordão. Raios!... de cadela aciada104... q’apréce uma simprinhas105, a beata.
Sempre com o pé a puxar p’rá trízia106. E o sacripanta108, invez109 de
guardar respeito à nossa Senhora, com quem diz «casara», anda é a embarrigar 110a eito111, tudo o que tenha saiote d’alevantar112.
Por falar em embarrigar ; aqui òstrasado113, a Rosa «Gueira», contou aqui na venda, que o Balacó esfanicou a cancela114 à Amélia «Cachina», e iu-se115 lá p’ró sule116, sem dar òstifação117, deixando a  
inxerida120, a oivir121 as marmurações 122 - sua esta sua aquela123 - à espera de um esgalhudo124 que a queira naquele estado, fora dos conformes.
- É, pois astão125 ...e não foi tómorólha126 nenhuma, «ti Norta». Estava mesmo a ver-se que tal assucedia. Ele era um taralhão 127 ; p’racia128 pião a dar rapóla129 .
- E por cá ? - deu de perguntar a Maria, sabe-se lá porquê. Ou já vai saber-se. Esperem, que neste mundo tudo tem explicação.
- P’orqui130 nada òsdenovo131. O Tóino vindo lá do norte, inté p’réce que pensa ficar. Mas inda 132 não arranjou testo para a panela133.
- Ora vai daí. «Testos» é o que há mais p’rài134 - diz a Maria parecendo desinteressada da novidade.
- Pois é ...rapariga, e às vezes as que mais desdenham são as que mais querem comprar - responde a velhota deitando um olhar malicioso e inquiridor ao sorriso bonito que tinha surgido na carinha laroca135 da Maria - para logo acrescentar :
- Sabas o c’a te digo136 : o rapaz não é mancatufe137 nenhum, e inté p’réce 138que teve mãe fidalga. Poucos andam por aí da sua ogalha 139, oiviste 140?! Não é despescado141 nenhum ! Bota142 olho p’ràs tainhas a fazer borlido 143, à tona d’auga, mas só p’réce que procura peixe lá do fundo, peixe branco, como virgem. E mofa c’uas chaputas144. Que não são p’ró seu tempero, como fez à Rosa «Delambida», doidinha d’astrepar145 por ele acima, como se o rapaz fosse uma enxárcia p’ra todas assuvirem146ao mastaréu.
Os olhos de Maria faiscaram, desprendendo um fulgor de desejo vindo lá do íntimo do seu ser, como que dizendo : «aqui estou !».
(....)

Nota: todos os “ilhavismos” estão,no original, traduzidos.


domingo, setembro 29, 2019









POSTAL DA COSTA NOVA
Manhã cedo, que a cama nunca fez bem a ninguém senão para morrer mais comodamente instalado, já que para o resto, para os actos mais lúdicos, a palha e areia, são bem melhore aconchegos, saí para o passeio habitual.
Jogging, como agora sói dizer-se, né?
A ria esplendorosa. Estanhada, nem uma tainha nela bulia. Sol brilhante, já bem alcandorado, depois de trepada a serra do Caramulinho onde, aqui e ali, ainda se avistavam uns farrapos sem contornos definidos... O sol invadia tudo, escorraçando a neblina matinal.
Com espírito (já) bem desperto, deixei-me contagiar pela frescura
da manhã, reforçando a alegria de sobreviver a mais uma noite, Apetecia-me ficar ali, suspenso das horas, imutável na paisagem.
Foi pois, um prazer, ir por aí abaixo de um modo tão leve, alegre, quase que num sentimento de imponderabilidade.
Oh!!! Se alguém com o espírito criativo tivesse reposto na beirada da ria, frente ao palmeiral, a antiga esplanada, e tivesse criado um ponto de passeio e lazer, que requalificação se teria feito a esta linda, intrigante, irrequieta e volúvel Costa Nova!... Coisa bonita só de ser imaginada. Mas adiante.
Eis que lá do sul, vinham duas pescadeiras ainda desempachadas, em passo mexido, firme e decidido, em conversa galhofeira. Chegadas à minha beira, abrandaram.
E uma delas (ambas sessentonas), uma trajada de luto elucidativo dirigiu-se-me, sorridente:
– Oh meu senhor, acha que somos velhos?
– Quem? – perguntei... Todos nós?...
– Sim... sim... respondeu a rir-se...
– Não; acho que somos já... é um bocado usados, atalhei.
– Oh estupor, diz a outra, eu que pouco ou nem usada fui.Mas tu que de tanto uso até criaste ferida nas costas, de tanto as esfre- gares na areia...
 – Ora, ora... se mais usara, mais gozo me dera, filha... Quanto mais uso mais òstificação... raios.
– Tem razão, mulher; o que é preciso, é amansar a fera... adiantei eu.
– Pois tem razão, amigo – disse a desbocada já com intimidade ganha num minuto. Mas é que o «bichano» aqui da Josefa só bebia e ronronava. Pouco ligava à «bichana», ògadinha por uma festinha.
– C’alte aí, sua esculhambrada, atira a Josefa ofendida. Olha que o Toino (Deus o tenha no céu e lhe dê o que lhe tirou nesta vida (dizia a Josefa, enquanto se benzia), inté era danado prà brincadeira. Só que depois com o espinhaço e as rezas daquela marafona, a Cláudia do Zé Linguiça, foi-se abaixo do espinhaço. E do resto, rapariga. O pobre bem queria, queria... eu que o diga... mas fio torcido não passa por buraco d ’agulha.
– Ensebasses o fio, rapariga...
Há dias que nascem bem. Dias bons para se nascer. Também. Mas, absurdamente desgraçados para se morrer, se for esse o caso.
Porreiros, para um recém-nascido se interrogar: valerá a pena? Mas, absurdos para ponto final à dúvida.

Senos da Fonseca


  67.   Poemas de Abril Abril: síntese inalcançável Já não há palavras  Que floresçam Abril,  Nem já há lágrima...