domingo, abril 25, 2021

E vai mais um. ABRIL … (sempre!)


Diluo-me na corrente da vida

Que vai, passo a passo,

Levando o que resta de mim.

Uma coisa por certa faço:

Vou indo …mas vou de frente.

Nunca virando costas

Ao desafio que é viver.

                       [Assim quero ir até morrer.


Tenho como emblema,

Ninguém o pode negar,

Que fui apodrecendo

Virando cada página sem desalento.

Nunca cantei por ser poeta,

Nunca fui pomba em procura da paz;

Lírico ou cobarde na hora de dizer não… 

                                                         [isso não!



Continuo a sonhar, 

Só que os sonhos me vão,

Dia a dia, fugindo por entre mãos.

Seguro nelas, enfeitiçado

O cravo rubro  que num dia

De amor nosso, inventado,

Colhi de Ti, era já madrugada.


Se eu morresse hoje, amor

A ria continuaria o seu fadário.

As gaivotas viriam livres, esvoaçantes,

Ver o mar enorme, infindo (!)

Morrer na praia ao entardecer. 

E eu deixaria de estar à tua espera,

Aqui, decentemente a apodrecer.

                                 [a mim próprio me iludindo.


SENOS DA FONSECA



domingo, abril 18, 2021

 


A Tragédia de Juncal Ancho

E, de repente, o tempo chuvoso, como por encanto, suspendeu o incómodo do molha- tolos. Molha-tolos, porque na Costa Nova, mesmo com este tempo, noutros lugares desabrido, aqui, numa sota, salta-se logo para a rua. E claro, de vez em quando, somos surpreendidos por uma garroa.

Saí para o esticar de pernas diário, sabendo que, mais ali ou mais abaixo, encontraria a Zefa e a Tibéria. Ná, elas não eram mulheres de hibernar com um simples ameaço.

E é que lá vinham:

- Esta melhoria de tempo veio para ficar ou não, minhas gentes? inquisilei eu.

- O tempo é como o marinheiro. Nunca se sabe se veio para ficar se para saltar amanhã

Para nova emposta, reflecte a Tibéria. Pois, isso mesmo. Muito arrazoável. 

 - Era por isso que quando o meu Toino achegava, eu não o fazia esperar, não fosse o mar chamá-lo à pressa. E ainda ele não tinha apoisado o saco, e já eu o beliscava, espenicando-o todo, pronta para lhe tirar o «sarro» dos dias de lide, e achapar-nos ao folhelho: á home que ando com uma fome de ti; anda cá meu bardau, que te estrafego. E nem o deixava respirar tal era a força do abraço. Até parecia, mesmo, uma bárrega esgalmida.

- Delambida de um raio q’inté pracias uma santinha…

- Olhe, Ti Zefa – comecei eu – tenho andado a pensar:vossemecês alembram-se da tragédia de Juncal Ancho?

- Ah… olhe que não. Isso foi, sei lá; há que benícias. Eu só ouvi contar, era ainda muito novita. O Ti Gaivotinha, esse sim. Esse até p’rece que era um dos embarcados numa das «ílhavas» que levaram o pessoal à festa. Você conhece a história? – acrescenta…

- Olhe que por acaso conheço, li-a, e também ouvi nos Sete Carris, à Ti Tuna, referi-la várias vezes. E como a pretendo contar com mais pormenores, pensei que Vossemecês me ajudassem.

- Atão hoje é você que fia fino e faz a despesa da conversa. Maneie-se que nós atracamos aqui ao murete.

Então aqui vai:


……os «ílhavos» eram gente de grande fervor religioso, como sempre aconteceu com comunidades piscatórias. Mais tementes aos santos que à aspereza da natureza que defrontavam.

Não havia orago celebrado pela borda da ria que não motivasse dia de folga das lides, e não impusesse uma ida de bateira, com a família e vizinhos, para cumprimento das promessas que amiúde se faziam – que aquela vida era um «cão». Ao mesmo tempo aproveitava-se o folguedo para convívio, ou para pôr em dia,o atrasado conversalhar com conhecidos de fora, em trautos feitos, vulgarmente, por entre o escorropichar de uns copos de vinho, batidos de balcão em balcão, por entre as vendas do sítio.


De entre os oragos de reconhecido mérito – que festa de arromba elegia e glorificava – o Stº. Inácio do Boco, assumia carácter de invulgar dimensão. A justificar reiterada devoção e consequente visita. O seu altar encontrava-se erecto em Igreja, lá em cima debruçada sobre a ria, sita na colina que alberga no cocuruto o burgo. Logo ali ao dobrar da carreira da barca da «Forja» – Fareja – onde em tempos idos fundearam as barcas e pinaças de alto bordo que vinham mercadejar, às Gândaras. Era visita obrigatória.

Num dos esconsos becos da chousa de Alqueidão, por onde se alinhavam tugúrios de abrigo, a pescadores, marnotos e saveiros, os dias que antecederam a festa foram de intenso parlatório destinado a assumir presença, mas e também, perlengando sobre as vitualhas a incluir no farnel. Que se queria, coisa de regalo.


Chegado o dia, o «Zé da Preta» mai-lo «Thomé da Fidalgota», embarcaram amigos e familiares nas «chinchas», desocupadas e escorreitas de tralhas e estrafegos, onde se aconchegaram vinte e duas almas devotas. Ainda o sol não despontava, desgarraram do cais da Malhada aproveitando para isso a maré que já montava. Partiram alegres, folgazões e prazenteiros, para uma grande jorna que parecia ser capaz de pôr ameno no estupor de uma vida danada. O aquilão dava boa mareação. E quando o dia amanheceu, tinham já na amura de bombordo o palácio dos Botelhos. A manhã acordava com os maçaricos alvoroçados em matinas em procura do primeiro alimento. O sol a levantar-se, em hóstia de vermelhão suave, prometia jorna acalorada, deixando ver a serra desempachada de névoa, limpa lá para cima onde os montes luziam com o farfalho da manhã. Para outras bandas, onde um outro santinho de especial devoção destas gentes, o S. Geraldo, tem o seu pousio, na serra erma.

Vogavam enfarpelados a rigor, os romeiros. De calção branco largueirão, que se estendia até ao joelho encobrindo perna tisnada pelo sol e maresia; barrete descaído sobre o dorso, e camisão de linho, aberto, que deixava entrever o torso de gigantes da laguna. Elas de cara rija. Onde fulguravam dois olhos em brasa, ardentes e brejeiros, engalanadas por chapelinho de veludo preso à nuca por lenço de merino garrido; chambre branco cingido ao colo.Que pedinte de afago sensual repontava nas pregas da camisa floreada. Saiote de baeta descendo rente até aos artelhos, escondendo de olhos gulosos a visão deslumbrante de duas prendadas pernocas que vinham desafogar nas chinelinhas pretas, cingidas aos pés de «gaivina andeira» por cordão de abotoadura. O calor a meio da viagem, fortalecido pelo reflexo na água espelhada da laguna, fazia com que o busto do mulherio se esquivasse por entre o esconder das roupas de aconchego. E que, de entre rendas, brotassem, como pombas brancas aconchegadas em linho, peitos que assomavam e tentavam o olhar de quem, guloseimando, sonhava vê-los. E tocar-lhes. Ou até só aspirar o seu perfume e aconchego.


A aragem do norte cedo lhes permitiu a demanda e o desembarque no cais do moliço; sem delongas – que santos não esperam! – foi (logo) tempo de desembarque e de monta. Por caminho directo se alcandoraram até à Igreja, que naqueles dias treluzia com o seu chão lavado, ensaboado a amarelo, e depois brunido. Junto ao altar dois tocheiros ardiam, ajudando a quebrar a penumbra do templo a que só a porta dava entrada à luz do dia; castiçais de latão do tipo mourisco substituíam em lindeza, que não em valor, a prata afiançada. Só de pousio em outros templos de mais ricas alfaias. Nas paredes em quadros de talha doce, viam-se imagens penduradas de Stª Rosa e Stª Eulália, e outras estampas catitas ou figuras de feições celestes. Prometendo bem-aventuranças por entre copioso (e cheiroso!) efeito de lírios, jarros, mimosas, madalenas e alecrim. Ajoujados em vasos de faiança local conferindo ao templo um doce e suave, e lânguido, perfume celestial.

Hora de ouvir a santa missa. Desbravar o terço benzido, deixar uma esmola, e cumprir o prometido. Satisfeita a obrigação da fé, era tempo de lograr a sombra de uma oliveira – que o sol mordia a terra –, e desempalmar o escabeche mai-las solhas bem emparadas na molhenga. E os bolinhos de bacalhau, que iam assim cumprindo «o antes». Até ao momento de desenfardar o capão esplêndido: – cumpridos que estavam com a dignidade de quem se sente talhado para o fim último do sacrifício, seis meses de cuidada engorda. E que, como «feito» da bem acerejada assadura, exibia um jalme a escodear sem demora, de cuja prática se soltava fragrância divinal. O vinho, em reponta de maré, corria caudaloso pelas gargantas ressequidas que dias de sóis estivais ou de noites de suão tórrido, exsudavam estas gentes da laguna. O Boco, situado nas faldas das bairradas, era sítio privilegiado de boa produção avinhada – fragrante e saborosa. E nesses dias, aproveitava-se a visita para da mesma se fazer adequada publicitação. Assim, não raro, excedia-se o que seria adequada emborcadura, para cedo se atingirem limites de comportamento pouco adequados que, por norma, descambavam em confrontos violentos –verbais e ou físicos – pelos mais fúteis motivos.

Vista a procissão, feitos os últimos escorropichos nos descansos dos tascos do sítio, por entre risos musicais saídos das rebecas dos tocadores de ajuntamentos, e anunciado lá para as bandas do mar o lusco-fusco da noite estival – que embora preguiçosa vinha chegando, e com ela aragem frescota – era hora de partir. Levantaram-se as velas.Era hora de voltar à Vila,pois que ao outro dia, madrugada ainda não acordada, ao primeiro trilo de maçarico cantador era hora de botar o botirão a coar.


Chegados lá para as bandas do pinhal da água fria, o vento tornou-se instável, prenunciando doido corrupio que impedia a boa singradura a norte; as mentes estavam toldadas demais para lhe encontrar o jeito bom para nele navegar. É então que numa golfada rija emborcada pelo través, que a «Preta» vai direito à «Fidalgota» e lhe entra pelo cavername adentro, levando tudo à sua frente .Bico da proa embatendo com violência na cabeça da Zefa, embarcada na «Fidalgota», matando-a de imediato.

Foi o fim; gerou-se uma encarniçada luta mais parecendo uma verdadeira abordagem de corso, com o mulherio em vozearia espavorida ao ver as naifas logo desembainhadas pelos seus homens, que, ébrios do tinto e da odiosa vingança, procuravam sítio e carne por onde se espetarem. Uns ainda dentro da embarcação, outros já na água aonde tinham vindo parar após embate,todos pareciam esquecidos do semelhante «amigo e vizinho», que se tinha, instantaneamente, transformado em figadal inimigo de que só a morte permitiria livração.


Foi uma tarde ensombrada de sangue. Vinte e uma vidas ficaram esventradas; umas dobradas sobre a amurada escorrendo para a laguna, enquanto esbracejavam nos estertores da morte; outras, boiando sobre as águas da ria que desciam para o mar, acompanhadas pelas águas tintas de tanto sangue esvaído.

Apenas um, de entre os romeiros do Stº Inácio, lograria escapar com vida.

À noite, temendo vingança de vizinho ou familiar, tomou lugar numa enviada que estava de partida para Setúbal.E desse modo lá escapou a destino mais do que certo.

O desembargador ao outro dia logo mandou uma patrulha para averiguação do desacato.

No simples relatório que lhe chegou às mãos, apenas constava:

“Das vinte e uma pessoas do foral de ílhavo (sic) desaparecidas, nada se sabe, senão o terem-se ausentado para parte incerta”.

E assim se deu como (legalmente) encerrado, e sem identificação de culpados, um dos piores acontecimentos de sangue fratricida vertido por «ílhavos».

Quando acabei, li emoção nas minhas companheiras de conversa.

- Linda mas desalmada história. Pois. Íamos a todas as festas da ria – Maluca, S. Paio, S. Jacinto. A todas onde houvesse santinho milagreiro. Para lá, ia-se a cantar. Alegres, anchas e vivas. Para cá, vínhamos moídas com o quebranto de tanta folia.

- Pois, diz a Zefa. Parecíamos uma pégorra: para onde vais, Maria (?): – p’rà festa!!!!!! De onde vens, Maria (?): ó tiazinha, venho de onde havia festa.


SENOS DA FONSECA


  67.   Poemas de Abril Abril: síntese inalcançável Já não há palavras  Que floresçam Abril,  Nem já há lágrima...