quarta-feira, março 29, 2023

 




À LAIA DE EXPLICAÇÃO  


A Escola Secundária de Vagos  endereçou uma proposta à Câmara Municipal daquele Concelho,em que indicava o nome de Frederico de Moura para PATRONO ,da mesma .

Aquela Câmara que ainda há bem pouco tempo tinha concedido ,a Frederico de Moura, (a titulo póstumo) ,a Medalha de Ouro numa  cerimónia onde, o então (e actual!) Presidente rendeu -como não poderia deixar de ser! –os maiores encómios  a esta singular figura da cultura Distrital –e Nacional - veio agora reprovar a proposta –por unanimidade!- do Conselho Directivo  .

Os critérios lamacentos, pantanosos , em que se movimentam estas enviesadas interferências da cor politica em decisões que deveriam requer o cumprimento estrito de normas valorativas compagináveis com a especificidade do fim –Patrono - revela um clara menoridade de probidade intelectual , cívica , e ainda uma vil ingratidão por uma  figura que se alcandorou muito para lá das tricas politicas da vida.

O  exemplo de Frederico de Moura  ficará para a HISTÒRIA  ; a  «estória» da reprovação da sua indicação para Patrono, pela Câmara de Vagos ,ficará em rodapé .Não tenhamos dúvida.

Entendi por isso enviar uma carta aberta ao Dr Rui Cruz , Presidente da Câmara  Municipal de Vagos . 

Porque a tal me «obrigava» , o reconhecimento por Frederico de Moura .

E Já agora !...

Não fora o deéice cultural nesta terra de Ílhavo ,atingir o desaforo de vergonha colectiva , apeteceria perguntar :- para quando o reconhecimento público àquele ilustre,   pelo  muito que deu à cultura Ilhavense do Séc. XX? 


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CARTA ABERTA

Exmº Sr Dr  Rui Cruz:


Illmº Presidente da Câmara Municipal de Vagos

 Tenho vindo a acompanhar - com alguma perplexidade -, a questão gerada pelo veto dessa Câmara à proposta do Conselho  Directivo da Escola Básica de Vagos , no sentido de, à mesma, ser atribuído o nome de FREDERICO DE MOURA , para seu ilustre Patrono.

 Sobre a reprovação –e desde já quero deixar isto bem claro -desconheço tudo o que, para além  do que vem expresso na Comunicação Social, possa a questão enformar.

 Por isso, da leitura decorrente do que vem sido tornado  público ,  julgo – julgo !- ficar com a percepção  que o não acolhimento da sugestão do referido Conselho Directivo  por parte da Câmara de V Exª , não contará com o « entusiasmo e concordância » de V Exª. E isso, é para mim compreensível , pois, tendo estado presente na justíssima homenagem da entrega da Medalha de Ouro ( a titulo póstumo ) a FREDERICO DE MOURA , tive (aí) o grato prazer de aplaudir V. Exª, aquando   das elogiosas – mas muito justas e bem a propósito – referências, feitas ao homenageado .Devo dizer a V Exª que as aplaudi na essência , na virtude das mesmas ; mas e também, devo confessá-lo, no «acessório», porque  V. Exª ao trazer o elogio ao visado – figura em vida , não alinhada com as cores politicas defendidas  por si - separou-se da mediocridade reinante e transversal que percorre o pais ,  da miopia geral dos anti-valores que se vão ,impunemente ,sentando nas  cadeiras do poder ,  delas fazendo local privilegiado para daí ressumarem o  fel bilioso , sobre quem não é dos seus . V Exª, julgo tê-lo bem presente , salientou –e bem – que Frederico de Moura já não era «deste ou daquele» ,mas de «todos» , pelo exemplo de vida  ,pelo testemunho de cultura viva que nos transmitiu  ,que não tem cor, data , estatuto ,ou especial destinatário, pela exemplar  universalidade da prática cívica, já que  visava,  tão somente, a aproximação entre cidadãos  da comunidade  a que deu o seu melhor..E que pelo valor ,ultrapassou as fronteiras da mesma ,  afirmando-se  com uma dimensão supra distrital , e, até –não tenhamos rebuço na afirmação -,  com estatuto nacional. Cumpre-nos, por isso ,admirar essa figura ; admirá-la e sentirmo-nos – todos!... os que foram tocados pelo magnificat da sua vivência – nós também ,engrandecidos .


 Ora  foi nesta contingência  de Homem lisonjeado que conheci V Exª e, por isso,  não crendo  se tenha dado o caso de V Exª ter-se  transviado de opinião a respeito de Frederico de Moura , sinceramente ,não vejo  razões para uma hesitação deste tipo ,salvo se ,contrariando a sua vontade , alguns próximos do poder de decisão tenham «forçado» ,agora , o caminho ínvio da «deslucidez».

Esgrime-se a justificação da reprovação dessa Câmara à proposta do Conselho Directivo   ,com o facto de existirem outras figuras «Vaguenses» ,merecendo ,elas também, essa titulação . Não duvido…  .

Desconheço, por meu mal – e não porque lhes falte compleição cívica para tal - as referências «encabeçadas»  por tais «Figuras»  para ombrearem com Frederico de Moura   no investimento em papel de tão exigente qualidade –a de Patrono  de um estabelecimento de ensino -, o que exige uma súmula de valores não ao alcance do comum dos Homens . Longe de os julgar,  porém ...  

Mas o que eu penso é que tendo o Conselho Directivo da Escola proposto o nome de Frederico de Moura –e só o dele  ,e não qualquer outro mais - só havia que responder ; ou sim ou não…

Explico-me ..

 Se  a resposta da Câmara de V Exª fosse Sim :- tudo bem , virtude para a escolha da Escola , a principal interessada na bandeira no hastear de tal bandeira  …e fazer gala na sua  mostra.  Se  fosse não , haveria que dilucidar sobre as razões que enformam o veto ,   nunca - entendo eu -, pela evocação de outras hipóteses que não tenham sido sugeridas. E que o não teriam sido ,certamente, por razões de clara opção perante os requisitos a que o  Conselho Directivo pretendeu dar resposta .O NÂO,   por transparência  e frontalidade, deveria vir acompanhado  das razões porque  entende,  essa Câmara ,  não satisfazer   Frederico de Moura  condições  para tal  . Doutro modo não se clarifica , ou  se empresta justiça :- baralha-se …para tornar a dar . 

Sr Presidente : 

V Exª saberá tão bem –ou melhor - que eu , que O Patrono de uma Escola ,é algo singular, muito diferente do acto de «pregar»  uma placa numa ruela ou fontanário, uma referência que pouco maior interesse terá, do que prestar uma boa colaboração aos serviços postais .

No Patrono  de uma Escola  de adolescentes que sobem para a vida ,  pretender-se-á  ver uma   figura de onde jorre húmus suficiente para «povoar» o sonho  desses  jovens que a frequentam , servindo-lhes de exemplo nos anos iniciáticos  da aprendizagem do conhecimento ,instigando-os a uma constante  abertura para  uma formação sólida ,mas e também, diversificada. Ao Patrono «compete» incitar no rasgar de campos de curiosidade , iluminar horizontes de saber  despertar a paixão  das paisagens da cultura onde se não perca a referência a valores, mesmo quando essa juventude se vir ,já embrenhada  na lufa- lufa do quotidiano   

Ora Frederico de Moura foi um exemplo superior dessa inquietação permanente, apostado  numa aprendizagem  continua e prolongada, em verdadeiro sacerdócio « de colher  muito, de muitas coisas». A  formação assim conseguida  enraizava-se   na ânsia desmedida de  conhecer -e dar a conhecer – o resultado do permanente  «diálogo» que travava  com os mestres ,em  cujos livros,  insaciavelmente, abafava a exegese do saber   e  que, depois, incapaz de os «pôr em reclusão» só para  gozo intimista , vertia-os de uma maneira viva e apaixonada sobre  os  companheiros de vida ou, tão só, de esporádica jorna ; tudo e todos, lhe mereciam o acto  fraterno de partilha  . Discorria com uma segurança incrível , não programada , genuína e de momento,  com uma  referência que ia da clareza e disciplina metódica de  Descartes  à filosofia critica   de Kant ,ou ao koinos –logós  Socrático , numa  imensidão temporal  povoada de referências a  «quem pensou e por isso existiu» ; ora  rumando a um outro campo ,para aí  patrocinar «providência cautelar» contra (alguma) novel   literatura de cordel ,  escanzelada se  confrontada com a  arte dos Senhores, de Seide ou  de Tormes ,de Sernancelhe ou  de Anta . Deleitosamente sensível  á criação artística , Frederico de Moura não perdia a ocasião, se ela  se ajustasse ao momento ,de nos dar conta  do contexto económico ,religioso e social vertido na linguagem do maneirismo de Domenikos Greco ,ou, levando-nos pela mão para a “Aula de Anatomia” de Rembrandt, ou ainda , maliciosamente,  descrevendo-nos  as obscenidades de “Las Majas”  de Goya ,   sublinhando-nos a atmosfera –temporal e espacial -  em que se teriam  desenvolvido as mais belas peças saídas do génio artístico do Homem. E quando o voar tinha tectos mais baixos, sublinhava com « ternurenta » amizade a teia, díspar mas frutuosa,  em que se enredou João Carlos, colega de proscénio na profissão e  na cultura  , degustando  com requinte de apreciador insaciável   o multifacetado empenhamento do «ílhavo» na resposta aos sinais que lhe inundavam a imensidão da   inquietude  artística que procurava satisfação nas mais variadas formas em multifacetados   ensaios  (pena ,goiva ou simples lápis)       

Difícil é , em Frederico de Moura ,distinguir o homem do intelectual, pois nele as duas afirmações  conviviam em permanente e absoluta simbiose .Mostrou uma insaciável disponibilidade para tudo quanto à condição humana  se põe em desafio , assumindo o desassossego de uma alma inquietada pala necessidade do renovo permanente do «sujeito» da mesma .   


Era um espírito «em  graça» de recolha de impressões   maravilhadas  da natureza , e nesta , deteve-se  em  particular atenção  ao espaço geográfico onde fincou as suas  raízes  ; desconfio que ninguém –e foram muitos e grandes que o tentaram fazer – descreveu como ele o Homem da Laguna no confronto suado  com a paisagem. Um dia confessou-me emocionado ; “Sabes – disse-me  enquanto  vertíamos o olhar deslumbrado sobre os tons em constante mutação , que a ria nos ia exibindo  –das coisas de que levarei saudade quando me for ,é da maravilha desta ria que me preenche o ser e me desperta o afago de todo o meu olhar”.A admiração é o principio da ciência de todas as ciências ,;mas é-o também da própria transmissão dessa ciência..Isso era –Lhe intrínseco…

Tinha uma minúcia de observação  para a paisagem humana contemporânea   , vincada  nas pinceladas impressionistas com que retratou, numa perfeição  estética sublime, figuras   que o tocaram  profundamente. Tinham um fio comum esses retratos que nos legou : exaltavam com a mesma força com que o escopro deixa ruga na pedra ,   numa minúcia de observação e  de rigor anatómico , de um  modo objectivo ,probo e escrupuloso , os valores vitais dos biografados , catando minuciosamente os sinais com que  justificava a impoluta compleição moral ,intelectual ou humana do retratado.    

 Foi um Homem fiel ao   Povo da Terra  que serviu em sacerdócio de  entrega, com um grau de  competência invulgar .Mais do que invulgar : notável, a excepcional bitola profissional que lhe era reconhecida por todos os Colegas com quem convivia de perto ,e mais ainda ,  por muitos daqueles com quem ,por razão profissional , longe do seu meio , conferenciava . 

Por tudo –e eu sei, que o que  não  sei sobre tal figura ,é imenso !  -  não me restam duvidas que não seriam apenas os alunos a recolher a benfeitorias de exibirem «um tal Patrono» ; Os Mestres, esses também  , teriam em Frederico de Moura um notável exemplo de pedagogo de todas as horas, de todas as circunstância ,em todas as vertentes humanistas . A ciência pode estar contida nos livros ;mas a vida , a largueza de horizontes ,a profundidade  a inteligência ,essa tem de brotar do Mestre ,da sua paternidade espiritual , assegurada pelo prestigio. Quem melhor do que ninguém no caso vertente ,reúne esses requisitos ?:-importaria saber-se…

 Porque , julgo mesmo que  em   Frederico de Moura estava  ,afinal , o excelente pedagogo, o Mestre  de uma matéria multidisciplinar ,complexa exigente a  que se chama, VIDA .  

Espero sinceramente que V Exª tenha a força e coragem suficiente para corrigir   –a bem de Vagos –  tal iniquidade.

Respeitosos e atentos cumprimentos 


Senos da Fonseca

     

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Nota: O texto acima foi  enviado ao então Presidente da Câmara Municipal de Vagos,aquando da polémica decisão daquela Câmara ter negado  o pedido que lhe foi dirigido pela Eecola da Vagos,para atribuir á mesma o nome de FREDERICO DE MOURA ,como  seu Patrono. Porque entendi trazer de novo á lembrança Frederico de Moura,aqui publico a mesma.
 SF

segunda-feira, março 27, 2023

                          O “Tombo das Águas da Vila”- Séc.XIX-XX


 



1- Az Ti Mário      2-Az Pericão     3-Moinho Pericão.    4-Moinho Ti Augusto Moleiro  5-Az João Tanoco.       6-Az Ti Augusto Moleiro.   7-Az Augusto  Moleiro (Pai)         8-Az Ti Resende     9-Az da  Quinta  10-Moinho Vento “Rebochos”


                                                   


   .                                                                                                    

De há muito que tenho desejo de deixar para informação futura,um "Tombo" (?!) das águas da Vila. 


                                                            Moinho dos Rebochos (foto cedida por J.Parracho)


Faço-o por duas razões:porque fui ainda testemunha destas unidades produtivas (salvo do moinho do Cambarnal de que não tenho ideia).E porque admito que ,perdidas referÊncias será ,no futuro, muito dificil fixar,geograficamente as mesmas.Nos contacto  pessoal  de busca de informações, raramente encontrei pessoas que se lebram das mesmas.Certo ,porém,é que encontrei (ainda) trabalhadoras,quer do Moinho e Azenha dos Rebochos,mas e também, do Moinho e Azenha dos Pericões( uma habitante  num anexo do moinho,cujos escombros são visiveis)


Senos Fonseca- 2 023


Se houver anotações ou informações(correcções) serão bem vindas.


Senos da Fonseca
                                                                                                          

 MÁRIO SACRAMENTO (1920-1969)


Mário Sacramento nasceu em Ílhavo, em 7 de Julho de 1920, na casa da sua família, ali ao Largo do Oitão.


                                                    

Filho de Artur Sacramento, comissário de bordo na Marinha Mercante (homem muito culto, possuidor de um grande carácter e sentido de vida, figura altruísta e solidária – será um dos primeiros Comandantes dos Bombeiros Voluntários de Ílhavo– e de Rita Sarmento, cuja família vinha de pesado tributo pago nas lutas Liberais de 1828. O convívio com esta família materna, muito próxima de figuras proeminentes nas lutas por uma nova ordem de liberdade, de igualdade e fraternidade que tinham ido beber à Revolução Francesa (de onde se destaca o tribuno José Estêvão cuja esposa era madrinha de D. Rita Sarmento), teria tido, certamente, influência no jovem Mário que, habitualmente, passava grandes temporadas em casa da família materna. Como ele mesmo  recorda no seu « Ave Aveiro »:

 “Sob os lampiões dos Arcos, Rua dos Mercadores abaixo, vogavam bateiras conduzindo os teus íncolas (ia a dizer os teus doges) às soleiras das portas. E eu batia palmas de menino com brinquedo, na janela da avó. Casa escura, com mofo a rato, olhares do José Estêvão no louceiro antigo, um opúsculo do Marques Gomes a dizer-me que um tio de antanho fora decapitado pelo D. Miguel, grades de pimpons nas sacadas de pedra antiga — em que um dia entalei a cabeça (para retomar essa tradição, quem sabe?), tendo sido liberto, depois de muito suor e ferros, por um serralheiro do Mindelo”..

Mário Sacramento aprende, autodidacta, o Esperanto. Língua que então se sonhava vir a ser, universal:- “um só povo ,uma só língua “.Jovem ainda, logo em Ílhavo, cria, na AHBVI, uma turma aberta para divulgação da mesma. O Esperanto, acreditava M.S. seria a antecâmara para a união dos povos sob o fim último das teorias marxistas da igualdade, de direitos e oportunidades, que já então lhe despertavam a atenção e o empenho. 

Em 1938 (dez de Junho) a PIDE prende-o pela primeira vez, ao mesmo tempo que proíbe a publicação e circulação da revista «A Voz Académica».Tinha, tão só, dezassete anos.  A prática, o empenho e aceitação das teses vertidas tão precocemente, começavam a ser perigosas –já! - e a importunar o regime salazarista, que antevia com perspicácia - diga-se - ali se encontrar um potencial e vertido subversor do regime.    

Contrariado na sua vocação pelos pais, que o não deixam seguir letras, Mário Sacramento vai estudar Medicina para Coimbra, e completar, depois em Lisboa (1946), o curso. Tempo para aderir ao M.U.D  juvenil, movimento de unidade  cujo fim era o derrube do regime fascista.

A sua vocação para a escrita salienta-se em 1945, quando apresenta nos Jogos Florais da Universidade de Coimbra, o livro «Eça de Queiroz –Uma Estética de Ironia»,distinguido desde logo com o  prémio Oliveira Martins. Neste trabalho, Mário Sacramento  segue o percurso de Eça  (autor a que o ligavam afectos familiares próximos e  exultação pelo  exemplo do avô de Eça, Conselheiro Queiroz que, em 1828, levantara o povo de Aveiro(e do País) pela afirmação suprema  da Liberdade),procurando dilucidar sobre  a influência que nele teria tido a vivência de Coimbra – cadinho onde se fundem ideologias e novos rumos do pensamento– e  assim, descobrir o genial escritor realista, “impressionado execravelmente com o que encontra em Lisboa”

Terminado o curso, M.S. vem exercer a profissão para Ílhavo - onde de imediato tem casos clínicos notáveis que o fazem sobressair da mediania instalada – abrindo consultório na Rua José Estêvão onde passa a viver com a família. O consultório transforma-se em local privilegiado servindo  de ponto de reunião a políticos do contra,  reviralhistas e ou revolucionários. Por isso sempre atentamente debaixo dos olhares  da PIDE que, amiúde, vigia – escancaradamente - os pontos de acesso ao mesmo. Ponto contudo de referência,  como local de atendimento para os mais necessitados que, graciosamente – e  tantas vezes ainda reconfortados com alguns tostões no bolso para a compra dos medicamentos – dali saíam bem agradecidos, reconstituídos  física e materialmente .E que, por  vias disso, o  irão glorificar, ao atribuir-lhe   o epíteto  de «Médico dos Pobres» ,como passa a ser conhecido em Ìlhavo.

O ano de 1953 leva-o de novo aos calabouços políticos. Lúgubres interiores onde irá sofrer as sevícias (que deixariam rasto....)da tortura do sono, ou do plantão em «estátua», com que habitualmente o regime fascista salazarista mimoseia os seus opositores mais perigosos. Responde às agressões, enviando à família escritos cheios de ironia, sabendo de antemão  que a primeira leitura dos ditos, será a dos esbirros. E assim os aguilhoa. Resiste, física, anímica e ironicamente, desesperando-os, bandarilhando-os, como se faz à besta cega.

E, na cela, apesar de lhe chegarem a negar a simples consulta de livros, elabora  um trabalho intitulado «Fernando Pessoa -Poeta da Hora  Absurda » que será publicado em 1958. Um trabalho de que, mais tarde disse, gostaria de refazer, dadas as condições em que foi elaborado. Nele leva-nos à descoberta da essência comum entre o poeta e os heterónimos - embora assuma serem individualidades diferentes– apontando-nos a  concepção geral da vida do vate :– um beco sem saída !

Em Ílhavo os «próceres» locais impedem-no de trabalhar na Misericórdia, tentando coartar-lhe a carreira profissional. As denúncias de colegas e as maledicências,empurram-no para o exercício médico, em Aveiro (1955),onde se  irá  estabelecer em consultório aberto, mesmo em frente do café Trianon.

Em 1955, volta – por duas vezes -  a ser levado para a António Maria Cardoso. O então inspector chefe dos esbirros pidescos, o grotesco  Sachetti (cujas origens se situam em Aveiro),sabe do perigo que representa Mário Sacramento. Ordena por essa avaliação  a sua vigília, dia e de noite, atribuindo-lhe uma perigosidade preocupante para o regime,

Isso não impede  M.S. de  ser o obreiro que torna possível, em 1957, o Iº Congresso Republicano, de que foi o Secretário Geral.

Em 1959 publica «Ensaios de Domingo» e inicia com Óscar Lopes -intelectual de quem ideologicamente se manterá muito perto – uma colaboração literária no jornal «O Comércio do Porto».

Em 1961, como bolseiro do Estado Francês, vai para Paris. No Hospital de St. Antoine tira a especialidade de gastroenterologia, apesar de gravemente doente.( pois que durante a estadia–por deficiência alimentar e ou excesso de labor - contrai a tuberculose).




Regressa em 1962, para voltar a ser preso,de novo, ainda nesse ano.

Em 1966, assume-se crítico literário, colaborando no caderno de Literatura do «Diário de Lisboa». E também na revista «Seara Nova». Nesta colaboração destaca-se o debate sobre a procura de uma «Estética Neo-Realista»,com a inventariação dos autores nacionais que a perseguem. Era importante para Mário Sacramento encontrar nas diversas propostas artísticas –poesia,teatro,novela, romance, ou até na literatura juvenil (e ou  feminina)- formas de expressão da arte. Um retrato das preocupações sociais, um conflituar com a realidade, um assumir objectivo de uma vivência “ideo-sensivel” na posição social dos autores na neo-revolução (que teria de ser inevitável).

Será em 1967 que publicará «Fernando Namora   Obra e o Homem» logo seguido de «Há uma Estética de Ironia?», em 1968.

O Concilio Vaticano II com  as suas conclusões e indicações  que pareciam definir uma evolução no pensamento da Igreja, mais aberto e mais preocupado, mais suportável para o ateu assumido, levam Mário Sacramento a procurar, nas páginas do  jornal «O Litoral»,interlocutores para com eles estabelecer um diálogo com o «credo», numa  procura de pontos e empenhamento comuns, ”apesar” de tudo. Artigos que, mais tarde –já depois da sua morte, em 1971- seriam  reunidos em volume publicado sob o titulo «Frátia –Diálogo com os Católicos ». 


Morre em 1969, nas vésperas do 2º Congresso Republicano de que, uma vez mais, foi o principal obreiro – o fogo que ateou a labareda no requerimento, ainda por ele redigido.  Que se viria a realizar sob o patrocínio do seu espírito, permanentemente presente  do primeiro ao ultimo instante, no «Teatro Aveirense»,onde teve lugar .

Salazar, é certo, estava moribundo. Politicamente morto. Mário Sacramento já não veria a queda do regime para a qual tinha sido um dos mais férreos contribuintes, um dos mais entusiastas e dos mais lúcidos, combatentes. Infatigável e persistentemente activista, ousou lutar contra tudo quanto de retrógrado, representava e continha, o caduco regime  salazarista.   


Mário Sacramento adivinhou na sua «Carta Testamento», redigida em Abril de 1957, onde lúcida e certeiramente faz uma premonição rigorosa do tempo sobrante que,  certamente, lhe iria  faltar para ver a queda do regime salazarento:

“Não viu o que quis; mas quis o que viu “ disse-nos nessa missiva em que ,dum modo terno mas incisivo, nos lança um aviso:


“Façam um Mundo melhor ! Não me façam voltar cá”   

Senos da Fonseca

   









sábado, março 25, 2023

 




                                  

                        


                                      Ao fundo á esquerda  pode ver-se o mirante do Prédio


Quando o Palácio das «CARTAXAS» ardeu. 


 Notícia chegada de Ílhavo, dava-me conta  que,  pela madrugada, a Rua Arcebispo Bilhano(Rua Direita) terá vivido em  sobressalto, causado pelas labaredas que deflagraram do prédio das «Cartaxas», nela situado, pedaço material da história da urbe.               .


E assim lá se vai mais um marco histórico que marcou uma época, quando Ílhavo era uma próspera Vila em procura de afirmação urbana.


Este prédio dava para o Largo do «Rocio» (também na gíria conhecido por largo da Capela),pois  assim se chamava o espaçoso (?) largo que o ladeava pelo poente. Largo que ,curiosamente, tinha a norte, o edifício onde se albergou, no Séc. XIX, a Philarmónica Ilhavense.  No Largo da Rocio  deu,  a 1ª Banda de Ílhavo, alguns concertos, muito apreciados pela população, que, vivamente interessada, ali acorria em alvoroço.

O Palacete terá sido mandado construir no início do Séc.XIX, por um tal João António Cartaxo, emigrante no Brasil. Terá passado para sua irmã Maria Gonçalves de Jesus, casada com  Manuel Teles, progenitor da família “Teles”.


O palacete dos «Cartaxos»,assim lhe ouvi muitas vezes chamar, foi  sede do Tribunal  dos Orfãos e, mais tarde, ali esteve instalado o Centro Republicano.


E ainda, posteriormente, lá terá estado instalado o Sindicato dos Mareantes (assim creio ter sido designado)

      

                                              O Sindicato dos Mareantes


No primeiro decénio de novecentos,  a Câmara Municipal de Ílhavo terá entrado  em contacto com os proprietários (já então, como regista a acta  da CMI, a Familia Teles ) com a pretensão de adquirir o prédio e aí instalar a CMI (até ali  a funcionar   no Largo do Oitão).Admitia, a Câmara, disponibilizar o R/C para a Associação dos Bombeiros Voluntários de Ílhavo, que ali teve guardada a bomba braçal, após 1894. 


                                         

                                Ao fundo o prédio e o seu mirante(foto de JA Ramalheira)


Chegou a acertar-se  um valor, mas certo é que, a Câmara desistiu da ideia, e iria fazer obras no  Convento  das Irmãs de Calais, que entretanto, teriam, pela calada da noite, fugido  e tudo abandonando, em 1910.

No “Palacete” nasceu o poeta Quintino Teles.



SF






quarta-feira, março 22, 2023



Os borda d’auga


A discussão em volta do círculo onde se fazia o repasto – porque aquela gente das companhas não se sabia fazer ouvir baixo, fosse porque quem fala alto tem sempre razão, fosse com medo que o marulhar do mar lhe comesse os sons e lhe abortasse a ordem – versava não só o azar ou a sorte da pescaria do dia, as peripécias do lanço, mas também as previsões sobre o tempo que faria amanhã. O pescador sabia ler o tempo e ver nos sinais que vão acontecendo, deles retirando as conclusões para o que o espera amanhã em nova arremetida. É um saber adquirido e transmitido de geração em geração, passado de boca em boca, de pais para filhos, expresso em rimas a preceito.


                                 


                                                             Arrais olhando mar


Absorto, perscrutando insistentemente o mar e o céu, barrete enfiado na cabeça, escupindo a sarreta que lhe unguenta a boca, atento na lua trovejada augoirando que trinta dias será molhada, espera que não venha com vento pois, é certo, com vento do leste não dá nada que preste. A lua e a suas posições servem-lhe para calcular a prenhez da companheira, mas também lhe indiciam o estado do mar. Lua fraca... o tempo irá mudar, pensa...e logo inspira a cachimbada, sorrindo-se do tempo adivinhado.

Mas se o vento norte é rijão, chuva virá à mão; se for suão de Inverno sim, de Verão não.

Se ao pôr do sol estiver vermelho no mar...certo que haverá ‘sol de rachar’.

Quando lá longe vê uma ave que se aproxima e lhe desperta a atenção, logo murmura: em terra a gaivota... é que o temporal a enxota...; mas se descortina estrelas a brilhar... então marinheiro, vai para o mar. Se a manhã vem com arco...mal vai o barco, e se há miragem que espante...teremos...vento de levante. À noite, trovão solto, no céu reboa... violento temporal, nos apregoa...


                            

                                         

                                                                Arrais


Dá de emborcar mais um copo, mas com tino, pois quando ao pescador dão de beber, ou já está moído, ou o vão moer.

Eis que a aurora surge rubra... é... vento ou chuva...; se primeiro chuva, e depois vento, à cautela mete dentro; mas se o vento vem antes da chuva...deixa andar que não tem dúvida.

Interrompe o linguajar para olhar o sopro do vento pois sabe que volta direita, vem satisfeita... ao passo que... volta de cão traz furacão. Não tem muita importância, pois sardinha de Abril, pega-lhe no rabo, deixa-a ir e mesmo não é boa a solha que o pão não molha.

O vento é de rachar... aguarda, pois depressa deve calar.
Dia para ele é aquele do rosado sol posto, cariz bem disposto, bem diferenteda vermelha alvorada... que vem mal encarada, pois que lua à tardinha, com seu anel, dá chuva à noite, ou vento a granel; é tempo de amarrar o barco e ir-se abrigar, que barco amarrado não ganha frete.

Se há arco-íris ao anoitecer, certo é termos bom dia ao amanhecer; arco-íris ao meio dia, é certo chuva todo o dia.

Tudo ao pescador/arrais serve para ajudar na previsão: o marulhar da onda, o correrio das nuvens, o seu esfarrapar ou o seu engrossa- mento; os cinzentos claros ou escuros das massas de algodão indicam- lhe as proba- bilidades do lanço de amanhã. O arrais é o guardador do rebanho. Inventar palavras para o descrever (?!): para quê, se já foram escritas as mais belas, por Maia Alcoforado, vertidas com o coração, pois, quando falava do mar, Alcoforado sentia o cachoar enraivecido das suas águas batendo contra a mu- ralha do peito, aniquilando-lhe as saudades.

Do arrais disse:

Barrete negro, da cor dos aguaceiros, encafuado na cabeça até à encapeladura das orelhas, de borla caída a um lado sobre o ombro, a pendular sorumbática despretensiosa ironia.
Cachimbo à amurada golfejando novelos de fumo em espalhafatosas cabriolas, que até pareciam de carvão a arder na fornalha enorme dum navio de longo curso. E a embrulhar-lhe o peito, mais rijo que um cepo, o blusão de flanela salpicado de cores, onde arrecada a onça mail’o cachimbo, os lumes e o lenço d’Alcobaça –  quase tão grande    como as bandeiras do mariato.


Triste é o dia em que o arrais vê chegar o bando de maçaricos, pois é sinal dos céus a indicar que, a faina está acabada, e que, o Inverno, está a chegar. Tempo pobre, de privações, de puxar o barco para o cimo das dunas, recolher os bois e safar o cordame. Tempo para se agarrar ao remo do botirão, amanhando-se na ria a pescar uns xarabanecos com que vai matando a fome aos seus. Tempo de botar faladura na taberna, catando as agruras daquela vida estipurada onde um home bom... na medra; vida de perigo, vida sofrida, de dor e raiva, onde se praticaram actos de demência heróica que imortalizaram esses seres de forças hercúleas, figuras talhadas no cerne de pinheiro bravo de onde são feitas as cavernas do seu meia lua. O ílho da beira-mar escreveu as páginas mais brilhantes dessa faina, que, a alguns, hoje, parece a menor, mas que – bem pelo contrário! – por ser tão grande, não caberia sequer nas laudas da maior.

Como diria o Ançã: fraldocos!...


Senos Fonseca


 




                                  

                     


Quando o Palácio dos «CARTAXOS» ardeu. 


 Notícia chegada de Ílhavo, dava-me conta  que,  pela madrugada, a Rua Arcebispo Bilhano(Rua Direita) terá vivido em  sobressalto, causado pelas labaredas que deflagraram do prédio dos «Cartaxos», nela situado, pedaço material da história da urbe.   


            .

     

       Ao fundo o prédio e o seu mirante(foto de JA Ramalheira)


E assim lá se vai mais um marco histórico que marcou uma época, quando Ílhavo era uma próspera Vila em procura de afirmação urbana.


Este prédio dava para o Largo do «Rocio» (também na gíria conhecido por largo da Capela),pois  assim se chamava o espaçoso (?) largo que o ladeava pelo poente. Largo que ,curiosamente, tinha a norte, o edifício onde se albergou, no Séc. XIX, a Philarmónica Ilhavense.  No Largo da Rocio  deu,  a 1ª Banda de Ílhavo, alguns concertos, muito apreciados pela população, que, vivamente interessada, ali acorria em alvoroço.

O Palacete terá sido mandado construir no início do Séc.XIX, por um tal João António Cartaxo, emigrante no Brasil. Terá passado para sua irmã Maria Gonçalves de Jesus, casada com  Manuel Teles, progenitor da família “Teles”.

O palacete dos «Cartaxos»,assim lhe ouvi muitas vezes chamar, foi  sede do Tribunal  dos Orfãos e, mais tarde, ali esteve instalado o Centro Republicano.

E ainda, posteriormente, lá terá estado instalado o Sindicato dos Mareantes (assim creio ter sido designado).                                        



                     
                                                  O Sindicato dos Mareantes

No primeiro decénio de novecentos,  a Câmara Municipal de Ílhavo terá entrado  em contacto com os proprietários (já então, como regista a acta  da CMI, a Familia Teles ) com a pretensão de adquirir o prédio e aí instalar a CMI (até ali  a funcionar   no Largo do Oitão).Admitia, a Câmara, disponibilizar o R/C para a Associação dos Bombeiros Voluntários de Ílhavo, que ali teve guardada a bomba braçal, após 1894. (Ver História da AHBVI)


                                      

Chegou a acertar-se  um valor, mas certo é que, a Câmara desistiu da ideia, e iria fazer obras no  Convento  das Irmãs de Calais, que entretanto, teriam, pela calada da noite, fugido  e tudo abandonando, em 1910.

No “Palacete” nasceu o poeta Quintino Teles.

Até hoje, creio, o prédio encontrava-se desabitado..


SF




segunda-feira, março 20, 2023



DIA ASSINALADO:


E cumprido .Não porque só "OS" visite, hoje .Não, faço-o todas as vezes que vou lá, ao coração do silêncio .

Mas hoje detenho-me , a pensar …

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REPOUSO ?...

Encontram-se, neste dia, muito amigos,alguns que, quase só, nesta data, revemos .

Um, disse-me :

-Está bonito este lugar de repouso …não está ?

-Está ,sem duvida .Só que eu não acho que seja de repouso; uns estão penosos de nada terem feito; outros amarfanhados de tanto terem feito. Reconhecendo que podiam ter feito mais .Outros parecem descansados porque julgam terem feito tudo;  danadinhos por não virem cá fazer muito mais ...,respondi séria e convictamente.

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QUERIA SABER A VERDADE…

Assinalado ou não,sentimo-nos perto de compreender, que, inexoravelmente, se aproxima o dia de desapego .

Que importará mais : estar vivo e viver uma existência morta,ou estar morto deixando uma lembrança viva?

Faz sentido a vida ? Faz sentido dizer que a velhice é que sabe,quando na verdade apenas sabe que cada vez menos sabe .

Olho para os «meus» ali tão perto,mas inacessíveis,que é impossível que lhes não faça a pergunta : - vivo ainda uma existência realmente viva ou já inconsciente moribunda?.

Só «Eles» saberiam, com franqueza, dizer-me a verdade .

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RESPEITAR A INTENÇÃO …
A única esperança que parece nos vai restando, é que os cemitérios sejam lugares em que possamos confiar. De que lá -ao menos –nos respeitem a intenção, quando já não houver lugar para actos.

Senos da Fonseca


sexta-feira, março 17, 2023


 
História do CONVENTO de Cimo de Vila.A polémica.


Em 1922, o jornal «O Ilhavense»,  publicou a resposta negativa dada pelo Ministério da Justiça em ceder, gratuitamente, à Câmara, o edifício do Convento. Essa atitude derivava do facto de,  o Convento ter estado completamente abandonado, e teria, por isso, revertido para o Governo. O Convento, diz-se no ofício nº15013 de 20 de Janeiro de 1922, do Ministério da Justiça, pouco ou nada mais era, que um montão de ruínas, pelo que, o Ministério, decidiu mandar avaliar o edifício. Seria por esse o valor que estaria disposto a cedê-lo à Câmara Municipal de Ílhavo, já que a esta, nem sequer era reconhecido o direito de ficar com os bens pelo valor de avaliação (concedido às entidades que fossem depositárias dos mesmos a titulo precário), dado  aquela ter abandonado o prédio.

 A Câmara acabaria por adquirir o imóvel pela quantia de 18.500$00,

                            Acta da reunião de 24/07/1922 da aquisição do Convento 


nele tencionando instalar os Paços do Concelho,  depois de efectivar obras de restauro. E para lá transferir as escolas que até aí vinham funcionando em casa particular, de que  pagava renda mensal.

Em 1925, estalaria uma explosiva e truculenta polémica, que poria Ílhavo em alvoroço. Em «O Ilhavense», o Dr. Manuel Damas (e outras vezes o Director Pereira Telles), envolveu-se de um modo violento, por vezes patético e nem sempre decoroso, com uma outra facção politica local chefiada por Eduardo Craveiro, este  utilizando os jornais, «O Debate» de Aveiro (de que era correspondente) e «O Beira - Mar», de Ílhavo, para defender as suas posições,  respondendo  nos mesmos  termos,  ácidos até ao insulto. O pleito tomou forma de escândalo público, assumindo dimensão que extravasou os limites locais. 

A questão em torno da qual se movia a diatribe, residia na acusação feita por M. Damas do descaminho dos valiosos haveres do Convento de Cimo de Vila que, as irmãs de Calais teriam abandonado pela calada da noite, em 1910. Ora, para administrador (ou depositário) desses bens abandonados, teria sido nomeado pelo governador civil de então, uma Comissão de que fazia parte o Presidente da Câmara, Eduardo Craveiro, depois de feito competente arrolamento em Outubro de 1910.

Movia Damas, para lá da rivalidade politica, a suspensão de actividades a que tinha sido sujeito por um período de três meses que, o mesmo, considerava ter sido consequência de acusações graves que os republicanos lhe teriam feito.

Antes de irmos à polémica revisitemos um pouco da história do Convento.   

                                

                                           O  Convento (?) transformado em Escolas

No Arquivo Distrital de Aveiro, num artigo em que é referido o irmão pouco lembrado, de José Estêvão, António Augusto Coelho de Magalhães, refere-se que, uma das causas da sua doença teria residido no facto de, uma sua filha, ter fugido para França, juntamente com outras quatro companheiras, esgueirando-se do recolhimento onde se encontravam, em Aveiro. Fuga que teria contado com a colaboração de um “tal padre Beirão”, entrando as fugitivas para a Congregação das Irmãs Franciscanas de Calais. Esta fuga, o eco que teve junto da população pelo rocambolesco da situação que pareceu configurar um “autêntico sequestro” (a que não faltou a «clausura» das «desencaminhadas» no recolhimento de «S. Patrício», em Lisboa, antes de saírem para França), levaria à demissão de Manuel Firmino do cargo de Governador Civil do Distrito; Este episódio foi posteriormente utilizado, como «razão» para a feroz oposição à entrada das Irmãs de Caridade, na Misericórdia de Aveiro (1888). 

No período da “convulsão liberal” laicista, gravoso para as Ordens religiosas, numa altura em que o papado de Pio IX pretendeu recuperar algum do esplendor, influência e do poder da Igreja, em declínio desde a Revolução Francesa, em Ílhavo, eram ao tempo, esperadas as Irmãs de Caridade que – dizia-se –, viriam  instalar-se na casa do Padre Morgado (Taboleiros)  a qual para esse efeito tinha sido sujeita a benfeitorias de vária ordem. Mas quem se apresentou a ocupá-la, em dado dia, seriam dois eclesiásticos e quatro senhoras, duas das quais se afirmava, serem naturais deste Distrito; ora uma destas – a irmã BRANCA – era, nem mais nem menos, do que a sobrinha de José Estêvão. Foi pois esta, uma das fundadoras do Retiro da Nª Srª do Pranto das Irmãs Hospitaleiras da Terceira Ordem Regular de S.Francisco, onde se ministrava “ensino gratuito a meninas, especialmente a filhas de pescadores”, e funcionava  já…, espante-se! - como um verdadeiro, «Jardim-de-infância» ”pois receberia as crianças com menos de três anos, às horas em que as mães estariam ocupadas em outros afazeres”.

As Irmãs da Caridade fariam parte do contra ataque do Papa Pio IX, destinado a recuperar o esplendor da Igreja e a influência que aquela vinha perdendo em toda a Europa, desde o período da revolução Francesa. A esta posição, respondia, em Portugal, um «novo catolicismo» que rejeitava liminarmente a (nova) piedade surgida,  a que se  referiam, entre outros, A. Herculano e Oliveira Martins, afirmando “não ter esta, nada a ver com a antiga religião”. As Irmãs da Caridade – «importadas» de França – “fazendo parecer que em Portugal já não haveria entre nós quem detivesse o espírito de caridade”, foram vistas como sendo uma emanação do espírito jesuítico. Por isso, prontamente denunciadas pelo radicalismo que as associava a uma prática, onde “nem cabia a visita aos pobres”. Gozando da alta protecção dos «grandes e da igreja», estariam, por isso longe de merecer o apoio popular, pois, dizia José Estêvão “o culto externo das Irmãs é pouco consentâneo com as formas, com os costumes, e com as prevenções da autoridade administrativa”. Via-se nas Irmãs da Caridade uma reacção das classes poderosas que, unidas à Igreja, pretenderiam «opor-se» ao ensino da escola pública, no intuito da manutenção do papel hegemónico detido sobre a mentalidade popular. 

Pelo que já anteriormente referimos, a prática das Irmãs, em Ílhavo, especialmente no campo do apoio aos órfãos e aos filhos das mulheres trabalhadoras, bem como na educação das jovens, parece ter merecido justificado reconhecimento, de validade e respeito, muito embora a sua instalação – com as peripécias da Irmã Branca –, e o seu posterior desaparecimento envolto em grande mistério, que levou ao  fim da Instituição, com o confisco de todos os seus bens no País de origem, permitem colocar algumas interrogações, deixando campo aberto a hiperbólico locutório sobre qual seria (exactamente) a sua finalidade última. Mais envolta em névoa impeditiva de  discernir quando, em 1910, se constatou a repentina fuga de todas as Irmãs, – sem qualquer aviso prévio. Perpetada  ao cair da noite, em carroças fretadas para o efeito, deixando para trás a Instituição e todos os seus bens abandonados à pilhagem, o que motivaria fortes especulações  deixando um rasto de mistério nunca totalmente explicado, nas circunstâncias. 

O episódio das Irmãs da Caridade, de quem se dizia “serem um veiculo para submeter as consciências e manter o povo na ignorância através do ensino religioso a que se dedicavam”, serviu para a denúncia, por parte da esquerda, dos privilégios mantidos pela Igreja, que se consideravam excessivos, e prejudiciais, pois com eles se pretenderia impedir a democracia, a igualdade de direitos do povo e a sua libertação secular. E as Irmãs viriam mesmo a ser apedrejadas em Agosto de 1858 à saída de uma igreja, levantando ondas de indignação, na facção conservadora. 

Em Aveiro seriam impedidas de entrar no Hospital da Santa Casa da Misericórdia. Para esse propósito contribuiu José Estêvão quando, na sua notável intervenção no Parlamento, afirmou a dado passo: “Acho desnecessária a instituição. Se Deus quer a caridade seja tão oculta, que a mão direita não saiba o que dá a esquerda, para que é então decorar a cabeça das suas sacerdotisas com um certo ornato… e o corpo com uma certa fazenda”.  

O sentimento anticlerical era levado a todo o país pelos vultos do pensamento e cultura que se afirmavam chocados, e revoltados, com a centralização da cúria romana. O que, se não era uma expressão anti-religiosa ou até anti-católica, era antes uma critica às práticas e devoções e às instituições (Patriarcado e Ordens). O debate “exprimia uma contradição insanável entre os adeptos de uma sociedade livre e secularizada e os defensores da restauração de um modelo clerical”.

            A  Polémica (1925)

Abandonado o Convento, deixado o seu recheio ao dispor de quem lá quisesse entrar, os seus bens foram, em Outubro de 1910, anexados pela Câmara de Ílhavo, aguardando-se um processo que corria, contra a Congregação das Irmãs de Calais, a correr em França (que terminaria com a confiscação de todos os seus bens!). Foi pois, em 1910, feito um rol dos bens existentes, repetido em 1915 (este muito diferente do anterior) do qual, ninguém mais tarde se assumiu conhecedor, ou detentor.

O período conturbado e as lutas entre as diversas clientelas politicas, foram, em Ílhavo  como no resto do País,  assumindo  extrema virulência, que nem sempre acabava da melhor maneira.

Em 1925, era bem patente a diferença de opinião entre os que se agrupavam em volta de «O Ilhavense» - os conservadores monárquicos que apoiavam a figura politica local, Diniz Gomes -  e aqueles que, no « Beira-Mar» se situavam perto das ideias republicanas, ou pelo menos militavam na corrente progressistas, próxima.

Ora o recheio que restou do Convento, que uns diziam ser muito valioso, mas que outros afirmavam convictamente ter sido, em boa parte roubado no período em que o Convento esteve de porta aberta sem ninguém decidir a quem competia guardar o que lá se encontraria, parece ter levado um sumiço. 

Desses bens relevava-se o recheio: trem de cozinha que se dizia ser o melhor de Ílhavo, 30/40 camas, roupas para as mesmas, pinturas e paramentos, talheres, serviços V.A etc. etc. O Convento, dizia Damas, estaria cheio como um ovo.

Aconteceu neste período (1922) que, sobre a câmara de Diniz Gomes se levantaram algumas acusações, denunciando-se obscuros procedimentos de índole económica e uma situação catastrófica das finanças da mesma. M. Damas parece vir aproveitar a questão do Convento com a finalidade de criar um facto político para  servir de distracção do problema que afligia as hostes conservadoras. E assim, surge a levantar publicamente a questão que, há muito corria de boca em boca. O rol do  recheio que tinha sido objecto de arrolamento, e do qual  teriam ficado responsáveis, conhecidos administradores,  - diz Damas em «O Ilhavense» – preenchia 58 páginas, o que atestava uma ideia da sua grandeza. O que teria sido arrolado deveria, pois, existir. A não existir, alguém teria de dar conta do seu paradeiro.

E adiantava: já vimos como as pobres freiras foram postas fora de Ílhavo («O Ilhavense» de 12.04.1925); pouco menos que nuas. (O que de facto não fora verdade pois, ao que parece, ninguém as teria posto fora) Elas é que teriam desaparecido, certamente pelas razões que mais tarde pareceram esclarecidas quando, no seu País de origem, a Congregação foi dissolvida e lhe foram confiscados todos os seus bens. O problema da sua desaparição repentina não teria sido motivado por reacções locais, mas sim, consequência de uma situação exterior em que estaria envolvida a Congregação das Irmãs de Calais. 

M. Damas continuava: A malandragem pagava assim aquelas que lhes ensinaram as esposas as filhas e as mães.

E até do simples desaparecimento de vasos, Damas se servia para acusar os republicanos, invectivando Eduardo  Craveiro de os ter oferecido a várias pessoas gradas, em Ílhavo.

Craveiro defendia-se com os recibos que exibia, afirmando serem prova de ter entregue a administração dos bens, em 1915, ao Dr. Carvalho, novo administrador Concelhio. Nos mesmos indicava-se  o que teria sido  vendido (o valor de 45$08 que era o saldo acusado pelo novo administrador).

M Damas exibe declarações recolhidas junto de alguém (incógnito), que se afirma ter sido uma das fugitivas e lhe teria afirmado: fomos obrigadas a deixar o nosso tam querido colégio da Nºª Srª do Pranto e a seguir para a própria pátria como se fossemos criminosas (.) sem de lá trazer nada.

E a polémica foi subindo de tom, com o tratamento dado a Craveiro de acéfalo e míope de alma …, mau filho e péssimo irmão … e pior cidadão, invectivando a sua linguagem das latrinas, pelo que deveria ser expulso da casa, e do convívio, de todos os ilhavenses (incita Damas).

A padralhada não podia faltar ao combate; e associa Craveiro à aversão clerical, acusando-o de ter afirmado - e como eu não engraço com alguns padres (…). Desse modo Damas (sidonista sem ser monárquico) tenta obter o apoio do dito grupo  para a sua cruzada. O que, diga-se, era de importância vital dada a influência clerical no meio local.

Logo Craveiro ripostava: - se isto fosse um País de homens, estes tipos da «Corja» (O Ilhavense) era de, sumariamente fusilá-los contra um muro 

De imprecação a imprecação, de insulto a insulto, de um lado e do outro, começa a germinar a convicção que a questão acabará na cadeia ou sob o chumbo das armas.

Certo  é que, o recheio, poderia ter desaparecido, pois que há noticias da época a referir que o Convento esteve de porta aberta à disposição de quem quis? Mas também  certo e estranho, é que se verificou que a Confraria, em poucos anos, teria amealhado bem, como constatado. O Convento era proprietário de excelentes  prédios rústicos: terras na Lagoa, pinhal nas Ervosas, pinhal na Castelhana, pinhal na Gândara de Sousa, metade de um pinhal em Salgueiro, um pinhal nos vales de Sousa, e uma terra de lavradio nas Cancelas, num total de 29 prédios!!!.(  que se dizia terem recebido como herança do Padre Calvo, o qual teria deixado todos os bens ao Convento a troco de ali ser tratado um filho (?!) -ou afilhado - demente). O, que de facto terá acontecido.

Nunca foi esclarecido onde estes bens foram parar. O Governo de então prometeu mandar apurar o descaminho dos bens fugíveis e infugíveis. Mas nada foi apurado…

Os opositores zurziam-se forte (1925), usando uma terminologia nem sempre a mais aconselhável. O trauliteirismo manejado por um caciquismo que enquistava e destilava ódios, procurando por todos os meios assumir o poder, expressava-se de um modo virulento, fazendo gala do insulto patético, soez e odiento, não olhando a meios para atingir os fins.    

Em 1925 a Câmara de Diniz Gomes, acusada de graves procedimentos, de onde sobressaía a grave situação económica municipal, com os cofres completamente exangues, acabaria por ser dissolvida (Dec. Lei11875 de 16 de Julho de 1925). Interinamente o administrador do concelho, Coronel Alberto Maia Mendonça, assume a posse da Comissão Administrativa, até ao momento em que a entregará à Câmara de Júlio Calixto.

A questão do Convento terminaria, assim, sem qualquer tipo de esclarecimento cabal, ou satisfatório... Se havia dúvidas, elas não só se mantiveram, como até, porventura aumentaram. Mais tarde, novamente na Câmara de Diniz Gomes, o edifício foi, então, adaptado para os Paços do Concelho  e para quartel da GNR (no R/c). Nas partes traseiras vieram instalar-se as Escolas, que aí funcionaram até meados do séc. XX.


Senos da Fonseca



quinta-feira, março 16, 2023

   





  Casa Sousa Pizarro (actual Drogaria Vizinho)

 

A mais célebre casa da história de Ílhavo, foi mandada construir por Sousa Pizarro, fidalgo, cavaleiro, homem de armas e feitos praticados, com lugar na corte, casado com D. Inês de Sousa Magalhães (filha mais nova de Cap. João Sousa Ribeiro) .Tiveram uma filha, D. Benedita, que irá casar com o Visconde de Almeidinha. A Viscondessa D. Benedita, foi a  figura  central da célebre história de bem fazer e grande  prática solidária, que ficou na história do burgo com o título - «O Chão dos Pobres».

A construção da casa é contemporânea à edificação da Igreja Matriz (como o é a casa que foi da Srª Salsa, em Cimo de Vila), tendo, aliás, traços que se assemelham aos da Igreja Matriz,  nas cimalhas,.O que poderá significar que o autor do projecto terá sido o mesmo.

Viria mais tarde a nascer nesta casa senhorial, essa figura ilustre de Ílhavo, o Conselheiro José Ferreira da Cunha, um homem probo, ornamento da magistratura pública, homem de carácter superior, acérrimo defensor da liberdade  e do direito de exprimir o pensamento, figura maior do historial de ilustres Ílhavo. E do  distrito.

A história deste edifício,já notável, não ficaria por aqui.

Em 1876 foi criada a sociedade de onde faziam parte, João Carlos Gomes, António Cândido Gomes, José Craveiro, José António Magalhães, Francisco Rocha, Bernardo Camarão (Kim Camarão) e Augusto Ferreira, que, sob projecto do eng. Tavares Lebre, constrói o primeiro teatro em Ílhavo, conhecido por «Teatro do Recreio Artístico».  Estreado em 6 de Maio de 1876, com a peça «Camões no Rocio», onde actuaram Eduardo Pereira, Rosa Gomes, João Barreto, com   música a cargo de João Carolla (que foi regente da «Filarmónica Ilhavense»). 




O teatro exibia como pano de cena uma excelente pintura representando Egas Moniz. Os parapeitos dos balcões, e tectos,eram decorados com  referências a dramaturgos e poetas ilustres, como Gil Vicente, Garrett, Bocage etc,e  hoje ,apesar do tempo, ainda  visíveis.




Dificuldades económicas levaram a que, no salão do Teatro entretanto desactivado, depois de introduzidos diversos melhoramentos, luxuosamente decorado, ali fosse instalado (1905) o «Clube dos Novos» (outro baluarte histórico de instituição sócio cultural ilhavense), requintadamente mobilado. Um ambiente «dandy», «chic», «d'époque», muito conseguido, onde os sofás tipo inglês vermelhos davam um ar de intimidade, servindo de pousio a uma nova geração irrequieta que sonhava já com novos tempos.

Mas como sempre, sempre as dificuldades acabaram por matar o sonho.E o “Clube dos Novos” irá diluir-se e desaparecer, em 1920. 

O edifício   é então comprado pelo empreendedor Sr. Vizinho, que nela abre um excelente e duradouro negócio de drogaria e materiais de construção,.Que lucrativo irá permitir  o seu desenvolvimento   e estender-se  à actividade cinematográfica. Desta deriva nascerá o salão Cinema do Alto Bandeira (anos 30), exibição do primeiro filme exibido na Costa Nova, no salão da Pensão Rafeiro, e, logo depois, construção do cine Bela-Vista (1939). Em Ílhavo, a Sociedade Vizinhos& Filhos  edificará o excelente, para o tempo, Cine Atlântico .

O negócio da Drogaria Vizinho na sua actividade pioneira, teve sempre a preocupação de preservar a traça, e até, as pinturas decorativas do antigo Teatro do Recreio Artístico.

Por isso urge salvar o que resta de um símbolo, referência identitária chave da cultura ilhavense, que  não era,então, comprada ao Kg, à trouxe mouxe, nos supermercados ínvios e obscuros das redes do negócio “cultural”,depois  servida em enlatados requentados. Naquele tempo uma milha era bastante...o farol da Barra funcionava aindaa petrol....A lâmpada tinha-se ido....E o certo é que não voltou....como se vê....


SF



 

 

 



sexta-feira, março 10, 2023

 










José António Paradela: um fazedor de imagens poéticas.




Nos territórios bafejados pelo acre salgado da maresia, por entre ruas, ruelas e becos sem saída, poderia ter acontecido, nesse tempo longínquo da nossa meninice que,  saltadas  as barreiras “impostas” pelas  origens,  tivesse cruzado  em uma qualquer delas  com o ainda então, “só”,  José António. Calcorreando as congostas escondidas da vila, ávido como ele em conhecer o mundo humano das nossas gentes que se escondia por detrás das portas que para elas abriam (ou fechavam), das janelas entreabertas que deixavam escapar os murmúrios lamurientos  dos que lá dentro sofriam, ou de uma ou outra habitual desavença de vizinhança que terminasse em  desgadelhado desforço. Mas facto é que não aconteceu...

Os nossos territórios eram diferentes....

Conheci o José António quando, responsável no Illiabum, decidi desafiar o  Macedo a fazer uma exposição de trabalhos seus, e aquele  me sugeriu chamar, para a mesma, o Paradela. A exposição concretizou-se com  assinalável êxito. Os visitantes ao toparem com os trabalhos daqueles incipientes artistas, ainda então desconhecidos, esfregaram os olhos  para melhor apreciarem nos desenhos esquemáticos expostos, a dimensão  humana das nossas gentes. Intuída nas  linhas que acentuavam os requebros ondulantes  de uma peixeira, ou nos entroncados peitorais de um marnoto correndo por entre o vidrado da marinha. Ou fundida na majestática figura do pescador no dóri, hoje ainda,ex-libris da antologia artística ilhavense, amiúde trazido à cena.  

Dessa vivência colaborante nasceu uma profunda amizade com o José António  que,perdurou vida fora em encontros sucessivos.Acima de tudo desejados e por isso provocados, de parte a parte.

Havia fortes pontos de encontro na visão de um mundo diferente que queríamos. Em mim uma mais viva e actuante impulsão de querer mudar tudo a qualquer preço. No Paradela, uma visão muito mais poética a que nunca renegou, incluindo-a na carreira profissional onde mais do que desenhar estruturas pretendia  ser um fazedor de  cidades novas, nascidas de  conceitos urbanísticos mais extensos do que o simples e gasto  respeito  pelo cumprimento único das básicas necessidades humanas, Antes  procurando  o  equilíbrio  entre  a estrutura urbana projectada  e o espaço natural onde se insere, que se pretende o menos ofendido possível. Presente a acompanhá-lo  no risco  criativo,   a vivência apreendida na  “Rua Suspensa dos Olhos” da sua infância, onde os olhos medravam a cada dia e o espaço era cada vez mais apertado . Ruelas em que  os dias  corriam  devagar, mas onde os “sorrisos” inundavam a calçada, amaciando as pedras para adoçar e tornar menos penoso o seu  calcorrear  por gente de bem, quase feliz. Onde para se ser feliz não era preciso “ter”, mas “saber sê-lo”. 


                                  


O Paradela era uma daquelas espécies raras de artista plurifacetado, essencialmente figurativo. Dotado de um olhar delicado e minucioso em permanente atenção aos sinais, fossem eles claramente objectivos ou mais fugidios sintomas subjectivos, a arquitectura não esgotou a motivação afectiva que tinha ganas de exprimir de outro modus. Para isso botou banca diversa para dar expressão a toda uma motivação estética e poética, fosse nas palavras lavradas, fosse nas rondas fotográficas, fosse na animação cinematográfica. O Paradela, transmudado no Ábio de Lápara, cineasta , gostava de recriar  imagens recheadas de beleza escondida, das coisas e dos seres (e até palavras), acompanhadas de um  pendor  (descritivo) poético, em exercício de  descoberta de emoções a cada olhar. Nesta faceta de cinéfalo amador, nos seus “Tulipa Filmes”, foi mais do que nos restantes fazeres, fiel à sua terra e às suas gentes, numa obra onde exprimiu um   permanente e preocupado pendor humanista.


                                   


O mesmo ilhavismo telúrico   vertido nos livros que levou ao prelo, dos quais ressalta com evidência  a herança atávica às suas gentes, trazendo ao leitor  a beleza simples mas plena das  virtualidades humanas  daquela gente simples, projectadas pelo doce mel das suas palavras para uma compreensão grandiosa.

Afanoso pesquizador (em palavras ou imagens) das suas gentes e de tudo o que dizia respeito à sua Terra, bem poderemos dizer : Ílhavo foi o  motivador (o produtor) da  sua circunstância: nasceu em leito humilde, viveu em congosta onde moravam gentes de negro “enfeitadas”, que partilhavam afectos, e sofriam solidariamente juntas, as desditas.Viúvas de homens ausentes ,na presença que não na memóia,pescadeiras curvadas ao peso da canastra,  mas não resignadas ou vencidas, cavalgando os areais em dias de nevoeiro ou soleira escaldante, no ganho suado do sustento dos seus. Tardes sobrantes da escola cumprida, sentado no rebate de pedra com os  “Ti Xis” que batiam a pederneira em procura da chispa que  lhes alimentasse as horas frias da anciania, a ouvir as estórias .Estórias ,muitas....sempre muitas, de ternurenta  saudade do mar de que já só ouviam o murmúrio, mas de quem tinham  filial memória. 

                                    

“Por quê esta saudade de um tão imenso mar de sofrimento(?) : porque  ....conhecemo-lo em todas os sulcos, talvez demasiadamente bem, em todas as antigas histórias por contar”.... 

Estórias que o puto José António registou então ( e mais tarde  evocou, amiúde, trazendo-as ao proscénio das suas imagens ou palavras ): –  

“Elas são parte importante do que deles vive naquele espaço entre mim e eu: Incorpóreo ser que me acompanha carregado de tantas janelas secretas por eles habitadas” .

Ficarão para memória futura perdurante (em Ílhavo), as três jóias da coroa que, no domínio arquitectural, o traço inconfundível de excelente profissional é exuberantemente patente. Todas plenas de um ajustado equilíbrio  arquitectónico à função  requerida. A arte é das coisas mais duradouras na superação do esquecimento. O  quartel  dos AHBVI agora reconvertido( pontapé de saída de todas as restantes),o edifício sóbrio, imponente qb da Câmara Municipal e o agora Centro de Religiosidade Marítima (um excelente e equilibrado exercício de reconversão), manterão viva a memória a justificar merecido afecto dos vindouros, pelo “nosso” José António Paradela(Ábio de Lápara nos intervalos). 

                                     

Desaparece com o Paradela, mais um amigo. Já se foram tantos que lhes perdi a conta, que não a lembrança. Parece-me estranho aceitar estas continuadas perdas com menos desespero, tal a continuada habituação. E esperar a seguinte....Rendido, mas não convencido, da inutilidade de nos  cumprirmos,  humanamente diferentes.

O que nos resta? Se já não podemos alegrar os encontros com as palavras, façamos do silêncio da lembrança, ronda calada da saudade.


Senos da Fonseca (Março 2023)


  67.   Poemas de Abril Abril: síntese inalcançável Já não há palavras  Que floresçam Abril,  Nem já há lágrima...