domingo, agosto 27, 2023

 O «ílhavo» e o S. Pedro

O “olheiro-mor” 


O «ílhavo», tipo rude e forte, roncão no falar, sempre foi um homem de carácter, cumpridor das suas obrigações e temente a Deus. Era conhecida a óptima relação que tinha com S. Pedro, orago de predilecção das gentes, santinho a quem dedicavam fervoroso e preferencial culto. E a quem, anualmente, com júbilo, pompa e circunstância, rendiam notório e espaventoso festim, para o efeito engalanando a vila e a sua Igreja com colgaduras para receber os visitantes. Muitos os que rumavam a esta santa terrinha, não só e apenas no intuito de gozarem as delícias dos festejos que duravam três dias, mas atraídos, também, pelo bem receber. Apanágio destas gentes remediadas, mãos abertas e coração escancarado, no propósito de fraternal convívio.

Tão boa era a relação desta gentiaga com o porteiro do céu que, corria à boca cheia a faladura, ser bastante a evocação da naturalidade, para que, uma alma, ainda que muito penada e bem pesada, ida daqui, visse escancaradas as portas do Céu por aquele sempre atento fiscal do bom comportamento e virtudes, o S. Pedro. Olheiro astuto, sempre diligente e operoso, no intuito de manter o mar bonançoso do céu, limpo de fraldocos.

Ora num dia em que o S. Pedro foi abrir o portal, deu com um façudo mal-encarado, a quem perguntou:

– Então o que pretendes?

– Entrar no céu.

– E tu mereces a dádiva? O que fizeste para tal? De onde és?

– De Ílhavo.

O S. Pedro mirou… remirou e, muito embora desconfiado, lá lhe disse:

– Entra. Aguarda aí na recepção que eu vou lá dentro confirmar a listagem de embarque, chegada pela última pomba da noite.

Passados uns minutos, quando regressou para dizer ao mal encarado e mentiroso recém-chegado, que não era verdade, ele ser de Ílhavo, mas que estava, sim, na lista de Vagos, constatou que o farjano tinha desaparecido e se infiltrara por uma das entradas laterais, nunca mais sendo visto.

S. Pedro ficou fulo (que os Santos, também só são santos, até certo ponto).

E de si para si, lá foi dizendo: – deixa estar que quando me aparecer cá outro já não me leva assim. Vá lá um santo acreditar nestes safardanas…

Não tardou muito que ouvisse: trás… trás!… trás. Alguém chegava, parecendo ter pressa para não perder a maré da manhã.


– Já lá vai. Se tens pressa vai lá p’ra baixo, que está mais quentinho. Resmungando enquanto entreabria o portão, perguntou:

– Então quem és, e o que queres?

– Oh!… S. Pedro, sou o Zé Cachino, lá da Malhada, e c’ria que m’amabotasse aí p’ra dentro… raio! que venho cansado da viaje e c’riame chichar aí dentro. Avia-te, raios. C’ ainda perco a enchente.

– E donde és tu, ó Cachino?

– Sou d’ibalho, raios! Atão eu ia lá astrigar-me a mentir sobre a minha terra. Nado, bautizado e cebado, em íbalho, saiba vòssomocê, santinho. Astão tu não m’enxergas, não t’ alembras cá do Zé? C’inté no mês passado fui juiz da festa c’a ta fizemos lá na terrinha da lâmpada. És mesmo desconfiado. Mexe-te que estou p’rà aqui todo engaranhido.

– Não é isso, mas é que noutro dia apareceu-me cá um finório de Vagos – daqueles que deixaram o Senhor na rua para acudir ao bacalhau! – que me enloilou com essa de ser «d’Ilhavo…»

– É S. Pedro!… raios, estipor, deixa-me entrar c’«amando-te um xalabar de sardinha bibinha, …a saltar… da restomenga, tenta o Cachina convencer o orago. (Que a corrupção nos céus, não é corrupção, mas dadivazinha, pagamento de promessa… esmolna).

– Entra Cachino, entra; por essa da sardinha « bibinha » a saltar, estás identificado. És mesmo d’Íbalho…


Senos Fonseca 

 O «ílhavo» e o S. Pedro






O “olheiro-mor” 


O «ílhavo», tipo rude e forte, roncão no falar, sempre foi um homem de carácter, cumpridor das suas obrigações e temente a Deus. Era conhecida a óptima relação que tinha com S. Pedro, orago de predilecção das gentes, santinho a quem dedicavam fervoroso e preferencial culto. E a quem, anualmente, com júbilo, pompa e circunstância, rendiam notório e espaventoso festim, para o efeito engalanando a vila e a sua Igreja com colgaduras para receber os visitantes. Muitos os que rumavam a esta santa terrinha, não só e apenas no intuito de gozarem as delícias dos festejos que duravam três dias, mas atraídos, também, pelo bem receber. Apanágio destas gentes remediadas, mãos abertas e coração escancarado, no propósito de fraternal convívio.

Tão boa era a relação desta gentiaga com o porteiro do céu que, corria à boca cheia a faladura, ser bastante a evocação da naturalidade, para que, uma alma, ainda que muito penada e bem pesada, ida daqui, visse escancaradas as portas do Céu por aquele sempre atento fiscal do bom comportamento e virtudes, o S. Pedro. Olheiro astuto, sempre diligente e operoso, no intuito de manter o mar bonançoso do céu, limpo de fraldocos.

Ora num dia em que o S. Pedro foi abrir o portal, deu com um façudo mal-encarado, a quem perguntou:

– Então o que pretendes?

– Entrar no céu.

– E tu mereces a dádiva? O que fizeste para tal? De onde és?

– De Ílhavo.

O S. Pedro mirou… remirou e, muito embora desconfiado, lá lhe disse:

– Entra. Aguarda aí na recepção que eu vou lá dentro confirmar a listagem de embarque, chegada pela última pomba da noite.

Passados uns minutos, quando regressou para dizer ao mal encarado e mentiroso recém-chegado, que não era verdade, ele ser de Ílhavo, mas que estava, sim, na lista de Vagos, constatou que o farjano tinha desaparecido e se infiltrara por uma das entradas laterais, nunca mais sendo visto.

S. Pedro ficou fulo (que os Santos, também só são santos, até certo ponto).

E de si para si, lá foi dizendo: – deixa estar que quando me aparecer cá outro já não me leva assim. Vá lá um santo acreditar nestes safardanas…

Não tardou muito que ouvisse: trás… trás!… trás. Alguém chegava, parecendo ter pressa para não perder a maré da manhã.

– Já lá vai. Se tens pressa vai lá p’ra baixo, que está mais quentinho. Resmungando enquanto entreabria o portão, perguntou:

– Então quem és, e o que queres?

– Oh!… S. Pedro, sou o Zé Cachino, lá da Malhada, e c’ria que m’amabotasse aí p’ra dentro… raio! que venho cansado da viaje e c’riame chichar aí dentro. Avia-te, raios. C’ ainda perco a enchente.

– E donde és tu, ó Cachino?

– Sou d’ibalho, raios! Atão eu ia lá astrigar-me a mentir sobre a minha terra. Nado, bautizado e cebado, em íbalho, saiba vòssomocê, santinho. Astão tu não m’enxergas, não t’ alembras cá do Zé? C’inté no mês passado fui juiz da festa c’a ta fizemos lá na terrinha da lâmpada. És mesmo desconfiado. Mexe-te que estou p’rà aqui todo engaranhido.

– Não é isso, mas é que noutro dia apareceu-me cá um finório de Vagos – daqueles que deixaram o Senhor na rua para acudir ao bacalhau! – que me enloilou com essa de ser «d’Ilhavo…»

– É S. Pedro!… raios, estipor, deixa-me entrar c’«amando-te um xalabar de sardinha bibinha, …a saltar… da restomenga, tenta o Cachina convencer o orago. (Que a corrupção nos céus, não é corrupção, mas dadivazinha, pagamento de promessa… esmolna).

– Entra Cachino, entra; por essa da sardinha bibinha a saltar, estás identificado. És mesmo d’Íbalho…



Senos Fonseca ag 2023



quinta-feira, agosto 24, 2023

 Entre o ontem e o hoje , a Costa-Nova do Prado continua linda....


Bonita, airosa e vistosa, segue vaidosa de ser o mais lindo presépio colorido deste País.



Terra ainda criança, onde apenas lavram (pouco mais) de duzentos anos de historial desde  que o homem violou pela primeira vez a virgindade do seu areal, a Costa Nova do Prado é, talvez, o mais belo rincão pátrio, postado entre o mar e a ria, que lhe deram vida e prazer.

A Costa Nova é um bodo  alargado para o sensório das gentes, inebriadas pelo despertar do  sol garimpando  lá da serra, a fazer ressair o verde da sua paisagem, enquanto vai toldando  de um avermelhado suave, as águas azuis da Ria. 






Tão azuis  que encharcam o olhar dos mirantes. A Costa Nova é uma paleta de pintor consagrado, em que o artista vai, hora a hora, misturando as cores pródigas da natureza, num contínuo mudar de tom. Ao meio dia, o azul das águas, tinge o azulão do céu, onde parecem pairar, olhudos, os anjos que nele habitam, olhando ciosos e ciumentos, a amplidão de frescura que paira cá por baixo.


Enquanto isso, o passeante olha, admirado  e estupefacto, os palheirinhos riscados de cores fortes, encostados beiral com beiral, como para se manterem erectos da trabuzana ameaçadora. Dos beirais  penduram-se  varandas de branco imaculado, púlpitos onde antigamente  se acantonavam mirantes, olhar perdido,embarcados na  proa de um qualquer ronceiro moliceiro, onde se lia ”bamos lá cum Deus”. Era vê-los para cá e para lá, catando pachorrentamente a ria, ensarilhando   os seus cabelos dourados nos ancinhos calados na borda, para com eles engordar as leiras ainda enlodadas, na suada feitura dos largos e deslumbrante milheirais, prados enverdecidos, que  completaram o nome à Costa Nova, postados ali, na Maluca, bem à sua frente.

Hoje, é certo, falta à Costa Nova do Prado, a beira mar ruralizada, prenhe de gente afadigada, num corrupio de entontecer, correndo duna acima, duna abaixo, na entre ajuda, a trazer do mar a rede que o meia-lua, foi lá longe esparralhar. O mirante, hoje, não   observa, arrepiado, o encabritar do barquito na vaga. A apontar a bica ao céu, para logo se enterrar na vagalhoça seguinte, impulsionado por meia centena de rijos pescadores embarcados, obedecendo, fiéis, á ordem do arrais:  Rema!!!!....rema...é agora ...vá...

E o mulherio na praia depois de saber os seus, mar adentro, salvos desta primeira investida, esconjurado o perigo, logo tocam os  bois que parecem descer ao areal para na sua borda lavrarem o mar. Tudo mexe a preparar  a longa e penosa puxada da rede para terra. Até que, porfírio cortado, saco esventrado, nele  ressalte em lampejos cintilantes de mil espelhos prateados, a bela sardinha debatendo-se no estertor do seu fim. Era uma correria atropelada. Onde se esqueciam regras, onde tudo era luta, tumulto, vigor escorrido no ressoar de corpos, para  ganho de pobre espórtula que (mal) dava para viver.

Se é certo que hoje esse espectáculo já não existe, porque o tempo corre célere na mudança, uma coisa não mudou:  o adormecer do sol que, à tardinha, vem, cansado de tão longa volta, espreguiçar-se no mar.

É sempre um bodo o entardecer neste recanto luxuriante onde a natureza foi pródiga em oferta: o azul vivo  do mar tinge-se de um afogueado quente, vivo, que preanuncia o fim do afadigado dia. Momentos únicos onde  a cor permanece em  continua transmutação de vermelhões em variadas gradações, aqui e ali, por vezes, entrecortados por farrapos de uma ou outra nuvem, transmitindo a sensação de por ali existir na paisagem, alma!. Alma de êxtase, que prodigamente se transmite à alma do mirante a deixar-se  envolver por tão soberbo momento. Uma e outra gaivota ziguezagueiam os ares, parecendo com esses requebros doces virem despedir-se do barbazanas de fogo que lentamente vai mergulhando nos confins do horizonte.

  

                               

                                                                   

A Costa Nova, menina ainda, parece adormecer, ao de labaró :suave, docemente, embrulhada na esfarrapada neblina que se estende pela ria.

Mas logo vindo do outro lado desponta uma lua cheia, a reflectir  o vermelhão do astro rei. Sobe às alturas, enquanto à sua volta a mutação e cambiantes de cor são um manjar de enlevo para o olhar. À medida que sobe, desaparecido o “rei”, logo a lua se cobre de um prateado extreme. E é esse prateado que vai tingir uma ria serena, dando-lhe um aspecto de inaudita tranquilidade. Só aqui e ali rompida pelo chape..chape...de um peixito que se deixou apanhar pela traquina gaivota.




                                             


E a noite convida ao repouso.

Embalada neste luar, a Costa-Nova, espreguiça-se no areal ...e adormece o  corpo afadigado .

Até que de manhã o estrídulo piar de um maçarico errante, ecoa na lusco fusco de uma luz indecisa da madrugada, a despertar no vermelhão que desce lá da serra.

E o bulício recomeça...


Senos da Fonseca



  67.   Poemas de Abril Abril: síntese inalcançável Já não há palavras  Que floresçam Abril,  Nem já há lágrima...