quarta-feira, janeiro 23, 2019






Joana "Maluca" a mais benquista das Gafanhoas (cont)










O povoamento sempre em crescendo, o número de almas que ia-se multiplicando; o fervor religioso daquelas gentes obrigava-as a, com frequência, deslocarem-se à Igreja da Nazaré, para aí cumprirem as boas regras de uma prática cristã. Joana e seu marido, António Pata, são tementes a Deus, cumpridores dos preceitos. Mas certo é que com o tempo vão adivinhando quão difícil e incómodo são essas deslocações à Gafanha da Nazaré. Joana, temente, cumpridora a preceito dos
seus deveres cristãos, gostaria de contactar e recolher-se em oração, mais do que uma vez ao dia. E tomara a decisão de solicitar autorização para construir uma pequena Capela na sua quinta. É certo: uma Capelinha aconchegada, pequena, de pouco mais que 25/30 palmos de comprimento. Em 1848, no tabelião de Vagos, Joana e António Pata lavram uma escritura em que se dizem prontos para, a custas suas, edificarem uma capelinha pública (isto é, para todos moradores e ou passantes da Gafanha da Maluca), capelinha que constituirá por sua morte, herança dos seus.
Ora terá sido esta Capelinha que deu às gentes uma noção da individualidade da Gafanha; para mais, foi colocada no altar, orago de referência, uma pequena (cerca 50 cm) imagem da Sr.a da Encarnação. Por vontade da Joana, logo o povo deu ao lugar o nome de Gafanha da Encarnação.

Começou aqui, precisamente, uma certa separação, uma certa individualização entre Gafanha da Nazaré e Gafanha da Encarnação.
Viria, assim, cada povo a orgulhar-se dessa individualidade e até a surgir uma certa disputa. Nem tudo será bom nesse virar de página, já que foram amolecendo os intercâmbios, perdendo-se certas vivências, vindas do tempo em que aquelas almas foreiras eram gentiaga errante entre um ou outro lugar. Famílias até certo ponto com laços fortes entre si, fruto da mesma cepa começaram a separar-se.

Desde cedo se notou que a capelinha da Joana Rosa era pequenina demais para acolher tanto fiel.
Nesta capelinha, foi criado o hábito de, pelas nove
horas da noite, fazer soar um búzio, a lembrar as almas dos fiéis defuntos. Só muito mais tarde, o búzio foi substituído pelo sino. O toque servia para orientar todos; os que andavam na pastorícia, ou lavra, e os que andavam na borda, na apanha de moliço. E era até sinal da última passagem da barca para a outra banda.
A população medraria a olhos vistos. A Capelinha tornou-se cada vez mais pequena. Em 1877, é, por isso, ampliada para um pouco mais que o dobro (11 a 12 m). E, ao lado do pardieiro (?!) da nave principal foi construída uma torre com dois sinos que iriam substituir o búzio. A imagem pequenina da Senhora da Encarnação será substituída por outra bem maior, até que, em 1935, se fez a substituição pela actual imagem de madeira.

Apesar da morte de Joana, o seu segundo marido, que entretanto casara novamente, na hora do seu passamento, pede à sua segunda mulher que cuide da Capela, que passara a ser propriedade da comunidade. E, por assim se entender, em 27 de Abril de 1884, é arrematada no Tribunal de Aveiro por esse Povo representado por um dos seus – Manuel Luís Ferreira –, adquirindo-a pela simbólica quantia de 175 mil réis.
Surge só então a funcionar na Capela a Irmandade da Nossa Senhora da Encarnação e Almas da Gafanha, Vila e Concelho de Ílhavo, aprovada pelo Governo Civil, em 2 de Setembro de 1901, e pela autoridade eclesiástica, em Coimbra, em 13 de Novembro de 1901. Foi a primeira Irmandade formada em todas as gafanhas.
Em 1907, é demolida a capela que retratamos. No mesmo local, com a mesma orientação, Nascente- Poente, irá erguer-se uma Igreja Paroquial, cuja construção, curiosamente, foi orientada por Manuel Bolais Mónica, o reputado construtor naval da vizinha Gafanha da Nazaré.

Em 1912, a Igreja está completamente acabada. Nela são colocados os altares do Sagrado. Em 1926, são construídos por artistas locais os altares laterais (Nossa Senhora de Lurdes e o das Almas).
A nova Igreja Paroquial media 29m x 9 m. Na sua torre, foram apostos dois sinos de 589 Kg. Foi seu primeiro Pároco o Rev. Quaresma.
A saga das Capelas e Igrejas não ficaria por aqui, pois foi planeada uma nova Igreja. Em 1970, é tomada a decisão (406 votantes, 231 a favor e 175 contra, para um total de 1000 fogos) de constituir um cofre para construção de nova Igreja paroquial digna da dimensão urbana atingida pela Gafanha da
Encarnação. Em reunião de 1977 é tomada a decisão de iniciar os trabalhos de construção. Em 11 de abril de.1985 iniciou-se, de facto, a construção. Em 1993, o Bispo D. Marcelino anuncia que a inauguração da Igreja está marcada para 22 de Agosto desse mesmo ano.

9- Escolas
A primeira Escola Mista da Encarnação esteve situada na rua Padre António Diogo, numa casa conhecida por Casa do Zé Pata (dos bois). Foram seus primeiros mestres o professor Cesário e esposa (1909).
Não significa que antes da escola oficial não
existissem locais onde se ministravam as primeiras letras. Tão necessário como altruísta, o exercício foi levado a cabo pelos chamados mestres (e mestras), como foi o caso de um tal Manuel Louro, ou Manuel das Neves. Curioso de assinalar que o irmão da Joana Gramata, o João Gramata, também é referido como um desses mestres das letras, antes da existência da escola pública.
Mais tarde, em 1924, a Escola foi desdobrada para a frequência separada dos dois sexos.
Em 1995, foi criado o Agrupamento da Escola Básica da Gafanha da Encarnação, grande salto no processo valorativo dos jovens, cujo efeito se virá a sentir fortemente no futuro desenvolvimento, social e cultural, da freguesia, guindando-a a outro estágio de participação e influência concelhias...
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10- Cemitério
Até 1932, os funerais continuavam a fazer-se para Ílhavo.
A junta da Paróquia, encabeçada por João Ferreira Félix e pelos vogais João e José Ribau, consegue junto do Ministério da Agricultura, a cedência de um terreno (um hectare), sito na Mata Nacional, ao lado da estrada que vinha de Ílhavo, para aí instalar a área do sepulcro. Demarcado e muralhado, o terreno é vedado por muro e portão de acesso e erigida uma pequena Capela, dedicada ao Senhor dos Aflitos.

Em 24 de Junho de 1932, foi efectuado o primeiro enterramento, o de Manuel Maria Cardoso, segundo registo do Padre Lé.

(Cont)




terça-feira, janeiro 22, 2019


E agora?


Vou fazendo o que posso
Rendido a este final de caminho.
Já não há figueiras para florir
Nem laranjas para colher.
Tudo cheira e sabe a mofo.

Eu, aqui no meu canto,
Onde já não há encanto,
Vou olhando o apagar da fogueira
Que ainda arde por dentro
Mas já esmorecida por fora.

Verter lágrimas, porquê?


De não ter sido tudo quanto queria
 Ir assim, desta vida descontente?
Não! Magoado, sem angústias do passado
Sem vontade de hoje chorar
 Por já tanto, ontem ter chorado.

SF 22.01.2019

quarta-feira, janeiro 16, 2019



Joana "Maluca" a mais benquista da gafanhoas....
(Cont)



6- O desenvolvimento acelerado (1808)
Com a abertura da nova barra (1808), no local onde ainda hoje permanece, renasceu uma nova esperança em todos os que, desde o século anterior, tinham assistido ao definhar da laguna, tempos em que a gólgota gafanhoa parecia finar! Renovadas pela franca aberta, as águas trouxeram de volta à laguna doente as diversas actividades, desaparecidas no século anterior. O sal vai continuar a ser produzido e exportado, mantendo- se a produção salícola como das mais interessantes riquezas da região, entre outras, entretanto nascidas.
Para a Gafanha da Encarnação, não tanto, porquanto com a abertura da barra, o panorama geográfico da ria foi substancialmente alterado e as marinhas produtivas posicionaram-se mais para o interior, pois aí formaram-se novos os altos fundos, entretanto surgidos. Mas a ria iria ser rapidamente fértil. Rica numas fitas douradas e outras herbáceas, nela surge o chamado genericamente moliço, indispensável para o amanho das terras, como arma de retenção de águas pluviais. E, se misturado com o pilado ou com restos de peixe, torna-se
excelente fertilizante, dador à gleba de húmus abundante nutriente. O canal de Mira transforma- se, assim, no leito, onde, diariamente, centenas de barcos moliceiros vadiam em passeio errático, para cá e para lá, a mariscar a ria com os seus ancinhos. Na borda do barco, o gafanhão anfíbio dá ombro à vara, ou destranca o pente carregado de moliço da tamanca e acama as ervas no interior da embarcação, até que a água da ria cubra boa parte das falcas. E dela colhem as ervas lagunares, acarretando-as para os malhadais, cais de estágio e secagem disseminados estrategicamente pelos mais escondidos e recônditos canaletes da beira-ria. Os terrenos tornam-se espantosamente férteis. Milho, batata, beterraba e muitos outros produtos são, com muito êxito, colhidos pelos que continuam agarrados ao arado uma larga maioria.
Isso não obsta – ou até obriga! – a que comece a surgir o chamamento dos diversos ofícios: correeiros, tamanqueiros, ferreiros e muitos outros surgem aqui e ali, estrategicamente postados à sota dos caminhos.
No final do século (XIX), os estaleiros navais implantados na vizinha Gafanha da Nazaré irão atrair muita gente. E também as secas de bacalhau, entretanto instaladas no final do século, serão atractivas para o tecido feminino, que começa a distanciar-se dos trabalhos agrícolas. A mulher tende a ganhar a sua importância na economia familiar.



7- Costa-Nova: a jóia da coroa
Mas será o surgimento da Costa-Nova (1808), postada exactamente em frente da Encarnação, e desta colhendo o classificativo “do Prado”, para melhor a identificar, e a distinguir da Costa-Velha de S. Jacinto, que irá gerar um extraordinário movimento migratório. A passagem de Ílhavo para as companhas, instaladas na praia desde que Luís Barreto (Luís da Bernarda) tinha vindo aportar com as Artes à nova praia, Costa-Nova, obrigava a passagem pela Gafanha da Encarnação. José Estêvão tinha interferido na construção de uma
nova ponte que substituísse a velha ponte de Juncal Ancho (1865). A estrada para a “Bruxa” – local pródigo de observação privilegiada, de onde melhor se pode apreciar a Costa-Nova, é o términus da ligação à ria. Ponto de embarque para a Costa- Nova.
A conclusão da estrada que cruzava, aqui e ali, com os rodados dos carroços da lavra, ou com os sulcos das pegadas dos andarilhos que, noite e dia, os percorriam em passo bamboleado, saltitante e
apressado, demoraria a concretizar-se com a morte do Tribuno, acontecida em 1862. Sobreveio a anexação do Concelho por Aveiro (1895). A estrada só iria ter reinício após a desanexação e terminada, em 1900.
Terá sido financiada por particular (o pai do Dr. Madaíl), tendo-se tornado uma verdadeira levada de gente que a percorria diariamente. Terá custado 1.400.000 réis.
Ainda o sol não despertara e já um povoléu de pescadores, pescadeiras, burricos e almocreves, negociantes e ajudantes a percorriam até noite fechada. Num alegre e animado palanfrório, sempre a galrichar, lestos e ardegos, em passo de gaivina saltitante e lépida, percorriam a légua que lhes permitia embarcar nos trapiches amoirados, ali, junto à “Bruxa”. Previsto ser o custo da estrada reembolsado em cinco anos, pago por imposto criado nas barcas da passagem, que, inicialmente, pertenciam à CMI, aquela estará completamente paga (capital e juros) ao fim de três anos. Impressionante!


As companhas das Artes, entretanto, precisavam de pessoal: de mulheres para escolha e lavagem do peixe, de homens para dar mão aos remos. Houve alturas em que existiram, 4 a 6 companhas a laborar no areal da Costa-Nova, engajando cerca de
1500/3000 braços, necessitando, para tal, mais de duas mil pessoas, em constante trânsito. Precisavam as ditas de juntas de bois, depois de Manuel Firmino ter experimentado a tracção das Artes, por força cornígera, em substituição da desarcada tarefa de puxar as redes aos ombros.
Passo a passo, ofegantes, ao som do tambor: rataplam... rataplam, pum!... pum!!!... iam as artes subindo areal acima, ajoujadas de sardinha prateada retirada ao mar. O êxito absoluto em S. Jacinto da substituição, contaminara-se a todas as companhas. Os lavradores da Encarnação criavam e alugavam, à época, esses animais com pasto fresco e farto, nos prados já férteis das gafanhas. Cada companha precisava de cerca de dez juntas; por ano, cerca de 100 bois eram, pois, necessários.
O desenvolvimento, quer em forasteiros, que, atraídos por este novo mundo de oportunidades, se vieram fixar, quer seja pelos comércios (vinhos e outros), ou ofícios, aqui instalados para resposta às solicitações, fez da Encarnação a terra prometida. Em 1950, eram já cerca de 3.000 as almas instaladas na Freguesia. Em apenas um século, a Gafanha da Encarnação guindou-se a um plano de importância chave nas potencialidades concelhias.
No final da estrada, lá estava a tasca da Ti Norta. Lá, não faltava um retemperador caldo de feijoca bem
fumegante, prenhe de conduto a dizer, e umas couves, frescas e tenras, das hortas gafanhoas, trocado por umas parcas moedas, quando não por uma ou outra bilha de azeite, vinda em burrico lá da serra, ou por uns peixitos surripiados ao de labaró da rede estripada pelo Porfírio, termo de viagem daquelas almas vindas lá do monte, por entre congostas e veredas esganiçadas, noite dentro, toca-toca, a trote ligeirinho, para estar, ao outro dia, no lanço da alva, deixando os burricos a recuperar forças na estalagem da boa Norta, que deles mandava, ou cuidava, com dedicada atenção, enquanto o almocreve ia à
compra.
À noitinha havia encontro marcado no altar da tasca, caneco na beiça, para, com dois quartilhos, aquecer as entranhas; A dar dois dedos de relambório, a combinar encontros, antes de meter ao caminho, burricos já frescos, ajoujados de canastros onde saltitava a fresca sardinha. Amanhã, ao alvorecer de olho ainda vidrado, esta estaria pronta para regalar os beiços de esgalmidos beirões lá das serranias do Caramulo.
Assim medrou, cresceu e se desenvolveu uma terra, ao princípio madrasta, mas que, ao fim de parcos anos, revessava de alegria ao acolher gentes de tão diferente proveniência.
As companhas logo saltaram de S. Jacinto para a nova costa. Aportaram ali atrás do palheiro “dito” de José Estevão, construído então pelo negociante de Viseu, Manuel Marinho. Montaram o altar de S. Pedro num caniçado atamancado coberto de junça ou estorno e logo por aqueles lados foram surgindo umas cabanas cobertas de junça e uns palheiros, pertença do Capitão-mor de Ílhavo e ajudante. Por vantagem da travessia da Maluca para a outra banda, o desembarque deslocou-se para Sul. E com ele a mota de atracação, local de despejo do preciso às companhas e pessoal.
A partir de 1824, começaram a aparecer uns pândegos forasteiros que vinham a banhos. Era o surgimento de uma nova classe social, pequena burguesa, a copiar as modas e hábitos da realeza. Vestidos a rigor, fatinho de “ir a ver o Senhor” iam à borda tomar uma banhoca. E depois regalavam-se com o sol e o iodo que os tostava. À noite, corpo amolambado de tanto ar forte, iam deitar colchão no chão estreme de um qualquer palheiro da salga. Mas, ano após ano, a procura feita por estas gentes abonadas logo trouxe à ideia a feitura de uns palheirinhos colocados ali no recurvo da concha. Os pobres pescadores foram empurrados e acantonados lá para baixo, lá para o Sul. Em 1900, eram já muitos os veraneantes, vindos das mais variadas partes, em particular bairradinos, chegados
de carroço da lavra, carregado com os precisos, onde o principal era o pipinho, da boa e afamada pinga, sem baptismo de qualquer sacristão desavergonhado. Vindos em Outubro, eram os donos da praia. Bons convivas. Elas e r a m mocetonas tisnadas, de boa e gorducha pernonca, que mostravam um pouco mais do que o artelho. No areal, voyeurs olhudos esperavam... esperavam... até à vinda da tal vaga que as obrigaria a levantar a farpela, por vezes até aos calções afitados no joelho (não fosse a aflição criar saída brusca...). Eles refastelavam-se, fazendo jus à distinção de excelentes alarves comilões. A Costa- Nova tomava ares de recanto privilegiado, com uma ria onde o azul era ainda mais azul, fascinantemente azulão. Amplidão de frescura e água onde apetece mergulhar disse dela Raúl Brandão. Era uma tela de uma beleza impressionante, impossível de descrever os seus cambiantes contínuos, de os fixar em palavras, local idílico, bem próprio para os veraneantes virem desafaimar os negrumes da alma e as chagas do corpo.
Lá na borda, lenta e pacificamente, o “ílhavo”, foi cedendo o remo ao “gafanhão – primeiro o cambão, e logo depois o maião”, que, ao princípio parecendo um pouco tímido, logo irá perder os arreceios do mar, até, mais tarde, irá afoitar-se ao mando de arrais.
Os gafanhões vêm assim completar o quadro humano da borda, “A ruralização do litoral, como lhe chamou Unamuno.
E a costa é um bodo para o sensório mais exigente. De manhãzinha já o
barbazanas de fogo garimpa lá das serranias, espreitam por detrás da paisagem recortada onde se distingue o caramulinho. Logo a ria se inunda de um doirado afogueado nas cintilações da mareta. O tempo monta e com ele, o astro-rei.
O sino chama os fiéis à nova capelinha da Senhora da Saúde (1889), trazida ali para o areal, um pouco a Norte das companhas, hora de conciliação e refastelo da alma.
O dia vai começar. Ao bulício das companhas, junta- se agora a algazarra divertida dos folguedos dos que nada mais têm a fazer do que cuidar e retemperar o espírito. À tardinha, os mirones vêm juntar-se, a admirar o atropelo da venda e despacho das barcadas. Vozes altas, impropérios misturados com tiradas brejeiras, outras tarrincas, gente apressada, a pedir desimpacho para a lesta peixeira se botar ao caminho:
- Ah Catracega, c’a minha sardinha é melhor c’à tua...
- Homessa ?! Só se for no olho do dito, c’até nestes dois da frente inté brilha, invejosa calamantrona. Despacha-te que ma vou botar à passagem...
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SF 

(cont)

sábado, janeiro 12, 2019





                 A Joana Maluca a mais benquista das gafanhoas...



(Cont)


4- E tudo começou na Gafanha da Gramata O demiurgo Fernando Camelo
Referimos acima ter o Conde Aveiras, Senhor de Vagos, detido o Senhorio das marinhas da ilha da Mó-do-Meio, Preguiceiro, e outras, sitas na orla norte das Gafanhas. Terá enviado (ele ou o seu representante Sebastião da Fonseca), em 1677, foreiros seus para aquela zona. Ao referirem em documento coevo esta decisão, acrescenta-se que por ali já haveria terras de pam. Então, temos de convir (por esta referência inequívoca) ter já aquela zona lagunar sido objecto de ocupação permanente, em data anterior. Pouco anterior, porventura. Certo é que tudo o parece indicar.




A carta que indicamos abaixo, representando o litoral cerca do Séc. XV, mostra, embora numa representação aligeirada, uma língua de areia. Note-se que YLauo (Ílhavo) vem grafado no seu modo original, o que permite assumir data anterior da carta ao século referido da sua execução. A língua de areia ainda não estaria completamente formada. O que é indicado como o Forte é, claramente, o Forte Velho (frente à Quinta do Inglês). É ainda muito curiosa esta carta, pois a representação do porto de Portomar, uma quase circular reentrância, é das mais precisas, ao tempo.
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Carta litoral ant. ao Séc. XV
Já na representação a seguir elaborada e aqui mostrada, carta do início do Séc. XVII, poderemos apreciar que, quer na beirada Norte, quer na de Poente, há já traço de existência de vegetação nas zonas perto da linha de água (certamente juncais, gramatas).
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No mapa apresentado na página anterior está bem assinalada a ilha da Mó-do-Meio. É visível uma zona, onde se dá ao terreno uma definição parecendo assinalar já as terras de cultivo. O mesmo sucede com toda a zona ribeirinha, um pouco a Norte do Forte Velho.
Em outra carta que representa a ligação ao mar, da laguna, situada bem perto de Mira (de facto a ligação mais a Sul da história lagunar), é já nítida a enorme quantidade de leiras entregues a foreiros.
Podemos pois fixar o período imediatamente anterior a 1677 (onde são feitos vários aforamentos), até ao Séc. XVIII, a janela temporal de chegada de foreiros por aqueles terrenos, que, entretanto, teriam deixado de pertencer ao Senhor de Vagos, pois este vendera-os a Rangel de Quadros, governador da Barra e da Alfândega (uma sua filha casa com Eng.o Oudinot). E este, por sua vez, tê-los-á vendido a Francisco Camelo. E, por herança, os mesmos passaram à posse de Fernando Camelo, seu filho.
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Numa sentença referida pelo P. Resende, na sua excelente «Monografia das Gafanhas», indica-se que, num aforamento realizado em 1813, por João Lopes Ferreira, era referida a quinta de Fernando Camelo como sendo constituída por “uma fazenda que consta de casas, currais, palheiros, terras de pam, praias e juncais”.
Por esta altura temporal, aquela área, hoje chamada de Gafanha da Encarnação, para a distinguir da outra Gafanha sita à beira do canal que ia para Aveiro (Cale da Villa), era designada, ainda, por Gafanha da Gramata.
Uma maneira de a identificar era pela quantidade apreciável de juncos existentes na praia, factor primordial para com eles fazer camas nos currais de gado e atapetar o chão das palhoças dos foreiros, nesses primeiros tempos muito primitivas, quase pré-históricas.
Terá sido, pois, Fernando Camelo quem descortinou o tesouro escondido naquelas terras, que ao primeiro olhar desatento, pareciam inóspitas. Para lhes dar forma de terrenos produtivos, era preciso um trabalho estafante, surribadelas sucessivas. Eram necessários muitos braços, muita vontade humana, muita teimosia, muita fortaleza de alma, muito sacrifício. Fernando Camelo, homem de largos cabedais, proprietário de vários solares agrícolas, sitos em várias partes nas imediações de Aveiro (Feira, Vale de Ílhavo, vila de
Ílhavo etc. etc.), teve por ideia que só distribuindo as melhores glebas aos seus foreiros os poderia interessar, cativar e fixar. E assim os terrenos foram demarcados em sucessivas leiras, no sentido Este- Oeste, praticamente perpendiculares à ria, com a qual do Poente confrontavam. As crastas onde medravam herbáceas, fenos, juncos e outras, que se estendiam pelas lombas que o vento depositava naqueles areais, transformaram-se de maninhos em terras de cultivo farto. O virar de página do Séc. XVIII dá-nos uma ideia de uma Gafanha povoada já de pequenos telhados ocres a substituir o colmo, dando um carácter mais colorido ao desabrigado daquelas terras. E, pouco a pouco, mais tarde de forma intensa, foram pintalgando de um modo impressivo o ambiente geográfico. Casinhas distribuídas, primeiro ao deus-dará, ao gosto e conveniência de cada foreiro, mais tarde alinhadas com os caminhos das carroças da lavra e passadas de pessoal, indiciando um começo de burgo urbano. E, assim, em 1800, a Gafanha da Gramata era já densamente povoada, graças aos esforços e decisões pragmáticas e cheias de interesse do seu (assim se pode apelidar), demiurgo Fernando Camelo.
E os foreiros atiraram-se à faina. E foram à ria e trouxeram o moliço e o escasso. E esparralharam- nos sobre aqueles campos alagados, engordando-
os, fertilizando-os, transformando terrenos rotos em terras férteis. Atiraram-se a eles de enxada a abrir o rego, difícil de suster na forma, pois, cavadela dada, logo a areia pouco consistente esboroava de novo, escorregando até ao fundo. E era preciso voltar a cavá-lo... Uma... duas... as vezes que fosse preciso para dar guarida fértil à semente. Ao princípio, a plantita que surgia teimosamente debaixo da terra parecia enfezada. Mas o homem não desistiu de defrontar o meio e nele intervir. Sob abrasadora torreira do sol, ou sob inclemente água despejada do céu, o homem não desistiu. Ano após ano, teimosamente, insistiu. E a enfezada plantita ia rompendo, cada vez mais forte e direita às alturas. Entre desilusão e esperança, com o passar dos anos, ganhava forma de planta enverdecida, cada vez mais entroncada e viçosa, até que, parecendo milagre, aqueles acastanhados campos alagados, ao princípio terra de ninguém, vêem-se cobertos por uma onda de verdura estonteante. O “tesouro” tinha sido encontrado, aberto e distribuída a espórtula. E a riqueza daqueles terrenos explodiu em toda a grandiosidade, verdadeiras terras de pam como poucas existentes neste País – o gafanhão tinha vencido.


5- A Gafanha da Gramata vira Gafanha da Maluca. E acaba sendo, Gafanha da Encarnação.


Esta designação deve-se ao relevo que Joana Rosa de Jesus teve, e transmitiu, nesta parte das Gafanhas.
Joana Rosa era natural de Ílhavo. Filha de António Fernandes Cardoso e de Luiza Francisca. Desde o seu nascimento (1788), veio viver com seus avós, na Gramata. Já acoutados em leiras aforadas, certamente a Fernando Camelo.
Curiosamente, a mãe de Joana tinha já o apelido de “Gramata”, o que poderá indicar que, ela também, era já proveniente (nascida) na Gafanha da Gramata.
Ora por estas terras, pastoreava o gado, um tal José Domingos da Graça (filho de António Graça). Em 1804, este Graça, natural de Calvão, pagava contribuição das suas terras, fosse em Vagos ou em Ílhavo. Sendo que aqui pagava o maior valor (indiciando ser um foreiro próspero). António, como quase todos os foreiros, era provindo da beirada da Gândara. Do Seixo e outros locais (a grande migração no Séc. XVII e Séc. XVIII, deu-se, da Gândara para os areais da Gafanha). Os gandareses eram gente da lavra, já com farta experiência de trabalho em campos arenosos. Eram conhecidos por marronteiros, procuradores de terras férteis para pastorícia, e outras actividades agrícolas. Gente irrequieta, de grande mobilidade, sempre em procura de novos locais onde exercer a sua actividade original.
José Domingues (natural de Calvão), passou a rondar a porta de Joana, a fazer-lhe rapapé e, em 1808, os dois contraíram matrimónio.
Deste casamento nascem seis filhos (o último será uma rapariga, a Ana Gramata, que casará com Manuel Oliveira Arrais. Darão origem à família Arrais). Daqueles seis filhos, Joana terá 66 netos! A esplêndida prole, é pois, digna de ser considerada uma das bases do povoamento da Gafanha da Gramata. A influência desta mulher acolhedora, boa conversadeira, caridosa, gostando de receber com lhaneza em sua casa, vai ser decisiva para identificação futura da área. Assumindo com orgulho a alcunha do marido – O “Maluco” –, torna-se, ela, um ícone local, conhecida para sempre, por Joana a “Maluca”. E daí, toda aquela área, até ali designada de “Gramata”, passará a ser conhecida como Gafanha da Maluca.
Joana e o marido, José Domingues – o “Maluco” – herdeiro de António, tornam-se co-foreiros do juncal da ilha do Preguiceiro, e assim aumentam a sua casa agrícola. Fazem copiosa fortuna.
Morre cedo o Domingos.
A prole é grande, a precisar de Pai que ajude no trabalho e educação dos filhos. Joana irá contrair segundo matrimónio com António Santos Pata. Bom homem, de quem não virá a ter mais filhos. E será com ele, António, que Joana Maluca, virá a ser co-foreira, agora da Quinta-do-Mato-do-Feijão.

Joana era uma mulher sensível. Tinha um tom de voz algo varonil, mas melodioso. Talvez um pouco ingénua. Cantava versos de muito folguedo e prazer, recebendo opípara e hospitaleiramente os seus convidados, fossem, nobiliárquica ou intelectualmente importantes, distintos, mas de igual modo, os menos importantes. Simples amigos dos amigos convidados. Para todas crescia a simpatia de Joana.

José Estêvão era um natural e assíduo convidado. Trazia com ele figuras ilustres da política e das letras, nacionais, levando-os, de barca,
a conhecer os prazeres gastronómicos da mesa farta de Joana. E no final, estômagos mais do que aconchegados, bem fartos, era romançosa a digestão, feita á sombra do alpendre, em descontraída charla. Postados em letárgica tardada, frente à ria, confortavelmente instalados em convidativas espreguiçadeiras, baforando os excelentes havanos  sempre presentes na mesa de Joana, iam chalaceando sobre os últimos acontecimentos politiqueiros. Joana era uma contumaz fumadora dos ditos, enquanto dizia solene:
- olhai amigos que a politica nunca matou a fome ao Povo. Só as batatas são capazes de o fazer. Esses “plingrinos” da palavra, que venham, que me falta cá gente...
Pela quinta de Joana passaram ilustres homens de influência pátria: Mendes Leite, Freitas de Oliveira, Sebastião Lima e Agostinho Pinheiro. Entre muitos outros.
O intenso relacionamento e a cativante atitude desta interessante, como interessada mulher, foram decisivos para obter a atenção e influência de José Estevão, na abertura das estradas do Forte Novo a Aveiro (1865), passando pela ponte do Canal de Mira. Nela vinha entroncar, perto da Cambeia, a estrada vinda da Gafanha da “Maluca” que o político com a sua influência, dava como prenda a Joana. Veremos que, mais tarde, José Estêvão vai estar, e influenciar também, o esforço da construção da ponte de Juncal-Ancho, e posteriormente  da estrada Ílhavo-Bruxa (Gafanha da Maluca – 1898-1900).
Se António Camelo foi o demiurgo da Gramata, bem se pode dizer, ter sido Joana Rosa, a inegável povoadora (colonizadora) da “Maluca”.
Joana terá uma vida final junto dos netos. E desejosa de aumentar a sua capela privada, contribuiu com terrenos, verbas e alfaias, para a construção da Capela primitiva da Gafanha da Maluca, devotada à Nossa Senhora da Encarnação (1848).
E assim, a Gafanha da “Maluca” toma o nome da padroeira. E passa a designar-se, oficialmente, aquando da anexação administrativa, Gafanha da Encarnação.
(Cont)
SF







  67.   Poemas de Abril Abril: síntese inalcançável Já não há palavras  Que floresçam Abril,  Nem já há lágrima...