quarta-feira, novembro 24, 2021

 



A Zeca   deixou-nos  há 14 anos

Pois a vida andou para a frente. E nós? Percorrê-la sozinho é muito mais difícil e mais bem complicado. E muito menos interessante. Por isso ,resta-nos ter-Vos (todos!) bem presentes, servindo de referência aos nossos actos. O mais que poderei dizer, é que não mudei nada....Não era preciso, pois não?!

Relembro o que escrevi então,nesse dia



....


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FIM DE LINHA

Estou aqui, depois…


Onde quer que estejas, sei que entenderás, porque sempre nos aprendemos a descobrir nos pequenos gestos ou nos tiques, indecifráveis para os outros, evidentes para nós.

Tenho uma vasta, dolorosa e amarga sensação de ficar, agora, só! Já todos se foram; e não sei porquê (?), deixaram-me para trás, como que para guardar a vossa memória, a mim que era o mais frágil.

Retrocedo no tempo em Vossa procura. Nem isso me vale. Parece que ao fazê-lo me é ainda mais nítido que o processo de desintegração já começou. Procuro a lógica de tudo, até da tua partida. E só encontro um sentido para a paz que encontraste, aquela paz que nunca por cá, tiveste. Aqui, neste mundo de desigualdades, Tu nunca a poderias ter encontrado. Fosse o que te rodeasse - a Ti chegava-te. Era impressionante como tudo (o pouco ou o nada) Te chegava, indiferente que eras a qualquer tipo de necessidade vã. Só que o problema não eras Tu, mas os outros. E para os outros, nada era suficiente para responderes ao que sentias ser-lhes necessário - e devido. E por isso não havia guerra que Te chegasse.

Viemos, agora de Te levar, ao teu sitio da Paz.

O sino não tocou. Não porque não quisesse - os sinos sabem por quem deverão dobrar -, mas porque Tu não quererias. Querias, isso eu tenho a certeza, que amanhã ele chamasse a rebate, todos!.. a continuar o que sempre, e só, soubeste fazer: - a distribuir solidariedade.

Pareço hoje encurralado; sinto-me a última rês a preparar-se para o abate. Se a morte - ou quando ela! -, bater de novo à porta, não posso mandar ninguém ir abrir, tenho de ser eu a franquear-lhe a entrada.

Sinto-me, pois, subitamente envelhecido; desamparado de um modo irremediável. Como que amarrado a uma solidão onde me faltam todos os que me rodearam no sonho. Sinto-me só, ao não poder partilhar a responsabilidade com mais ninguém. Agora, puseste-me a ser o número um (!) da família. E parece que o mundo me caiu em cima, como um pesadelo que me oprime e tolhe.

Parece - e não entendo este súbito parecer - que havia restos de infância, ontem ainda, e que hoje desapareceram de vez, irremediavelmente. Todos passarão - a partir de hoje - não a ver-me como o mais novo, mas a ver-me como o último abdicatário destes irredutíveis, que quiseram ser, só e apenas, não indiferentes.


As árvores morrem de pé. Bem vistas as coisas assim foi: foste autêntica até ao fim. E isso - perdoa que Tu diga, mas Tu até o sabias - era o que eu queria que tivesses sido. Neste mundo que não tem moral, nem vergonha, em que a vergonha se transforma em impudor, não transigiste, nem sequer foste cadavérica em vida. Soubeste, até ao último dia, erguer o teu fardo à altura da cilha do burro; os outros preferem que o burro se ajoelhe para o depositar, e fazerem de conta que estão cansados.

E sabes o que lhes rói a alma?: - é que mesmo na sepultura irás prolongar a tua razão, resumida à obstinação que Te comandava e ao frémito afectivo e solidário, que Te movia. Dia a dia estes contornos sobressairão, mesmo que ausente.

«Eles», dia a dia, irão ficando mais expostos na (sua) nudez: de ideias e de ideais, que Te sobravam. Aqui, a leviandade colectiva vai ser confrontada, continuamente, com o que deixaste.

Na hora de Te incensarem - agora! - eu não esquecerei de lhes lembrar os espinhos com que tantas vezes Te dilaceraram.

Acertemos as nossas contas. Se em alguma coisa não fui capaz de Te acompanhar como merecias, foi não ter - nem manter - a Tua UTOPIA.

Por vezes, até, ta censurei; porque não acreditava que depois de tudo, ainda a tivesses. Mas no fim percebi que a tinhas - e a mantinhas intacta - apesar de todos os desaforos que foram desabando por cima de Ti.


Até sempre …


João


Ílhavo, 25 de Novembro de 2007


segunda-feira, novembro 15, 2021


 


FOI VOCÊ QUE PEDIU UM PÊSSEGO ?


...SABE COMÊ-LO ?...


Chegou com um ar desiludido, sorriso fechado ,gestos tensos –em completa «fossa» :

-Então como vai a bizarria ? :- disparei …

-Ácida ,amarga .-monótona, retorquiu .Uma pessegada ! Os Homens começam a ser uma raridade pouco ao alcance de quem vai ficando sobrecarregada com aniversários -que ainda festejamos e que mais razões tínhamos,era,de os lamentar …

Deixa –Te de pieguices : atalhei .

E para que sorrisse lá lhe fui dizendo .

– Por falares em fruta :-Olha que ainda és um bom «pêssego» ! Anima-te !...

Sabes (?) : há dois tipos de pêssegos .Uns lindos por fora ,charmosos ,gulosos :já vi muito gente deles se fartarem à primeira trincadela .Sensaborões …Verdes ...E olha que não é a fábula da «raposa» ...Depois, há os que mantêm a atracção ; macios por fora ao tacto, e quando se trincam ,para além de muito doces , são polpa apetecida.Desfazem-se em gostusura .Húmida.Apetece ir até ao fim.Um bom «pêssego» deve-se comer á trincadela e nunca -nunca !- descascado com faca.Com dentadas suaves ou esfomeadas, vamos avançando e eles derretem-se na boca , fazendo soar as campainhas que ainda dentro de nós se dispõe a festejar, a ditosa sobre –vitualha…Ora, deves, é reparar , que os «pêssegos» verdes exibem-se na praça pública ,em caixotes, ás dúzias ,alardeando impúdica oferta .Um «pêssego» –um bom« pêssego!» - ,sugere-se em oferta intima –mesmo que misturada com outra peças -numa taça de cristal onde faz valer o seu perfume .E a sua macieza .E mesmo que ao toque não seja tão durinho ,isso mesmo é a sua virtude ,convidando à trincadela…

Vi-lhe um sorriso e pensei: está feita a minha boa acção de escuteiro, por hoje …

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POSFÁCIO …

Passados dias voltei a encontrá-La .

- Então ?... aos costumes, não dizes nada!

-Como posso dizer (?!); com a míngua de homens interessantes que por aí vai… atalhou …

-Não me digas …Então já todos comem de faca …?!…

-Pior ; “de faca e garfo” .E chegado ao caroço atiram-no fora,ainda cheio de carninha …

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Este mundo está perigoso …E a distribuição horrível. Uns com tanto; e tantos só com o caroço…Ainda falam do capitalismo selvagem…

Ou será que é mesmo assim : as coisas murcham com o desbotar dos sentidos


Senos da Fonseca


quarta-feira, novembro 10, 2021

 


               Batalhão Guarda Municipal 

                                                                                                         

                                                                                               O Sembrismo “amarelo”

Em 29 de Março de 1834, é criada a Guarda Nacional, fixando-se que a mesma deveria instituir um batalhão em cada concelho. Batalhão esse que vem a organizar-se em Ílhavo, em 1836, ocupando os cargos de co- mando, por eleição municipal, o tenente-coronel Luís António Lomba, o major Francisco Monteiro e o ajudante António José da Rocha. Para capitão da 2ª Companhia foi escolhido José Ferreira da Cunha, um bravo que muito se distinguiria na justeza de carácter, na rectidão de princípios e na ousada valentia que patenteou em momentos críticos da política local. 

Em 13 de Setembro de 1836, a Câmara Municipal faz a aclamação, com toda a solenidade, da Constituição de 1822, aclamação que, registe-se, teve lugar apenas três dias depois da realizada em Lisboa, antecedendo o mes- mo acto que viria a ser realizado no Porto, a 17 de Setembro do referido ano. 

Por esta revolução destituía-se a Carta Constitucional, partindo-se para a formulação da Constituição de 1838 que aparece referida no brasão da Bandeira do Batalhão de Ílhavo. 

 Destas contradições, muito embora a carta se tenha mostrado flexível e tenha respondido aos mais diversos compromissos políticos, o referido suporte constitucional não suportará a ânsia de mudança motivada pelas rupturas entre os siste- mas sociais e políticos e, assim, em 1838, aparece a Constituição Setembrista, cuja intenção seria a de reconduzir o sistema aos princípios democráticos, mas que teria uma vigência curta, de me- nos de quatro anos. 

                                                 

Em 1846, depois de uma reorganização em que,fundamentalmente, se instituiu que os coman-dantes não fossem eleitos pelos municípios, mas.sim pelo governo, o batalhão de Ílhavo passa, a partir de 26 de Agosto de 1846, a ser comandado por Alberto Pinto Basto que, em Outubro do mesmo ano, lhe muda o nome para Batalhão da Vista- Alegre.Título que lhe foi conferido pela Junta do Povo de Ílhavo, vindo também a ser conhecido por 1o Batalhão dos Artistas. 

                                                         Bandeira do batalhão de Ílhavo

E é deste período que se conhece a intervenção do batalhão nas lutas liberais, quan- do as populações de Ílhavo e de Aveiro, sob o comando de João Carlos do Amaral Osório e Sousa, 2o Visconde de Almeidinha, do Morgado da Sr.ª da Nazaré, se juntam aos setembristas do Porto, no pronunciamento do Minho contra o golpe palaciano de D. Maria, considerado uma traição da corte, marchando sobre o Porto, posicionando-se em Vila Nova de Gaia. A 28 de Outubro desse ano pode ler-se em O Nacional. 

Ontem perto da noite tivemos nós, os portu- gueses, a satisfação e a honra de ver entrar nesta cidade, o honrado e valente general visconde de Sá da Bandeira, à frente de alguns batalhões na- cionais de Ílhavo e da Vista- Alegre (O Nacional, n.o 130). 

Foi este o batalhão que acompanhou Sá da Bandeira na acção de Valpaços (Val-de-Passos), tentando atrair o inimigo para fora das muralhas de Chaves492. Desta acção valorosa nas lutas turbulentas do século XIX serão atribuí- das ao batalhão de Ílhavo, por portaria de 22 de Novembro de 1846, quatro Medalhas do 1o grau da antiga e muito nobre Ordem da Torre e Espada,do Valor Lealdade e Mérito pelos serviços prestados em Val-de-Passos. O fim do regime monárquico começava então a delinear-se. Regressando ainda a 1834.

Após as guerras civis, o país assistiria a um ferver revolucionário continuado, vindo das lutas entre um radicalismo que, queria não só a igualdade civil, mas também a igualdade política advinda do sufrágio de toda a nação – e não apenas de uns tantos. E um liberalismo monárquico constitucional que, muito diverso na sua formação, fixava direitos apenas a quem deti- vesse um determinado grau de riqueza – ascensão burguesa– aspirando a uma democracia parlamentar num capitalismo económico, com garan- tia do respeito pelas liberdades individuais. Um meio percurso entre uma monarquia e uma república, puras. Depois da morte de D. Pedro IV sobe ao trono D. Maria II. Exceptuando as grandes urbes (Porto e Lisboa), o país não se reconhecia no regime. As zonas rurais, onde a igreja detinha ainda enor- me peso, mantinham-se miguelistas.


 

                                                        Revolta da Maria da Fonte

Razão porque a luta irá intensificar- -se entre setembristas – ordeiros ou radicais – e cabralistas, situando-se entre o radicalismo e o miguelismo. A reforma do sistema fiscal levantará uma onda de protestos. No Norte do país, no Minho, as novas leis de saúde, impedindo os enterros nas Igrejas, obrigando-os a irem para os cemitérios, fará eclodir a revolta popular da “Maria da Fonte” (1846). Pretendeu-se ver na “Patuleia” – soldadesca sem disciplina – (na qual, como anteriormente referimos, em 1847 combateu o batalhão de Ílhavo, também designado por batalhão da Vista-Alegre ou dos Artistas, integrado nas forças setembristas de Sá da Bandeira) uma segunda fase da revolução popular da “Maria da Fonte”, o que na realidade não é exactamente correcto.  

 










terça-feira, novembro 09, 2021

 


A BANDEIRA 1838



 A referida Bandeira é descrita por Madahil do seguinte modo :

« A Bandeira que se encontra na Câmara , é a que acompanhou o batalhão daqui nas lutas liberais de 1838 ,bordada a seda ,ostenta a legenda RAINHA E CONSTITUIÇÃO DE  1838,sobre cores nacionais da época(branca e azul) e na fita donde pende a Cruz de Cristo bordada lê-se B. da G.N. de Ílhavo » 

Ora parece haver aqui um lapso informativo. A Bandeira se acompanhou algum Batalhão, tal teria acontecido na Guerra da Patoleia que teve lugar em 1846, em continuação da participação  nas lutas de sublevação da Junta do Porto, contra o Golpe Cabralista (6 de Outubro de  1846),tendo entrado na cidade em 27 de Outubro, sob o comando do Visconde Sá da Bandeira.

Aparecem, assim  contradições entre os elementos da época . Diniz Gomes- familiar de Rocha Madahil - em «Costumes e Gentes de Ílhavo» ,(IIVol –ed Companhia Editora do Minho pp 93)  refere-nos o acontecimento com a data de 14 de Maio de 1844.

Certo é que  a Patuleia teve lugar em 1846.Assim Marques Gomes em «Noticias de Aveiro e Seu Distrito»,parece estar certo quando nos refere a presença do Batalhão no acontecimento de Valpaços, em 20 Novembro de 1846.

Mas  duvida que a Bandeira pudesse ter sido levada ,pois, afirma, “ não era crível que por ocasião da Patuleia ,o batalhão se apresentasse no Porto com tal bandeira por nessa ocasião já ali ninguém pensar sequer na Constituição de 1838  (…) mas, 

“Portugueses às Armas ! Às Armas pela liberdade e pela Rainha ! (….)

Viva a Rainha ! Viva a Carta Constitucional !... Palácio da Junta Provisória 11 de Outubro de 1846)” 

Marques Gomes poderá ter razão. Mas certo é que a revolução da «Maria da Fonte» sendo um movimento  espontâneo, bateu-se contra a lei que impedia os enterros nas igrejas (Lei de saúde) e contra a reforma do sistema tributário(os papeletas da ladroeira) pretendendo-se um regresso ao antes de 1842, ao sufrágio directo, o que significava o abandono da carta .

 Pelo que pensamos não estaria tão deslocada a Bandeira da Constituição de 1838 , e é, pois, possível - ao contrário do que afirma Marques Gomes - que tivesse sido levada aos campos da batalha pelos Setembristas de que eram apoiantes  Alberto Pinto Bastos e o irmão  Augusto Ferreira Pinto Bastos(comproprietário da Fábrica da Vista Alegre),  que integravam a Junta Governativa.  

Outra situação diz respeito ás razões porque teria aparecido esta bandeira com estas inscrições, pois ,refere Marques Gomes, existem duas e só duas portarias, determinando as inscrições na Bandeira da Guarda Nacional .



A primeira, de 29 de Março de 1834 (art 6ºe7º), determinava que cada Batalhão tivesse  uma Bandeira azul e branca com a legenda “ Rainha e Carta”

A segunda, a portaria de 14 de Setembro de 1836, pretende que a inscrição acima passe a “Rainha e Constituição de 1822”

 Depois disso nunca mais existiu nenhuma Portaria a fixar inscrição diferente das referidas .A inscrição referindo 1838 ,não teria, pois, validade comprovada.  

Como teria aparecido então a Bandeira do Batalhão de Ílhavo (da V.A)?

Marques Gomes   sugere que a mesma é apócrifa  “resultante do afecto de alguns ilhavenses por estas ideias” 

  Poderia de facto assim ter sucedido :os irmãos Pinto Bastos tê-la-iam mandado executar (bordar ) e acharam que a mesma, e os ideais que representava ,poderiam ser válidos para acompanhar o Batalhão dos Artistas da V.A , ,independentemente  de ter, ou não, validade fixada por decreto .

A bandeira ,que foi entregue à Câmara Municipal de Ílhavo ,juntamente com as quatro condecorações atribuídas ao Batalhão e ao seu comandante, estará ,agora, no Museu .As condecorações ,parece ,ninguém sabe onde param; ou pelo menos ,ninguém sequer me soube informar de que conheceriam a sua existência. 


Senos da Fonseca





segunda-feira, novembro 08, 2021

 

A MATANÇA DO PORCO (naquele tempo)


(Senos da Fonseca)

De entre as memórias de rapazito que com frequência me ocorrem da matança do porco, das mais duradouras, e uma daquelas que com mais intensidade me ficou gravada desse tempo, em que, garoto despreocupado, inserido numa família onde as tradições eram - ainda! - para durar, ia vivendo as peripécias do dia a dia, e pouco a pouco me apercebendo como era intensos e se fortaleciam, os laços de amizade, aproveitadas que eram todas as ocasiões para conseguir tal desígnio.

As relações familiares dos «Fonsecas», lavradores vindos com a história da Vila, eram muito próximas, reforçadas por uma contínua presença em casa de uns e outros, numa vivência onde a partilha era lei.

E nem um facto insólito perturbou essa proximidade.

Refiro-me a que o meu avô, o Prof. Fonseca, ter sido deserdado, e ter perdido o Morgadio. Porquê? - quererá, possivelmente, o leitor, ser informado …

Pois por um rocambolesco caso de amor; uma cena digna de romance Camiliano, quando apaixonado pela Maria Rosa (que foi minha avó), moçoila bonita, rapariga de trabalho, simples e de poucas ou nenhumas posses, decidiu romper com a oposição familiar ao casamento com aquela, que tinha as origens em família pobre de pescadores, os «Arrombas». Decidido a casar com ela, mandou às malvas a recusa dos seus, abastada família de lavradores lá do Cimo de Vila que, como era hábito nesses tempos - já tive ocasião de o contar em detalhe – escolhiam para mulheres dos seus filhos –especialmente do primogénito, o Morgado – mulher de cabedais idênticos, para reforço e engrandecimento da sua «CASA».

Ora, num belo dia, meu Avô, não esteve com meias medidas e filou o padre (seu familiar) pelo pescoço, trancando-se com ele e com a Maria Rosa, na Capelinha da Sr.ª do Pranto, chave do portal no bolso, e onde frente ao altar da Senhora, avisou o fradaço:

-Vá!: -ou case-nos … ou encomende-se que vai de catâmbrias para o inferno. Não me moa a paciência, e poupe a Senhora a espectáculos impróprios para santas.

O pobre, que conhecia bem o Professor, transido de medo perante as palavras que parecia feriam lume, e do olhar decidido e convincente de meu avô – algo que era bem conhecido por aquelas bandas –, logo se apressou a entaramelar o «in nomine patris …» para abençoar e tornar lícita, à luz divina, aquela união. Desse dia em diante, a Maria Rosa - que não deixou, toda a vida, de tratar seu marido por «Sr. Professor »-, foi uma mulher feliz, e uma respeitada mãe de farta prole.

Apesar da perda do Morgadio - e consequentemente de todos os bens - meu avô foi sempre reconhecido como o Patriarca - como o seria depois meu Pai - acarinhado por todos que o tratavam por «Padrinho», venerado, respeitado, e obedecido – quando preciso fosse por um par de bem aconchegados cachações ou reguadas - nas pequenas tricas familiares, sendo o elo de fortalecimento do clã.

Seu filho, meu Pai, tinha ainda tiques claros, reveladores da sua origem, com uma paixão louca por tudo que dissesse respeito à lavra. Nos quintais lá de cima, tudo era simulado à imagem de uma grande lavra: fazia-se farto vinho – do enforcado –, que me competia a mim e a meu primo calcar na dorna; cultivavam-se todas as espécies de verduras; mantinham-se e renovavam-se, com um amor indescritível, árvores de fruto da mais variada espécie e sebavam-se porcos com um desvelo como se tratassem de animais de estimação (embora o destino destes fosse uma morte, morte que quase parecia heróica, gloriosa). Recriava-se, dum modo muito real e muito expressivo, uma casa de Lavoura, de que a irmã Vicência – a tia Vé - era a administradora permanente e a incansável obreira, nos momentos pós aulas…

Neste ambiente a matança do porco era uma verdadeira festa, durando, no mínimo, três dias.

Mas, muito antes da data aprazada para o acontecimento, já eu acompanhava o meu pai a visitar, um a um, «os primos», em verdadeira via sacra com o fim de indagar, e melhor comparar, o estado de desenvolvimento dos porcinos dos primalhos, já que cada qual pretendia que o seu fosse, o maior e o mais vistoso de entre todos e nisto “ cada bufarinheiro louva os seus alfinetes “, é certo. «Primos» era «coisa» que não faltava: - parecia existir por todos os lados, Cimo de Vila, Cruzeiro, Moitas, Vale d’Ílhavo, etc; as visitas sucediam-se, eram constantes, e sempre que se batia à porta, depois dos abraços, era sacramental ouvir:

-Oh primo «doutor», já não vai daqui sem jantar. Que a «Maria» até levava a mal. Vamos provar o palhete, enquanto ela prepara uma cabidela de galo, de estalo.

As «primas Marias» -todas elas! - eram mulheres governadeiras, escufenadas, mulheraças de brio, caprichosas no bem receber, desempoeiradas e breves em ir buscar –e torcer o pescoço - ao melhor cantador da capoeira e, num zás-trás, enquanto a conversa e as provas decorriam, já o bicho estrebuchava na caçarola, cheirando que regalava, o que nos tirava todas as dúvidas –se é que as tínhamos ?! – de desertar.

Lá íamos, então, fazer horas para a adega, no alpendre, para a prova do «enforcado»; retirado o espiche à pipa e aparado no copo a borbulhar, eles diziam – e a mim, confesso, me não parecia - ser veludo a escorregar gorgomilos abaixo, vivinho, fresco, ágil a deslizar, mais parecendo canto celestial a pedir acompanhamento à altura : -um naco de chouriça entre dois taleigos de broa, cozida no dia, tão rescendente que consolava, vitualhas em que eu, propriamente cascava, até me refastelar. Mais uma saúde, mais lérias, vizinho que aparecia e fazia teima de irmos provar «a sua pipa», o que valia é que o dito era «água pintada», e, tal como se bebia, também logo se vertia numa ida ali ao quintal, que já venho….

Claro que o fundamental – dar uma olhadela ao bicho – lá era feito, mirando-se de todos os ângulos com o fim de medir o animal, e de dar palpites. Depois das provas o bicho até parecia aumentar de bojo: -quem bebe pelo S. Martinho faz de velho e de menino.

Chegada a hora, anúncio vindo lá de dentro alertava para a prontidão da cabidela malandra que fumegava na caçoila, já albardada na mesa. Abusacávamo-nos na casinha da lavoura - cozinha do dia a dia -, à lareira, onde chiavam uns cavacos espevitados, local onde o meu Pai insistia em ficar, apesar da pena da « prima Maria», desejosa de pôr os pratos de cavalinho na mesa aos ilustres familiares (?!), guardados que estavam para as grandes ocasiões, no aparador da sala. Por ali ficávamos a contar estórias, em mais um seroar. Às vezes, diga-se, nem sempre por mim muito apreciado, já que lá se ia uma tarde própria para namoriscar, actividade para a qual eu revelava, já então, muito mais credenciais do que para a «lavra». Mas diga-se, que entre umas horas de desvelo amoroso e uma boa cabidela, o diabo que escolhesse. E depois, dias para namorar, eram mais que muitos. E para a cabidela, nem todos. Só quando caía do céu tal iguaria. E nestas coisas, é bem certo: antes desejo que fastio, que o que é bom, não dura. E é bem verdade: - mais vale ovo hoje, que galinha amanhã.

Mas voltando ao bácoro…

O olho do dono engorda o animal mas certo é que era normal, naquele tempo, os mesmos atingirem pesos, entre as catorze e as dezasseis arrobas. Eram animais impressionantes, que para o fim já não se tinham nas patas, vivendo deitados para a seba final, por vezes alimentados à mão, já que nem tal exercício conseguiam fazer pelos próprios meios, dado o estado de prostração provocado pela (excessiva) obesidade, deliberadamente provocada.

O dia da «Matança»

Chegado o dia, logo de manhãzinha, caldeiros bem cheios de água eram postos na lareira da casinha, que crepitava.

O matador era, nada mais nada menos, que o meu primo Manuel Fonseca Jr. - o sénior era o meu Pai. Que recebera as facas do seu Pai, José Fonseca, meu tio – avô. Não, não eram faquinhas de cortar a broa ou chouriça, ou o queijo (com olhos ou sem eles). Nada disso. Eram facalhões de arrepiar um mortal. Que ao velho José Fonseca tinham sido legadas por seu pai, meu bisavô. Dos varões da família, já então só restava eu, por cá. Assim, se a tradição fosse seguida, essas facas – que confesso me arrepiavam! - deveriam ser-me entregues para «continuar» a saga, e exercer o mister, praticamente um monopólio familiar, aqui na terra. Deus me salvasse! - pensava eu, arrepiado só em as ver. Eu nunca neguei o berço: mas só de pensar que tal me podia calhar em sorte, estava disposto, como meu avô - e por muito menos! -, a renunciar a todo e qualquer morgadio de matador.Mais vale um gosto que os três vinténs, é certo, mas eu não tinha queda para ser el matador. Era bem verdade, desculpem lá isso os meus anteriores, que no resto até julgo não os ter deslustrado, que se veja.

Chegava pois o Manuel – um poder do senhor, biganau de uma força bruta, exímio jogador de malha, e habitual ganhador do jogo da corda, presença obrigatória das romarias ao tempo - trazendo as ditas, chegando-se ao animal para com o seu olhar sabedor garantir (apostar!) o peso esperado para o bicho.Tendo sido emigrante quando novo, nos States, fazia gala de se exprimir em americanês: - nice boy - good pig - dizia , e com um primeiro ,« VIVA A PÁTRIA», dava início à função, que homem lento p’ra nada tem tempo…

O suíno que já nem se podia mexer era levado de padiola (ou em cima do arado)


                


                                               Fig. 1- O animal no arado


para o «caminho» para ser colocado no carroço (ou numa escada) ,com a cabeça quase ao nível de solo, e fixo – fosse lá saber-se se o abate correria bem – com um adibal atado aos presuntos posteriores, que o fixavam ao leito da morte, mas mesmo assim fortemente agarrado pelos rabeiros.

                          

                                                                     

                                                        Fig 2-Em cima do carroço

Dois valentes fixavam as patas do animal que ia ser sacrificado. Avante, um deles puxava a pata para baixo, enquanto o outro levantava a dextra do bicho, para cima, O matador colocava então o braço por debaixo do cachaço, cingindo o animal, e com a direita agarrava num pano,                                      

que mergulhava em água a ferver, para, com ele, limpar a zona onde iria dar o golpe fatal. Uma última olhadela, – «camóne let’s go: - VIVA A PÁTRIA», concentração, e aí vai disto: sem hesitar, num golpe certeiro, a faca terminada em bico - uma monstruosa lâmina de uns trinta centímetros – afiada e pronta a cortar papel, entrava no pobre bicho que lançava um grunhido de dor assustador, roncos arrepiantes ao sentir-se ferido de morte. Eu que fazia de conta que passava as facas ao meu primo – que era para me ir habituando: - diziam! - fechava os olhos ao ver o sangue sair em golfadas enquanto o matador rodava a faca, abrindo ainda mais o golpe, no sentido de facilitar a saída do sangue que era aparado num alguidar postado em sítio certo para receber o esguicho.


                                        

                                                      Fig 4 – O aparar do sangue

Era fatal que chegaria o momento, em que o primo Manel fazia de conta que o animal se escapava, e, balançando com a cabeça do pobre bicho, gritava:

-Takerease…baby be quiet …

o que fazia com que o mulherio presente desatasse a fugir, pirando-se como um bando de pardais à vista do milhafre.

A verdade é que em poucos minutos, a vida do animal esvaía-se. Do forte grunhido, ia restando um rumor de sofrimento do animal, como que despedindo-se da vida. Quando já não mexia - salvo pequenos estertores, reflexos musculares – lá vinha novo «VIVA A PÁTRIA» ,«VIVA O ANIMAL» ,o que levava todos os circunstantes a levantarem o seu boné - ou garruço -, saudando o bicho pela galhardia (?!) com que encarara o sacrifício.

No sangue aparado, eram então feitos dois golpes em cruz, e depois de temperado com sal e limão, seguia de imediato para o caldeiro, onde a água a ferver o esperava. Cuidava-se que nenhuma mulher naquele período, tocasse no sangue –“para não o coalhar”. Nunca soube a verdade do dito, mas o certo é que tal se dizia suceder, fosse com o sangue do porco, com o leite creme ou maionese etc. Seria?

O porco era então arriado e deitado no chão.

Ia começar a chamuscagem do seu pelo. Coberto de agulhas, a que era ateado lume, o matador e um ou outro conhecedor, com a ajuda de dois paus de feijões, iam-nas movimentando pelo corpanzil, percorrendo o lombo do animal de modo a chamuscar o cabelo, com o cuidado extremo de evitar qualquer queima do couro.

                                


                                                 Fig5-Preparar a chamuscagem


Era uma operação que exigia muita atenção, destreza e habilidade. Chamuscado de um lado e do outro, com uma fogueira concentrada junto dos pezunhos, retiravam-se as unhas – as castanholas –, momento que servia de diversão aos mais novos, para as meterem nos bolsos dos assistentes. Não era uma operação nada fácil; tinham-se de aquecer bem os pezunhos para os cascos incharem, e se separarem, e puxá-los com eles a ferver, de uma palmada: shit …até fervem, - dizia o Manel Jr., escaldado.

Iniciava-se então a operação da lavagem e raspagem - o fazer a barba - ao couro do animal ; com água corrente e equipados com caliças (de adobe) ia-se afeiçoando o couro cabeludo do bicho, utilizando-se no final uma faca do tipo das usadas no bacalhau para o trote, com que se fazia um escanhoar cuidado, até se obter um couro bem amarelo e macio, aqui e ali chamuscado, mas nunca queimado.

Terminada a tarefa cortava-se o rojão do carro: - o cagueiro do porco. Era-me destinado o agarrar da língua do animal, com toda a força, para, diziam-me – e eu pantono acreditava – que tinha de a segurar para que as tripas não saíssem, por detrás do bicho.

ESTÁVAMOS ASSIM CHEGADOS AO FINAL DO 1º ROUND


-INTERVALO

Da cozinha vinha então um cesto poceiro com sarrabulho cozido, a escorrer em cima de ramos de louro, fresquinho, uma broa cortada e um prato e uma quarta de verdasco. E copos para todos. Depositado o manjar sobre uma toalhinha estendida sobre a barriga do animal, que dispunha bem enquanto se saboreava o sarrabulho e se cavaqueava contando estórias de outras matanças, comparando-se animais, recentemente abatidos.

Terminada a refrega do repasto entrava-se em nova e decidida azáfama.

O porco era puxado para dentro da adega, e nos tendões das patas traseiras era enfiado o chambaril, uma peça de madeira por onde, com a ajuda de uma talha, se içava o animal, fixando-o no gancho preso no tecto.

Bem suspenso, o chão juncado de agulhas para apararem os restos sanguíneos do animal, o matador mudava de faca, empunhando agora uma outra mais curta, com gume tão bem afiado como se tratasse lâmina de barbear, e fazia com ela, uma incisão nas duas abas do animal, de cima abaixo, deslocando o manto da barriga, atoalhando-o nas costas do animal. Desse modo tinha acesso às vísceras do animal; com um alguidar trilhado entre as patas dianteiras, com gestos seguros e rápidos, de sabedoria acumulada, conseguia extrair todo o aparelho digestivo do animal (com especial cuidado, as tripas, para que não rebentassem), que passava ao mulherio, para serem levadas ao rio da Fontoura, onde se procedia uma escufenada lavagem em água corrente, retirando-lhe os folhos: as sainhas .Com as tripas lavadas, esfregadas com sal, far-se-iam as linguiças e salpicões, que iam a estagiar no fumeiro da casinha velha, até ficarem no ponto para degustar.

A mim era-me entregue a bexiga e o pissalho. A primeira, depois de fumada, dava uma excelente bola. Por seu lado, o «dito» do animal, era graxa excelente para ensebar as botas, impermeabilizando-as.

E assim íamos esgotando as horas…

O primeiro dia da azáfama estava a terminar. O animal, limpo, ficava a escorrer todo o resto do dia e toda a noite, pois só no dia seguinte se iniciaria o seu desmancho (desmembramento).

Era chegado o momento de nos sentarmos, matador, ajudantes e alguns familiares, entretanto chegados pelo fim da tarde, em volta da mesa, para um pausado e retemperador repasto, onde se recuperavam os humores e se apreciavam as primeiras vitualhas porcinas do animal, sacrificado.

Uma sarrabulhada bem apurada, sangue cozido acompanhado de fígado cortado às lascas, a boiar num molho gordalhudo onde refogava uma forte cebolada, temperada ao ponto com fartura de pedacinhos de alho, e umas folhas de louro, que lhe davam um odor catita. O verdasco -pinga de estalo, diziam! - corria então da picheira para os copos, que sôfrega e insistentemente eram chamados à boca. E à medida que tal chamada se fazia, a língua começava a soltar-se, e a jantarada tomava foro de festa.

Estômagos já recompostos, vinha um arroz amalandrado de bofes avinhados (e ou de labercas), que fazia companhia a uma bifalhada cortada apressadamente das franjas entremeadas do animal. Noutra pichela, lá vinham as iscas embrulhadas numa cebolada avinagrada, pitéu de fazer soar as campainhas gulotonas, que faziam um indígena levantar-se lesto, quebrando as regras de mesário, não dando tréguas à digestão ao empanturrar-se com a iguaria.

Findo o repasto porcino, lá vinham umas «castanhas abafadas».

Era tempo para divertimento.

O primo Manel era um tocador emérito da concertina. Meu Pai também tocava o mesmo instrumento, embora fosse mais tosco de mãos. Tocava-se e dançava-se numa alegria que envolvia todos os presentes. Até a minha Tia Micas - sempre muito reservada -, não se escusava a desemalar o bandolim para acompanhar os tocadores, que incansavelmente davam à sanfona .Mas o que mais me impressionava era ver o meu tio - avô José Fonseca[1], já cego e com uns bons oitenta anos, cantar ao desafio - no que era inacreditável e inexpectável - a pandegar numa espécie de dança feita sobre os joelhos dobrados, que só muito mais tarde vi ser muito semelhante às danças cossacas.

A noite corria entre palratórios e lenga-lengas, e só tardiamente, já bem lastrados, se recolhiam, os convivas a penates, pois ao outro dia novo trabalho a requerer a presença do matador.

2º Round

Logo de manhã começava nova faina.

Arriado o porco, procedia-se ao seu desmanche, tarefa para o que me lembro ser especialmente dotado: - com muito jeito, dizia-se, parecendo com isso quererem dar-me alento e predisposição, para herdeiro da tradição.

O desmanchar do porco era feito com critério e ao gosto da dona de casa, que dava, amiúde, indicações de que tamanho queria as peças que se iriam separar.

Tudo cortado, peça a peça, procedia-se à salga das mesmas, numa salgadeira de cimento, onde se depositavam as peças separadas por sal suficiente para as conservar, dispostas por ordem, ou critério de utilização: no fundo, acamadas, ficavam as mantas de toucinho; depois os ossos de assuão, costela, coiratos, etc., etc.

Separava-se a carne para rojões que de imediato se vertia para caldeiros de cobre, onde a lume brando se iam estrugindo no unto de pão até ganharem uma cor rosada indiciadora de que estavam prontos para irem para os potes de porcelana, onde ficavam afogados em banha, à espera de utilização futura: - quase sempre breve, ali em casa.

Chegava, então um momento porque há muito ansiava: o hábito de levar o prato aos familiares e amigos: cortada uma febra, juntavam-se umas peças de sarrabulho e fígado, umas folhas de louro e sainhas, e em casos de graduação especial um ou outro rojão. E lá ia eu, lépido, com o cestinho – eu queria lá saber do aspecto! - entregar o dito, esperando, como sempre acontecia, por uma gorjeta, que acumulada de casa em casa, me rendia pecúlio apreciável, quase sempre para investir numa bola de futebol. E não se julgue que eram poucos os distinguidos. Não!.., que a família era grande, acrescendo que para lá desta, havia os amigos, os capitães a quem se retribuía a habitual oferenda da cestada de caras, línguas e samos, que viriam perto do Natal. Por isso, não raro, ouvia minha mãe lamuriar-se, que por maior que fosse o bicho – e era, pois meu pai fazia gala de atingir as 16 arrobas –ia-se todo nos pratos.

Claro que minha mãe não estava a fazer contas, ao que por aquelas épocas recebia, pois este hábito -o prato - era uma perfeita troca, que até fazia jeito, pois não havendo ainda frigoríficos, estas trocas permitiam, pelo menos por estas épocas e durante semanas, comer-se carne sempre fresquinha, o que era um maná. Feitas bem as contas não se ficava a perder, pois todos se esmeravam na oferta. Grandes hábitos, tradições que vinham do tempo onde respeitáveis gentes faziam agasalho da amizade.

À noite, tudo escufenado e ordenado, depois de uma «banhoca» lá voltavam para uma segunda emposta, à mesa. Os convivas aumentavam no número, pelo que as travessas de rojoada eram, só por elas, por tão abundosas, de uma imponência de recriar o olhar guloso.

Por norma, este dia era menos familiar, mais voltado para os amigos. Sempre muitos e dos bons.

Na cozinha, o mulherio preparava a carne para avinhar, e com ela bem temperada, encher a tripalhada já limpa, a aguardar hora de saltar para o fumeiro.

A matança chegava ao fim; novos seis meses para engorda de novo bácoro, entretanto já adquirido na «feira dos treze», e que prometia boa e anafada engorda.

A vida recomeçava então, de novo; colocar o «brinco» no animal para ele não refocilar; chamar o alvitar para o capar, não fossem os apetites estranhos pôr em causa a engorda, atrasando-a, dar-lhe umas colheradas de óleo de fígado de bacalhau para lhe abrir o apetite, boas couves para deslassar o trânsito intestinal, e assim emborcar mais abóbora misturada na farinha que vinha do moleiro de Vale de Ílhavo. E todos os dias avaliar «os gramas» da engorda.

Era bonita esta vida, onde uma boa parte do que comíamos, vinha ali do quintal ao lado: do aido de «Cima» ou do «Lá de Baixo».

A vida tinha encantos; a televisão não invadia o seroar; contavam-se estórias da história, a mesa era local privilegiado de reunião familiar, onde com requinte se depunham vitualhas feitas com tempo e gosto, que paulatinamente – o tempo corria mais devagar! - se iam degustando.

As tradições valiam, ainda então, como ouro de lei, a respeitar.


Senos da Fonseca

1[1] Este meu Tio era o executor e guardador do arco triunfal da Sr.ª do Pranto.Era um poço de sabedoria. Sempre bem disposto, mesmo quando já cego ,dava conselhos amiúde. Lembro-me de um, jocoso :”olha rapaz,a mulher é como a pipa. Quando lhe tirares a espicha vê se esguicha. Se não esguichar, outros lá andaram a bebericar”





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