Hoje ,dia do S.Paio primei pela ausência,cortando com o ritual.
Mas para os que não sabem aqui vai saborosa prenda
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ONDE SE DÁ CONTA DOS
ACONTECIMENTOS
DO
«ROUBO» DO S .PAIO.
PERPRETADO PELOS IRREDUTÍVEIS «ílhavos» DE NOVECENTOS
E DE Como
REAGIRAM OS «murtoseiros» A TAL AFRONTA
O «desvio» do S.Paio da Torreira
Onde se dá conta a aventura dos «ílhavos» no rapto do orago galego
Um dos episódios mais rocambolescos, praticado pela irrequieta rapaziada de Ílhavo, de então (primeira década do século XX), foi o «roubo» do S.Paio. Esse orago menino que vindo lá da Galiza – há quem afirme que a imagem deu à costa no mar da Torreira – se tornou santo (afamado) protector das gentes daquelas beiradas, sita lá para o norte da laguna. A festa do S. Paio, com destaque primaz no calendário das festas mítico-pagãs da ria, justificava presença obrigatória para renovação anual da crendice dos devotos, na boa e pronta intercepção do orago nas veredas nem sempre fáceis da vida destas gentes tementes, mais a Deus do que ao mar. A devoção é pior que sarna : atrás de uma coçadela logo apetece outra. Por essa razão os festejos em honra do santo virava verdadeiro estendal, cardápio recheado de gentes vindas de todas as hansas esconsas da Laguna, arribadas nos moliceiros, mercantelas, mercantéis, chinchorros e outras embarcações requisitadas para o efeito. Tudo quanto vogasse e onde coubessem as gentes mai-las cestadas de conduto - que a demora era para três dias e a madrugada já entrava na conta. Sem esquecer as essenciais e indispensáveis «canadas» de vinho, fartas e bem atestadas do precioso néctar bairradino – e mesmo do «enforcado» se posses não houvera para o dito – que a esturriqueira do Sol, o afã do bulício do arraial e o desentaramelar da língua a pôr em dia as novidades e trautos, fazia secura maior que baixa mar de maré viva.
Era tradição de então, cumprida a rigor, dar banho ao orago, regando-o a «tinto» em celha botada junto ao altar para o banho santo – bendito sacrifício! – para o qual todo o bom romeiro contribuía, despejando-lhe, cabecita abaixo, um bom quartilho da melhor pomada embarcada, previamente benzida - in nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti Amen…verte, dizia o tonsurado assistente.
Tão copioso era o baptismo, que o santo-menino apesar da presteza das devotas irmãs virgoleiras que acorriam a secá-lo com toalhas franjadas, debruadas a bonitas bordaduras, executadas do mais alvo e virginal linho, apresentava já, uma arroxeada maquilhagem que não escondia a farta –
ainda que santa – undação vínica.
Da Costa Nova, mal o dia despontara, e quando ainda o sol não dourara a natureza, já um grupo de irreverente rapaziada, bem aperaltada, folgazões inveterados, se aconchegara em barca fretada para demanda daquelas paragens lagunares, encalhadas lá para a beira das quintas do norte.
A meio da emposta laçara-se vara aos golfiões, baixando-se o velame. Com o envergue armara-se estendal por debaixo da qual se atravessou a toste para fazer de mesa.Sobre a qual, suspenso do cambador, baloiçava o pipo, de modo a facilitar o acesso à torneira, ali à nassada de uma mão, para atesto dos pucarinhos que se requeriam sempre cheios. E enquanto se esperava pela reponta da maré, preparara-se a bordo uma raia de pitáu, uma daquelas iguarias que levanta o moral dos peregrinos, se bem molhada para atenuar as agruras dos gorgomilos queimados pelo apimentado da sua molhanga, precioso auxiliar do orago no alivio aos que sofrendo de nó da tripa, a ele se dirigem solicitando, a sua desatadura.
Prosseguiu o repasto no “copo a mim depois de ti” – que neste jogo o empate é regra – e do meio da algarviada surge a dicha. Claro que o autor teria de ser o Manuel Mano, useiro e vezeiro em tropelias do género, um verdadeiro agitador com larga folha de serviços no registo de acontecimentos de perturbação da concórdia pública.
O desaforado propunha-se, nada mais nada menos, a raptar o S. Paio, trazendo-o para junto da Nª Srª da Saúde, deste modo acabando, dizia, com a primazia da melhor festarola. E quem sabe, pensando num possível «enlace» dos dois santinhos, pondo fim à solidão a que nem Santo consegue fugir. Há quem diga – vá lá saber-se a justeza de tal dedução – ser essa a razão da escassez dos ditos!....
- Que nem pensasse em tal asnada ! ..., advertiram os mais sisados. Se é que queriam voltar com o canastro inteiro, à Costa Nova.
Já no arraial, rodeando a celha para dar cumprimento à promessa do banho ao santinho, logo o Manuel Mano, o inveterado brincalhão, aproveitou a confusão da rega vínica para surripiar o santo, enfiando-o no bolso do varino, largueirão e abotoado de cima a baixo, do camarada Zé Guerra, sem que este se apercebesse do facto. Lesto, logo o puxa para fora da Capela, e só cá fora lhe segreda o feito. Era mais que tempo para abandonar o local do crime, pois que ninguém, ao que parece, no estricote, se tinha (ainda!) apercebido, de imediato, de tal ousio.Tão caudalosa era a torrente despejada sobre o orago que nada deixava ver, névoa tinta rubi cerrada, esparramada na celha..
Mas não há pecado que sempre dure: - antes houvera, que a vida seria bem mais gozona!
E a confusão estalou. Gritaria daquele maralhal de gente alvoroçada, um babaréu dos demónios espicaçado pelos sinos repuxados a rebate. Num verdadeiro despautério, clamava-se :
- “Aqui del Rei que o S.Paio sumiu-se” .
Obra de Galegos infiltrados – pensou-se – que teriam vindo resgatar o santinho da sua terra.
Logo se vasculharam as caras dos circunstantes, pretendendo-se com isso descortinar sinais dos ditos, que por serem gente de parentesco tão próximo – os nossos antepassados foram frequente visita daquelas bandas, deixando larga prole nas galegas perdidas na solidão dos seus homens ausentes, metidos nas guerras infindas de Castela – todos e nenhuns, o pareciam ser. Do santo nem o cheiro, pois se algo tresandava por aquele corrupio de gentes, e empestava a atmosfera, esse era o da vinhaça que fartamente tinha sido emborcada pelos folgões peregrinos, senhores de apurados dotes destilatórios.
Foi então que um murtoseiro mais atino dá de olhos no peregrino que em dia de esturreira se cobre, desconforme, com pesadão varino.
- Ná !... - pensou o catita - que promessa tão aziada, só para redimir pecador de tamanho calacre.
E se melhor o pensou, mais rápido desfez a dúvida, estaqueando à navalhada o varino do Zé Guerra, burel feito em fanicos, deixando o pobre «ílhavo» em manaias, exposto à devassa do olhar habitualmente guloso – mas no momento mais inclinado à vingança que à gulodice – das belas murtoseiras, a que nem o buço da benta é capaz de reduzir o feitiço das amêndoas apetitosas coladas no rosto. E o pobre do Zé Guerra, que lá ficou em posição tão escurra, especado em ceroulas, rodeado por tantos sacripantas de olhares contaminados prenunciando feroz vingança, deitava contas à sua sorte, ao tempo que pudicamente encobria as suas expostas intimidades, que certo era, correrem verdadeiro risco de serem separadas do dono, tantas as naifas que bailavam ameaçadoras, em frente do seu olhar, diga-se, um pouco inquietado. Pudera ! …um escrivão de tribunal metido em tal alhada …Um homem capado não era lá muito aconselhado para cumprimento da tarefa que exige uso intensivo da «caneta»…
Valeu a pronta reacção do resto da rapaziada de «íbalho», que logo rodearam o companheiro inocente, decididos em o protegerem da turba açulada. Dando-lhe para isso as costas – que é o máximo que um homem pode dar por um amigo –, incharam o peito à turba mostrando-se arrenegados, dispostos a castigar a desfaçatez insultuosa de uns tarolos que ousaram pôr um «ílhavo» a exibir, na via pública, as suas partes podengas, por mais viris e prometedoras que fossem. Varas, varapaus, estadulhos, navalhas, tudo serviu para fazer frente à horda dos espoliados do Santo, que julgaram por bem medir o grupo daquela gente cuja fama de tesura era história por demais conhecida por toda a laguna. Balbúrdia delirante da horda, que arrecuando, sempre ia gritando ….
- Matem-nos!… Capem-mos!… Cortem-lhe os ditos!..., gritava endoidado o mulherio açulado, em estrilo estremunhado que se ouviu – constou ! – no Rossio, em Aveiro.
Olhai! : - a vergonha do gozo dos cagaréus… Já nos não bastava a história da Lâmpada.
Um banho de sangue estava prestes a eclodir. Com tal sarrabulhada, previsível, pretendia-se regar o S.Paio e com a mesma lavar a sua honra –de criança! – só que desta vez em representação real, com sangue igual ao de Cristo.Pois só dessa maneira, vertido o sangue dos profanadores do templo – gentes de pacto com o diabo! –- se conseguiria a remissão para a afronta dos hereges.
Valeu estar por ali em peregrinação mais pacifica, o então Administrador do Concelho de Ílhavo, que fez valer as suas prorrogativas de chefe das Ordenanças, e com o seu vozeirão deu ordem de prisão ao «maralhal dos larápios», recambiando-os para Aveiro, onde prometeu, lhes seria aplicado severo castigo. Assim prometeu e assim se confiou na palavra da autoridade. E a barca lá carregou os infiéis, a caminho do degredo.Com tal decisão exultaram os murtoseiros.
Claro que se tratou, apenas e só, de uma manobra de diversão, pois o Regedor, Sr. José Vaz, fazia, ele também, parte do grupo. Passada a ilha de Sama, logo a barca rumou à Costa Nova onde desembarcou os desavergonhados sacrílegos, recebidos em verdadeira apoteose, como heróis. Pois a noticia correra célere com o vento.
À noite, no Salão da Assembleia, a peripécia foi contada (asseguro a Vossorias, como vo-la conto, só que com mais pormenores de tão frescos estarem os acontecimentos) regada por cântaro de palhete bairradino, daquele que parece veludo enquanto banha o céu da boca dum mortal, até se escapar, goelas abaixo, para regar o repasto - Chambão das Maias da Pedricosa mai-los Petits Poissons de La Lagune en sauce de vinagrette- que o acontecimento exigia capricho na nomenclatura das vitualhas. Acorreram as mulheres dos heróis, as primas das mulheres, as amigas das primas das mulheres, todas!...as mulheres, a quem saltavam aos olhos – libera me domine – que forneceram adequado enquadramento à alegre bailação. Juntos, com o regedor, bailaram até de manhã. Até que o cântaro ficou vazio
Certo é que para aquele grupo, o S. Paio acabou-se.
Nota do contador - Tendo-nos vindo parar às mãos uma fotografia dos brincalhões por amável deferência do filho de um deles - O Cap. Manuel Guerra - logo a entregámos ao Cap. São Marcos - verdadeira caixa de memória viva - para que nos identificasse o grupo. Nem de todos, tal, foi possível fazê-lo. Pode ser que venham ajudas, agora que a fotografia aqui fica para a História.
1. Labrincha
2.
3.
4.
5. Ademar Ramalheira (Piloto da Barra em Lisboa).
6. Marcos Ramalheira (Penhorista em Lisboa, futuro proprietário da vivenda «S. Marcos» na Costa Nova).
7.
8. Ângelo Chuvas (Funcionário da Vista Alegre)
9.
10.
11. Prof.Remígio Sacramento (Casado com D. Georgina Ramalheira irmã do Prof. Guilhermino Ramalheira).
12.
13.
14.
15. Zé Guerra (Escrivão do Tribunal de Aveiro, pai do capitão Manuel Guerra).
16.
17. Prof. Marta (Sogro do Dr. Alcino Couto)
18.
19. Eduardo Craveiro (Ourives e relojoeiro, pai do Dr. Eduardo Craveiro).
20.
21. Manuel Mano
22.
23. Eduardo Ançã (Futuro Director Geral de Finanças)
24. Manuel Sacramento (Casado com a D. Silvina funcionária dos CTT de Ilhavo).
Senos da Fonseca
2007
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