sexta-feira, dezembro 20, 2019
quarta-feira, novembro 06, 2019
Os Borda
d’Água
A discussão em
volta do círculo onde se fazia o repasto – porque aquela gente das companhas
não se sabia fazer ouvir baixo, fosse porque quem fala alto tem
sempre razão, fosse com medo que o marulhar do mar lhe comesse os sons e
lhe abortasse a ordem – versava não só o azar ou a sorte da pescaria do
dia, as peripécias do lanço, mas também as previsões sobre o tempo que faria amanhã.
O pescador sabia ler o tempo e ver nos sinais que vão
acontecendo, deles retirando as conclusões para o que o espera amanhã em
nova arremetida. É um saber adquirido e transmitido de geração em geração,
passado de boca em boca, de pais para filhos, expresso em rimas a preceito.
Arrais
olhando mar
Absorto,
perscrutando insistentemente o mar e o céu, barrete enfiado na cabeça,
escupindo a sarreta que lhe unguenta a boca, atento na lua trovejada
augoirando que trinta dias será molhada, espera que não venha com
vento pois, é certo, com vento do leste não dá nada que preste. A
lua e a suas posições servem-lhe para calcular a prenhez da companheira,
mas também lhe indiciam o estado do mar. Lua fraca... o tempo irá mudar,
pensa...e logo inspira a cachimbada, sorrindo-se do tempo adivinhado.
Mas se o vento
norte é rijão, chuva virá à mão; se for suão de Inverno
sim, de Verão não.
Se ao pôr do
sol estiver vermelho no mar...certo que haverá ‘sol de rachar’.
Quando lá
longe vê uma ave que se aproxima e lhe desperta a atenção, logo murmura: em
terra a gaivota... é que o temporal a enxota...; mas se descor- tina
estrelas a brilhar... então marinheiro, vai para o mar. Se a manhã vem com
arco...mal vai o barco, e se há miragem que espante...teremos...vento de
levante. À noite, trovão solto, no céu reboa... violento temporal, nos
apregoa...
Arrais
Dá de emborcar
mais um copo, mas com tino, pois quando ao pescador dão de beber, ou já está
moído, ou o vão moer.
Eis que a
aurora surge rubra... é... vento ou chuva...; se primeiro chuva, e
depois vento, à cautela mete dentro; mas se o vento vem antes da
chuva...deixa andar que não tem dúvida.
Interrompe o linguajar
para olhar o sopro do vento pois sabe que volta direita, vem satisfeita...
ao passo que... volta de cão traz furacão. Não tem muita
importância, pois sardinha de Abril, pega-lhe no rabo, deixa-a ir e
mesmo não é boa a solha que o pão não molha.
O vento é de
rachar... aguarda, pois depressa deve calar.
Dia para ele é aquele do rosado sol
posto, cariz bem disposto, bem diferenteda vermelha alvorada... que vem
mal encarada, pois que lua à tardinha, com seu anel, dá
chuva à noite, ou vento a granel; é tempo de amarrar o barco e ir-se
abrigar, que barco amarrado não ganha frete.
Se há arco-íris
ao anoitecer, certo é termos bom dia ao amanhecer; arco-íris ao
meio dia, é certo chuva todo o dia.
Tudo ao pescador/arrais
serve para ajudar na previsão: o marulhar da onda, o correrio das
nuvens, o seu esfarrapar ou o seu engrossa- mento; os cinzentos claros ou
escuros das massas de algodão indicam- lhe as proba- bilidades do lanço
de amanhã. O arrais é o guardador do rebanho. Inventar palavras para o
descrever (?!): para quê, se já foram escritas as mais belas, por Maia
Alcoforado565, vertidas com o coração, pois, quando falava do mar, Alcoforado sentia
o cachoar enraivecido das suas águas batendo contra a mu- ralha do peito,
aniquilando-lhe as saudades.
Do arrais
disse:
Barrete negro,
da cor dos aguaceiros, encafuado na cabeça até à encapeladu- ra das orelhas, de
borla caída a um lado sobre o ombro, a pendular sorumbática despretensiosa
ironia...
Cachimbo à
amurada golfejando novelos de fumo em espalhafatosas cabriolas, que até
pareciam de carvão a arder na fornalha enorme dum navio de longo curso. E a
embrulhar-lhe o peito, mais rijo que um cepo, o blusão de flanela salpica- do
de cores, onde arrecada a onça mail’o cachimbo, os lumes e o lenço d’Alcobaça
- quase tão
grande como as bandeiras do mariato...
Triste é o dia em que o arrais vê
chegar o bando de maçaricos, pois é
sinal dos céus
a indicar que a faina está acabada, que o Inverno está a chegar. Tempo pobre,
de privações, de puxar o barco para o cimo das dunas, recolher os bois e safar
o cordame. E tempo para se agarrar ao remo do bo- tirão, amanhando-se na ria a
pescar uns xarabanecos com que vai matando a fome aos seus. Tempo de botar
faladura na taberna, catando as agruras daquela vida estipurada onde
um home bom... na medra; vida de perigo, vida sofrida, de dor e raiva,
onde se praticaram actos de demência heróica que imortalizaram esses seres de
forças hercúleas, figuras talhadas no cerne de pinheiro bravo de onde são
feitas as cavernas do seu meia lua. O ílhavo da bei- ra-mar escreveu as
páginas mais brilhantes dessa faina, que a alguns hoje parece a menor, mas que
– bem pelo contrário! – por ser tão grande, não caberia sequer nas laudas da
maior.
Como diria o
ançã: fraldocos!...
Senos Fonseca
domingo, novembro 03, 2019
As "matriarcas" ilhavenses, Séc.XIX
A permanente
ausência, uma actividade feita ao sabor de tempos e marés, um cansaço de uma
luta titânica com os elementos agrestes da natureza que não permite cumprir
horários, acabou por criar na sociedade familiar ilhavense um tipo de
matriarcado, bem mais consentido que pretendido. A mulher assumiu, aqui, por
força da ausência dos seus homens, o verdadeiro papel de chefe de família,
sendo-lhe remetida a quase totalidade das deci- sões que noutros grupos sociais
cabem, normalmente, ao homem. A mu- lher de Ílhavo (século XIX) vai ser um
claro produto do meio onde vive, da sociedade onde se integrou. As suas faculdades,
por ancestralidade expe- ditas, as aspirações e desejos escancarados na sua
alma irrequieta ou bro- tando da sua boca em torrentes de incontida
perseverança, não conseguem ser abafados por uma vida de dificuldades que a
parece querer submeter. E se por infelicidade a roda da vida corre ao
contrário, era vê-la empunhar o remo, tentando, com o seu afadigado
labor, suprir e remediar as faltas, procurando que ,da sua lufa lufa mortificada
– nunca (!) – transpire para as vizinha ou inimigas,o seu mal.Pois com o
seu, podem as outras bem.
Não raro, se
necessário, recorre ao segredo da família ou, pela noitinha, lá vai pela calada
das sombras, ao penhorista, para em segredo se desfazer de prendas de
estimação.H erdadas ou recebidas nos momentos de fartura, que irão servir de
garantia de um adiante inté ao avanço da matrícula, ou inté, que
a roda da sorte gire para o outro lado. Em casa, o marido nem so- nha com esta
dolorosa iniciativa.
Se a questão advém da perda de lugar na companha e o seu homme tarda em arranjar alternativa, é ela que, altiva, digna e desembaraçada, exibindo matreiramente a lágrima que enfeita um olhar a que todo o homem fica impossibilitado de dizer não, vai bater à porta dos que podem dar solução e, quase sempre, consegue os seus intentos. Se é preciso papelada, é suficientemente esperta e desempoeirada para a conseguir junto do regedor para, chegada a casa, dizer ao seu Tónio: vai homem, vai, e que Deus te traga com sorte, que eu por cá me arranjarei com os teus filhos. E o homem parte, sabendo que àqueles não faltará agasalho, comidinha farta e o desvelo amoroso de mãe assumida que, para lá do essencial, não lhes faltará com uma educação rigorosa, exigente, e até com a ambição para um mudar de vida que evite momentos como aqueles, tão dolorosos. É sublime como Mãe, na ternura prodigiosa devotada aos seus filhos; mas austera na educação, como se de um Pai exigente se tratasse.
Ela educa
sózinha a prole que quase sempre é muita.Procura a escola, pois não perde a
ambição de a levar por diante, e com o produto do seu afa- digado labor lá vai
comprando o necessário para os trazer minimamente decentes. Limpos e
asseados... e de barriguinha cheia esta é a primeira preo- cupação que
satisfaz –, procurando com um moirame desbragado o neces- sário para os
prover. Quando é a hora de o seu homem voltar, é ainda ela quem prepara a
roupa, lhe compra uns sapatitos novos, umas camisas na Feira dos Treze, ou até,
se as notícias são boas, um fatito mandado fazer ao alfaiate – a quem dá as
medidas precisas –, ou não conheça ela, melhor do que ninguém– e de cor, bem
alembradas por tanto nele pensar – as meças do seu homme. Chegado
este, é ela – a arrecadadeira – que recebe por intei- ro o produto da
safra, deixando-lhe apenas o indispensável para uma ou outra ida com os
companheiros, a beber um copo, pois há muito para pa- gar: levantar as arrecadas
no penhor, pagar à senhora mestra, ao alfaiate, ao açougue e, feitas as
contas, comprar umas roupitas para a miudagem. E para ela? Nada! A sua beleza
natural, a prodigalidade com que a natureza a esculpiu, tornam dispensável o
uso de enfeites estranhos. Ela vive para os outros, esquecendo-se por vezes,
quase sempre, de si própria.
Certamente, se
este sentido de sobrevalorização feminino terá tido, como não poderia deixar de
ser, a sua origem na classe piscatória, verdade é que o mesmo se estendeu, mais
ou menos generalizadamente, a toda a sociedade ilhavense, sendo ainda bem
patente na vivência familiar de todas as casas e classes, em pleno século XXI.
A mulher, por
regra mais expedita e inteligente que o homem, era quem o acompanhava ao
letrado, ao padre, ao escrivão ou ao médico, substituindo-o nas explicações que
ele devia dar ao phisico. Era ela, ainda, quem tomava em devida conta os
conselhos e aplicava o tratamento prescrito. Esta característica de
comportamento acabou por ser comum a toda a mulher de Ílhavo, tendo, como
dissemos, perdurado ainda no século XX, mesmo nas famílias que não tinham homem
de mar; eventualmente, nestes casos, mais atenuado esse pendor.Eem todo o
caso, patente, indisfarçável. E o curioso é que o homem de Ílhavo de então
sentia-se bem com esse repartimento de responsabilidades, onde detinha o menor
quinhão, alheando-se por vezes, egoisticamente, de assumir atitudes que lhe
diriam, por norma, mais directamente respeito.
A mulher
tratava da casa, fazia rendas com que amealhava alguns pro- ventos depois de
vendidas em Aveiro. Ou costurava, trabalho para que mostrava intensas aptidões.
Carregava a canastra e percorria, a passo de gaivina, lépida e desembaraçada,
as ruas da vila para amealhar uns reis.
As suas casas
eram simples: cozinha, quarto da enxerga, uma caixa ou arca para as roupas e
uma mesa com quatro cadeiras, era a guarnição habi- tual das casas escondidas
nos becos da vila. Durante a ausência dos mari- dos, comiam frugalmente,
desprezando a carne, substituindo-a por peixe salgado, acompanhado de
hortaliça. Poupando em tudo, com o único fito de fazer dos seus, gente diferente.
E fizeram!..
Senos da Fonseca
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