Os Borda
d’Água
A discussão em
volta do círculo onde se fazia o repasto – porque aquela gente das companhas
não se sabia fazer ouvir baixo, fosse porque quem fala alto tem
sempre razão, fosse com medo que o marulhar do mar lhe comesse os sons e
lhe abortasse a ordem – versava não só o azar ou a sorte da pescaria do
dia, as peripécias do lanço, mas também as previsões sobre o tempo que faria amanhã.
O pescador sabia ler o tempo e ver nos sinais que vão
acontecendo, deles retirando as conclusões para o que o espera amanhã em
nova arremetida. É um saber adquirido e transmitido de geração em geração,
passado de boca em boca, de pais para filhos, expresso em rimas a preceito.
Arrais
olhando mar
Absorto,
perscrutando insistentemente o mar e o céu, barrete enfiado na cabeça,
escupindo a sarreta que lhe unguenta a boca, atento na lua trovejada
augoirando que trinta dias será molhada, espera que não venha com
vento pois, é certo, com vento do leste não dá nada que preste. A
lua e a suas posições servem-lhe para calcular a prenhez da companheira,
mas também lhe indiciam o estado do mar. Lua fraca... o tempo irá mudar,
pensa...e logo inspira a cachimbada, sorrindo-se do tempo adivinhado.
Mas se o vento
norte é rijão, chuva virá à mão; se for suão de Inverno
sim, de Verão não.
Se ao pôr do
sol estiver vermelho no mar...certo que haverá ‘sol de rachar’.
Quando lá
longe vê uma ave que se aproxima e lhe desperta a atenção, logo murmura: em
terra a gaivota... é que o temporal a enxota...; mas se descor- tina
estrelas a brilhar... então marinheiro, vai para o mar. Se a manhã vem com
arco...mal vai o barco, e se há miragem que espante...teremos...vento de
levante. À noite, trovão solto, no céu reboa... violento temporal, nos
apregoa...
Arrais
Dá de emborcar
mais um copo, mas com tino, pois quando ao pescador dão de beber, ou já está
moído, ou o vão moer.
Eis que a
aurora surge rubra... é... vento ou chuva...; se primeiro chuva, e
depois vento, à cautela mete dentro; mas se o vento vem antes da
chuva...deixa andar que não tem dúvida.
Interrompe o linguajar
para olhar o sopro do vento pois sabe que volta direita, vem satisfeita...
ao passo que... volta de cão traz furacão. Não tem muita
importância, pois sardinha de Abril, pega-lhe no rabo, deixa-a ir e
mesmo não é boa a solha que o pão não molha.
O vento é de
rachar... aguarda, pois depressa deve calar.
Dia para ele é aquele do rosado sol
posto, cariz bem disposto, bem diferenteda vermelha alvorada... que vem
mal encarada, pois que lua à tardinha, com seu anel, dá
chuva à noite, ou vento a granel; é tempo de amarrar o barco e ir-se
abrigar, que barco amarrado não ganha frete.
Se há arco-íris
ao anoitecer, certo é termos bom dia ao amanhecer; arco-íris ao
meio dia, é certo chuva todo o dia.
Tudo ao pescador/arrais
serve para ajudar na previsão: o marulhar da onda, o correrio das
nuvens, o seu esfarrapar ou o seu engrossa- mento; os cinzentos claros ou
escuros das massas de algodão indicam- lhe as proba- bilidades do lanço
de amanhã. O arrais é o guardador do rebanho. Inventar palavras para o
descrever (?!): para quê, se já foram escritas as mais belas, por Maia
Alcoforado565, vertidas com o coração, pois, quando falava do mar, Alcoforado sentia
o cachoar enraivecido das suas águas batendo contra a mu- ralha do peito,
aniquilando-lhe as saudades.
Do arrais
disse:
Barrete negro,
da cor dos aguaceiros, encafuado na cabeça até à encapeladu- ra das orelhas, de
borla caída a um lado sobre o ombro, a pendular sorumbática despretensiosa
ironia...
Cachimbo à
amurada golfejando novelos de fumo em espalhafatosas cabriolas, que até
pareciam de carvão a arder na fornalha enorme dum navio de longo curso. E a
embrulhar-lhe o peito, mais rijo que um cepo, o blusão de flanela salpica- do
de cores, onde arrecada a onça mail’o cachimbo, os lumes e o lenço d’Alcobaça
- quase tão
grande como as bandeiras do mariato...
Triste é o dia em que o arrais vê
chegar o bando de maçaricos, pois é
sinal dos céus
a indicar que a faina está acabada, que o Inverno está a chegar. Tempo pobre,
de privações, de puxar o barco para o cimo das dunas, recolher os bois e safar
o cordame. E tempo para se agarrar ao remo do bo- tirão, amanhando-se na ria a
pescar uns xarabanecos com que vai matando a fome aos seus. Tempo de botar
faladura na taberna, catando as agruras daquela vida estipurada onde
um home bom... na medra; vida de perigo, vida sofrida, de dor e raiva,
onde se praticaram actos de demência heróica que imortalizaram esses seres de
forças hercúleas, figuras talhadas no cerne de pinheiro bravo de onde são
feitas as cavernas do seu meia lua. O ílhavo da bei- ra-mar escreveu as
páginas mais brilhantes dessa faina, que a alguns hoje parece a menor, mas que
– bem pelo contrário! – por ser tão grande, não caberia sequer nas laudas da
maior.
Como diria o
ançã: fraldocos!...
Senos Fonseca
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