sábado, julho 10, 2021

 




Maria de Jesus, a « PINTA-CRISTOS»


A Maria de Jesus Neves, universalmente conhecida, em Ílhavo, por «Maria Pinta-Cristos» era uma boa mulher. 

A Maria de Jesus, costumeira artista, reparadora de imagens de oragos, espécie de cirurgiã esteta-ortopédica, graças a uma invulgar habilidade, tinha solução para conserto de toda e qualquer maleita, que, por desmazelo dos fiéis, ou por maladia vinda com o passar do tempo, atacasse «aqueles» em quem, habitualmente, se procurava remédio para as humanas desditas. Os “Santos”, afinal , também adoeciam pois, coitados, só faziam milagres em casa alheia. Para isso, os clérigos da região – e até os de fora –, procuravam a curadeira de santo, pois como veremos, a fama da Maria ultrapassou as fronteiras da nossa santa terrinha. Maior  fama que a dela, só conheci a do «Ceguinho» …

A Maria «Pinta-Cristos» tinha o seu “atelier” no Beco que hoje ostenta o nome da Prof. Maria Vidal - que ao tempo ainda nem sequer ali morava –, mesmo em frente à casa dos meus avós. Vão já lá muito mais que uma dúzia de mãos, de anos. Miúdo, ia sentar-me no rebate de granito que dava para o ambulatório de Santo, seguindo com curiosidade as suas «intervenções»: braços, pernas, cabeleiras, retoque ,de narizes, acentuar das bocas celestiais, e até, novo design para a reparação dos mantos dos oragos; todos (e tudo) …que entrava envelhecido, e ou alquebrado, saía das suas mãos, pronto para, se esses mundanismos já então se realizassem, concorrer a uma quaisquer Sky Fashion .

Era muito simpática, a Maria de Jesus; baixota, bonacheirona, sempre muito escofenada, sempre a bulir, cara marota muito redondinha de onde se salientavam duas maçãs camboesas, muito vermelhuscas a adoçar-lhe o rosto, a Maria dava indícios de ter sido, em nova, uma muito bonita e atraente mulher. Sempre de xaile preto, impecavelmente assente, maleta na mão onde levava os santinhos para despacho, ao recoveiro, lá ia muito afogueada e cumprimentadeira, num passinho miúdo,rápido e ágil, rua abaixo, lá para as bandas da praça. 

Mas de onde teria vindo a sua fama, badalada de paróquia em paróquia?

Vamos lá contar o que ouvimos  num seroar daqueles tempos,  no intervalo da reza em noite de trovoada, enquanto, sentados em cima dos cobertores de papa, luzes apagadas, apenas iluminados por um daqueles candeeiros de petróleo de chama bruxuleante e mortiça, se rogava protecção a Stª Bárbara para a trabuzana que ia lá fora, enquanto na lareira  se punham a arder raminhos de alecrim retirados ao bouquet pascal, muito próprios - entendia-se - para protecção a raios e coriscos.        

Um certo dia apareceu à Maria «Pinta-Cristos», o cónego Justino Belchior, da Murtosa, trazendo uma Srª do Rosário que, apresentava, forte traumatismo craniano, com mossa avultada na cabeça e sem cabeleira (própria) de “senhora dos céus”.

O Pª Justino deixou a santa ao cuidado da Maria que, desembaraçada, logo encontrou meio de fazer uma cranioplastia, para o efeito enxertando uma batata (jovem) na cabeça da dita Santa, fixando a dita batata na terracota, presa por fios barrentos. Depois de tudo bem amaciado, a Maria reconstituiu,   alourou e encaracolou, os fartos e caídos cabelos da Senhora, sobre os quais depositou a aura, que pareceu rebrilhar,ainda mais.

Foi a Santa colocada na Igreja, onde os devotos fiéis admiraram e elogiaram o trabalho dos liftings levados a cabo pela reputada esteticista.

Era o tempo em que, acabadas as sementeiras do batatal, começava a despontar das areias revolvidas por suado empenho daquelas gentes da beira ria, um viço verde-escuro sobre o qual se faziam opinativas previsões. À cautela visitavam-se os Santos  a pedir-lhes  intervenção para que a época fosse frutuosa. Bem diferente da do ano anterior. Não se augurava nada de muito bom. Os terrenos continuavam encharcados pelo salitre  da ria e, por mais moliço e escasso com que se emprenhassem, por maior revolto que neles se obrasse, parecia que aqueles areais sujos do lodaçal, não tinham  maneira de se tornarem ventre frutuoso.

Ora um belo dia, o sacristão, intrigado, veio alertar o beato de que ali, mesmo debaixo do tecto, havia milagre : da cabeça aureolada da Srª da Conceição, despertava viçoso pé de batatal que, dia a dia, parecia medrar cada vez com mais viço. O abade Justino Belchior logo foi inquirir. Não foi preciso sherlockolmear muito para se aperceber da marosca. Tipo esperto, sabedor que, para a produção de fé, um simples acontecimento estranho tem mais efeito que mil sermonários, anteviu, ali, um belo instrumento para dela dar testemunho. Por outro lado, logo entreviu rara oportunidade para tirar os seus proveitos, obter alguma prebenda, para quem, como ele, simples abade da paróquia, tinha levado uma vida a pregar com os bolsos sempre vazios, batina ensebada e polida de uso continuado, a exalçar ser dos pobres  o reino dos céus. O que, convenhamos, é boa prática a recomendar, mas má para uso próprio.   

É certo que ao tempo ainda não havia internet. Mas soprado de boca em boca, o milagre, as gentes começaram a acorrer à igreja, para ver, com olhos de ver ,o  anúncio, do que, diziam ser, sinais anunciadores de um bom ano de colheita farta

Logo o interesseiro Belchior percebeu que estava ali o seu S.Martinho. O  S.Martinho do passal paroquial. E se o pensou, logo o insinuou

- Que sim senhor, mas que era aconselhável - dizia - trazerem umas dádivas para melhor conquistar a mandadora dos sinais. Que nisto de santo, há uns certos, mais interesseiros.

E o certo é que por coincidência, ou outra coisa que,é bem certo,  que as háy…hay!…   o desenvolvimento da palha do batatal  junto da auréola da Santa,  prenunciava colheita como há muito se não via. Foi um carregar para ofertar à Senhora. Sacadas de milho e batatas, frangos, carninha do bácoro recentemente esganiçado, esmolna em moeda de lei. Enfim, tudo o sacrista recolhia, animoso, diligente nos incitamentos e prédicas, esperando que, o Sr. Abade, se lembrasse, neste fastígio de fartura, do seu acólito.

O celeiro encheu; e até verteu fora, dando para ir ao mercado, a Estarreja, para mercadejar o excesso .E desse modo, recolher o suficiente para comprar uns tarecos lá para a casa do pobre cura, que, coitado, também era filho de cristãos, e que, há muito, ansiava por uma sedia onde pudesse abusacar-se, finda a jorna espiritual, na sombra do seiceiro  do passal.

Época feita, apurada a colheita, o povo andava cada vez mais chançudo na sua Senhora; e achava que Lhe deveria ser grato. Por isso, sempre que ia de visita, levava-lhe espórtula  que deixava na caixa colocada para tal fim, aos pés da santa.

Espantoso foi que, terminada a colheita, de um dia para o outro, como que por milagre, o batatal na cabeça da santa, terá desaparecido. O astuto Belchior, em noite azada, tinha extirpado o caule que grassava por entre o cabelame da Santa, e tudo tinha voltado ao normal.

Triste andava o sacrista. Acabara-se o milagre, e para o ano as coisas não prometiam repetição,. Que nisto de milagres, não se pode ser mãos largas e torná-los banais.

E um dia resolveu queixar-se ao cónego:

- Pois é Sr. Abade... Não há bem que sempre dure. Os bons tempos de fartura foram-se. Para o ano temos de voltar aos caldinhos leves de conduto.

- OH! homem indigno do convívio com a santidade!.... descansa, homem - retorque o P. Justino Belchior; fitando a cara do azabumbado acólito - para  o ano o milagre vai ser o do milhal. Prepara o celeiro – disse maroto o abade Belchior,...

Que, nos entretantos, já  tinha vindo a «Íbalho», acertar com a Maria «Pinta-Cristos»– não fosse longa a lista de espera!–a operação da trepanação a levar a efeito, na estação do defeso, que consistiria a em substituir a batata por uns grãos de milho ,envoltos em cera de grilo, muito apropriada para derreter no momento certo .

A Maria de Jesus  nem percebeu as razões para operação tão esquisita e  até nem alcançou das razões porque é que o Padre Belchior, sempre tão forreta, lhe pagou o trabalhinho a dobrar. E que, ainda por cima, lhe deixou um saco de avantajadas batatinhas, tão agradecido se mostrou pelo bom trabalhinho feito pela «Pinta-Cristos».

O certo é que, fosse no segredo dos confessionários ,quebrado, fosse em algum parlatório em fim de lauta jantarada, o certo é que a manha foi ao conhecimento de outros colegas do abade Justino Belchior.

E à Maria «Pinta Cristos» começaram a chegar os pedidos mais esquisitos para delicadas intervenções de enxerto cranianas, todas com uma particularidade comum: ser coisa de grelo.

  

            Senos da Fonseca



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