terça-feira, março 02, 2021


 


E porque não uma pequena leitura de «OS MAIAS NA COSTA NOVA».

——————————————————————————————————————————


(....)

Quando desceram ao salão, nove e meia em ponto, já os anfitriões acompanhados de um pequeno grupo de convidados, sorridentes e ansiosos, educada e cerimoniosamente, estavam prontos a dar-lhes as boas vindas. 
Convidados a sentarem-se.A   Carlos da Maia foi dada a direita de Pinto Basto; a Ega, precisamente o canto oposto, ao lado de D. Ana Pinto Basto, muito english, muito fina e cortês, nos gestos e nas palavras. À mesa também os Viscondes de Salreu e Taboeira, e respectivas esposas, e o habitual Conselheiro Ferreira da Cunha. Do grupo fazia ainda parte o bom Arcebispo Bilhano, varão notável pela sua santidade, homem bondoso e sábio, personagem de grande cultura e instrução, raridade da sua casta. Muito longe do ultra montanismo de uma igreja notoriamente reaccionária, miguelista, corrente pouco expressiva em Aveiro, combatida ferozmente num passado ainda próximo, presente na memória de todos, pelo Conselheiro Queiroz. Precisamente o avô do criador de «Os Maias». 
Uma sopa onde o peixe, era senhor e rei, foi servida aos circunstantes. Pairava no ar, com este gesto simples, sem falsos espaventos, um afastamento de demonstração de novo riquismo. A conversa iniciou-se e estendeu-se, fluida, a toda a mesa, cruzando-se em motivações. Sem especulações, ou afirmações casuais ou inúteis. 
Nenhuma alma estava ali para se desnudar em filosofias ocas, mas antes para alimentar a sensação de estar a participar alegremente num repasto familiar. A determinada altura, a anfitriã interroga Carlos: 
– Então Sr. Maia? como vai a vida pela nossa encantadora Lisboa? Estou curiosa – bem curiosa! – de conhecer as suas primeiras impressões com a gente de cá, com quem, julgo, ter já tido a possibilidade de uns primeiros contactos. 
– Pois bem, minha distinta amiga, estas primeiras horas de vivência foram para mim muito curiosas. E até, potencialmente, regeneradoras. Parece-me convalescer. Sinto-me, estranhamente, a entrar em alegre primavera. Em franca recuperação da entediante vida de Lisboa. Pressinto a emoção de ter acedido, de novo, à varanda da vida. E... e... titubeou Carlos , olhar repentinamente fixo numa forma feminina que tinha, silenciosamente, entrado na sala, a cochichar algo ao ouvido da Senhora de Pinto Basto. 
Visão assombrosa a daquela mulher que acabara de entrar discretamente: uns olhos de um verde de água transparente, incrustados num doce rosto tisnado pelo sol, a que uns sedosos cabelos, caindo mansamente sobre os ombros, pareciam realçar um escultural corpo, que se pressentia ágil, voluptuosamente modelado. 
– Bem...ia eu a dizer ...ó Ega,onde ia eu? 
– Pois Carlos, explicavas à nossa anfitriã, a memória das coisas fúteis de Lisboa... 
– Ah... sim, claro: há qualquer coisa que me faz sentir desarrumado. Pressinto que a constatação de um erro qualquer, se apodera do meu espírito. 
– Meu caro Carlos da Maia – interrompe o Arcebispo – na vida sucede, que nem sempre nos jardins maiores se encontram as mais bonitas flores. Às vezes, num árido descampado, surge-nos algo que, num olhar, se destaca a estranha e notada flor. Alegre na sua tristeza de estar ali. Sózinha.. O tédio muitas vezes é a incapacidade de crença. Quem tem Deus não tem tédio. 
– Sr. Arcebispo – diz Ega entrando na conversa, ajustando o monóculo –nos últimos anos da minha vida tenho-me afastado das veredas do Senhor, perdido no decurso de uma vida onde,por vezes, me magoo propositadamente para me sentir vivo. Sonho uma vida erudita, mas ela não chega; sonho com viagens inimagináveis, mas quando compareço ao cais de embarque, recuo. Fujo... fujo... e acabo sempre por voltar à vida quotidiana. O tédio é esta falta de satisfação interior: pensar que penso, sem pensar. Pensar que existo, sem me dar conta que, de facto, o outro eu não existe. Já me mascarei de demónio e quando me vi ao espelho, a julgar que ficava bem no papel de Mefistófeles, o Senhor Deus encarnado no perverso judeu Cohen, correu-me a pontapé. E acabou assim a minha tentativa de fuga endemoniada. Em mim, digo-o com tristeza, a moral não me exige que eu faça bem a alguém; e também não exijo que mo façam a mim. A moral da sociedade actual está no louvor, na exaltação do lodaçal do vício. 
– Meus amigos: peço-vos encarecidamente que não acreditem no meu bom Ega. É um ser exagerado (provocante), mas dócil. Quer ele queira quer não, tem a sua moral. Revolucionária (?),quer ele crer.Um pouco de demagogia à mistura. Mas que seria do mundo sem estes arrufos revolucionários anti tradicionalistas e inovadores? Na prática quotidiana um regaço para o amigo, tanto nas boas, como nas más horas. Eu que o diga. Ao exagero, a sua falta de crendice, resume-se a não fazer bem, nem mal, a ninguém – acorre Carlos em defesa do amigo. 
Atalha o Arcebispo, expressando-se num modo confessional: 
– Bom João da Ega: deixe-me, mal grado o pouco tempo de convívio, assim o considerar: longas, difíceis, e por vezes tortuosas, são as veredas do Senhor. Este assinalou que umas ovelhas são as suas; há outras que não são. E terão de ser trazidas ao redil. Olhe é como a arte de Xávega: a rede é lançada, diariamente. Muitos peixes entram nela, e vêm à praia. Mas são mais os que ficam de fora...
– E ainda bem... ainda bem... meu caro Bispo, senão amanhã não haveria já sardinha para nos deliciar – acode o Marquês da Taboeira, sorridente, jocoso, um alegre personagem, cuja fisionomia sanguínea não permitia enganos quanto à devota predilecção pelos prazeres da mesa. 
– Parece-me acertada – assume a senhora de Pinto Basto com suprema elegância – a opinião do nosso bom Bispo: não aceleremos os tempos. A prédica ainda deixa muitos de fora. Mas os que ficam de fora, por vezes, são como a sardinha. As que ficam de fora até ao próximo lanço, são as melhores. Os «olhos do sábio são a cabeça». Só se deixa ver por dentro, quem nisso está interessado. O sr. Ega talvez não queira ainda que tal aconteça. Respeitemos a sua pretensão. 
Ega ajusta o monóculo, afia o farto bigode loiro, enfia o indicador pelo colarinho gomado da camisa, ajusta o colete de veludo verde- forte, retorce-se na cadeira para melhor se acomodar, e atalha: 
– Ilustríssima Senhora e Sr. Arcebispo: eu gostaria de nunca ser apanhado na rede. Eu quero ficar de fora para ver como será depois. O mundo só avança quando os mais fracos forem enredados. Sua Alteza, o nosso Rei, dá o exemplo: gasta à tripa forra, sempre a meter vales à Nação. Os cofres do País estão mais exangues que o meu mealheiro. Então ficarão os que hão-de acabar com esta pouca vergonha. Tudo me parece uma fraude. Até Lisboa é uma fraude como capital de um País, que o foi, mas já nada é. Só voltaremos a ser gente se vier alguém de fora meter isto na ordem. 
– Mas quem?... quem? inquire o Conselheiro Cunha... 
– Olhe Sr. Conselheiro: uma troika de espanhóis, franceses e ingleses. Cortam a ração a tenças escandalosas que, os ouros dos brasis faziam crer, nunca mais acabar. E pronto. Isto endireita-se. Haja quem mande.Que obedecer é coisa que temos por hábito. 
O dito, com contornos de idealismo revolucionário saído da boca do anafado Ega, era claramente uma provocação diletante. 
– E então depois, pergunta o Conde da Taboeira?
– Corríamos com a corja estrangeira, depois, a cacete. Como fizemos ao Junot. Recuperando a nossa glória de caceteiros-mor da Europa. Se Deus veio a Ourique, será de esperar que venha, então, agora de novo, a Trancoso. O nosso povo é obediente para os da casa. Mas forte para os intrusos. Os nossos políticos é que são o flato pátrio. Uma cambada corrupta de asnos. Um lodaçal pútrido. Porque devem então trabalhar os portugueses? Para os manter em exibição, esmifrando-nos com os impostos? Comigo não: antes que o país entre na bancarrota, vou é gastar a herança a Paris. 
– Ai... o Senhor Ega parece que augura a chegada para breve dos republicanos. Mas não duvide – atalha o Conselheiro Cunha... – não duvide... Mudam os burros... mas a manjedoura será a mesma. A «loba» será a pátria. Os rómulos e os remos, serão sempre os políticos: os monárquicos e os novéis republicanos. Os que vão gastar para Paris, certos de que têm bom gosto e são gente civilizada... E como não podem lá ir amiúde, ficam por Lisboa. A fingir que, ali, é Alexandria do farol. Ah!... para eles a Província é uma morada de tísicos e leprosos. Fica por Lisboa esse pequeno grupelho de mamões ineptos, à espera que, da Província, lhes seja mandado o sustento ganho pelos servos. São vazios da cabeça, sem olhos nela – como refere a D. Ana – para ver que é bem bonita, a nossa capital. 
Vermelho, um pouco atingido nesta apreciação do Conselheiro, Ega pigarreia: 
– Pois: o senhor Conselheiro deu-me farta matéria para o meu livro, cujo título será «Interpretação objectiva de um País». Será uma obra sem artifícios nem escusas, clarificador, contundente, despido de frases bonitas, janotas, vazias de realismo. Onde demonstrarei que o mal, veio de considerarmos e interpretarmos o nosso passado pátrio, sob um ponto de vista exclusivamente materialista. 
– Fico na grande expectativa de o ler. Mas porque não escreve mais, meu caro Ega? 
– Olhe D. Ana, um escritor que se preze – e eu, João da Ega, prezo-me de o ser – tem um grande problema actualmente; é que cada livro tem de ser escorrido de uma caldeirada de pseudo literatura, onde há de tudo. Há que deixar repousar a boa, para a separar da horrenda literatura possidónia. Que tudo critica e tudo põe abaixo. Por isso tenho esperado just the moment. Só se vier outro terramoto, ou uma pestilência silenciosa que arrasem esta terra de embófia, levando as cabeças mirradas destes diletantes pseudo inte- lectuais, é que, então... sim (!), nascerá uma nova literatura. Aí terei o meu tempo para ascender à imortalidade... 
(...)



Sem comentários:

  67.   Poemas de Abril Abril: síntese inalcançável Já não há palavras  Que floresçam Abril,  Nem já há lágrima...