MANUEL FERREIRA DA CUNHA (1863-1946)
Ainda conheci – e fiz-lhe montes de diabruras de que hoje me penitencio, e que ele aceitava com extremada paciência –, e dele me lembro com perfeita nitidez, o Sr. Cunha.
Era um homem baixinho, de passo miudinho, sempre muito bem agasalhado, exibindo uma enorme e farfalhuda bigodeira retorcida, encavalitada no beiço, que ele continuadamente cofiava, à medida que dum modo pausado ia dando conselhos e avisos, em jeito professoral, didáctico, num tom de voz e atitude, amainados, fazendo gala de uma viva inteligência.
Manuel Ferreira da Cunha tinha sido o proprietário da Farmácia Cunha, hoje Farmácia Senos. E foi ele, solteiro, sem filhos, que sabendo dos parcos – ou nenhuns! – recursos materiais de minha Mãe, mas admirando-lhe a vivacidade, a pertinácia, e a seriedade, a mandou chamar, e lhe propôs condições muito especiais que lhe proporcionaram vir a ter a propriedade da farmácia, sob o encargo de uma renda vitalícia a pagar à irmã solteira de Ferreira da Cunha, D. Guilhermina.
Esta Farmácia tem uma história de cerca de duzentos anos (1836-2008).
É certamente – talvez com a Farmácia Dinis Gomes – um dos estabelecimentos comerciais, com porta aberta há mais anos, na cidade.
Era – e hoje ainda o é, mesmo depois de modernizada -um exemplar de catálogo das mais
bonitas farmácias de País, com referência específica e destacada nos livros que abordam a
história farmacêutica nacional.
A sua traça inicial – que foi o mais possível respeitada no conceito, aquando da sua
modernização – mostrava um esplendoroso móvel expositor com alçado em arco, ladeado
por colunas maciças de madeira, apoiadas em parapeito a toda a roda. Na base deste
distribuíam-se gavetas de notável expressão artística, que adiante referiremos. No topo
posterior, que fechava em semicírculo, de frente para o cliente, podia admirar-se uma
lindíssima porta envidraçada, que tinha inscrito a palavra, «Laboratório», encimada por
nicho em arco, debruado com um rodapé de trança de madeira, engoivada à mão. No
laboratório existia um célebre almofariz para manipulação de químicos e uma lindíssima
balança de precisão. Todo o tecto côncavo, era entabuado a capa e camisa, e rematado por
lindíssimos frisos
Porta do «Laboratório Chimico»
A Farmácia teve a sua mais longínqua referência em José António Vidal, farmacêutico e
químico, um homem distinto, natural de Vale de Ílhavo, vogal do júri dos que se
propunham, então, à habilitação de «farmacêutico».
Era o tempo em que as mezinhas se faziam como expresso na «Farmacopeia Lusitana», ali
à demanda do doente. Águas para tudo: água magistral para a dor da pedra de rim, feita
com limões galegos, água para a sarna feita de tanchagem e solimão; água para tísicos,
feita de carne de tartaruga, e muitas outras aguadilhas. Unguentos (?!), mil!... unguento mundificativo dos nervos, feito de mel e terebintina, unguento de fezes de ouro, unturas adversas do nariz, mas e também da moral. E de poses estamos falados: havia-os para todos os malefícios e dos mais diversos tipos; pós de João de Vigo, e os do papa beneditino para os flatos, feito de coentros; e até os pós de Maio para as frieiras. Óleos (?!) muitos e variados: de marmelo, de alcaparras e de alacraus. Tudo como na Farmácia do Gaudêncio.
Oliveira Vidal (primeiro quartel séc. XVIII-1845) foi o proprietário da primeira farmácia que abriu em Ílhavo (7 de Novembro de 1807). Da sua prole, uma das suas filhas, casou com Alexandre Cesário Ferreira da Cunha. Também este farmacêutico, discípulo de José Vidal, e que viria a assumir a farmácia do sogro. Alexandre Cunha – que suponho tenha dado o nome «Cunha» ao estabelecimento (1836) – terá tido um filho, José Vieira que foi também proprietário da farmácia. E que por sua vez a legou a seu filho, Agostinho Vieira. Finalmente, cerca de 1880, a «Farmácia Cunha» chega às mãos do filho de Agostinho, Manuel Ferreira da Cunha.
A Farmácia Cunha tem, pois, a data de fundação de 1836, sendo praticamente contemporânea da fundação da Fábrica da Vista Alegre. Por isso, na parte inferior do escaparate dos medicamentos, atrás referido, inseriam-se (e estão preservadas) vinte e quatro gavetas a que minha Mãe só muito tarde, soube, terem sido pintadas pelo francês Rosseau, o primeiro mestre pintor da V.A.
GAVETAS DA FARMÁCIA CUNHA (HOJE FARMÁCIA SENOS)
As pinturas das referidas gavetas – expressando um certo ruralismo romântico, onde vetustas mansões se inserem numa paisagem, tema autónomo do quadro, inserida pelo autor em primeiro plano –, embora tenham sido sujeitas a tratos de polé, resistiram a tudo. Até ao sabão de potassa e à escova de piaçaba usada para as esfregar, e abrilhar. São peças lindíssimas, em tom de mel, dignas de acervo museológico, como a fábrica da V.A, aliás pretendeu, em determinada data. Na farmácia existia, ainda, um número notável de frascos de vidro para conter os químicos, que a Vista- Alegre um dia, veio a verificar, tratarem-se terem sido dos primeiros vidros produzidos por aquela fábrica, tendo por isso solicitado alguns exemplares para expor no seu museu.
«Frascaria»
Só pois, tardiamente, se soube do facto, e desde então se começou a olhar para a frascaria- assim se expressava no contrato de trespasse feito em 1944, a minha Mãe – com minúcia, o que permitiu colher a percepção da raridade dos tons azulados, arrocheados, castanho amelado, verde garrafa, translúcidos ou transparentes, bem como as suas doces formas, de boca larga e boca estreita, muito elegantes no seu design. Restam uns tantos exemplares na família próxima. E na «Farmácia Senos», claro.
Julgamos interessante referir que uma outra filha de José Vidal casou com Manuel José Gomes, pai do cónego José Cândido de Oliveira Vidal; e pai também de João Gomes, farmacêutico, por sua vez pai de João Carlos Gomes (1836-1886), este também farmacêutico e primo de um outro farmacêutico, Dinis Gomes (esta família Gomes foi apelidada d e «os boticos»).
Voltemos a Manuel Ferreira da Cunha (1863-1946).
Tendo feitos os seus estudos em Aveiro, foi para Coimbra onde concluiu com rara distinção o curso de Farmácia. O ensino superior farmacêutico só nasceu verdadeiramente em 1836.Manuel Ferreira da Cunha, como seu Pai, cursou já na Universidade de Coimbra,
o curso de Farmacêutico de 1a classe. (os diplomas existem, e são públicos na farmácia actual).
Interessado pelo Ensino Público, é nomeado Inspector Primário Concelhio (1884),vindo a fazer parte da Junta Escolar Concelhia.
Colaborou, praticamente, em todos os jornais locais, nos distritais e até em alguns nacionais, da época: «Diário de Notícias», «O Século» «Ilustração Portuguesa» «Distrito de Aveiro» «Os Sucessos» «O Rebate» «Boletim da Liga Naval» «Ecos da Avenida» «Jornal de Ílhavo», «Gente Nova» «Terra dos Ílhavos», «Beira-Mar», «O Ilhavense».
Fez as biografias de Arcebispo Bilhano, Alexandre da Conceição, José Maria Ançã, Gabriel Ançã, Filipe de Oliveira, Samuel Maia, Sousa Martins e Sousa Teles.Foi correspondente do Jornal de Notícias - 40 anos! –, de «O Século» e do «Diário de Notícias». O seu primeiro artigo foi publicado no «Jornal da Manhã», em 1881.
Participou na elaboração do Dicionário «Portugal»
Em 1888 foi eleito correspondente da Sociedade de Farmácia, e em 1908 foi convidado
para o alto cargo de Membro da Academia «Phisique Chimique Italienne», para
finalmente ser distinguido com o honroso convite para membro da «Societè Académique
d’ Histoire International». (1924)
Durante a anexação do Concelho de Ílhavo, por Aveiro (1895), é Manuel Ferreira da Cunha que funda o «Movimento para a Restauração do Concelho», tendo sido ele com os seus escritos e petições quem alimentou a luta que levaria à reintegração, em 1898. Foi ainda Ferreira da Cunha quem redigiu o agradecimento a José Luciano e Castro, agradecendo-lhe a referida reintegração. Em 1900 é eleito Presidente da Direcção dos Bombeiros Voluntários de Ílhavo.
Nos jornais locais Ferreira da Cunha será a primeira personagem a lançar a ideia de um
Hospital para Ílhavo, continuada e concretizada por Viriato Teles..
Será ainda Ferreira da Cunha quem envia a petição ao Parlamento, para que seja concedida
ao arrais, Gabriel Ançã, uma pensão de sobrevivência.
Ocupou o cargo de Administrador do Concelho entre 1900 e 1903.
Recordo-me dele nas visitas quase diárias que fazia a sua casa, ligada internamente á Farmácia. Ia matar a sede ao púcaro de barro que havia na casinha, em cima da banca de lousa, com o caneco de esmalte pousado no prato que o tapava. Recordo-me de ver o ti Cunha, como lhe chamava, quase sempre rodeado de livros, ou de pena empunhada, a escrever numa letra muito certinha e alinhada, laudas de folhas de que infelizmente não sei o destino, e que urge recuperar. Aproveitava para o arrenegar com qualquer diabrura em que era useiro e vezeiro. O bom velhinho, lá fungava umas palavras, um misto de irritação e ternura que eu na altura nem apreciei devidamente. Era muito miudinho – por isso alcunhado de Pissoquinhas, pelo rapazio da rua – por ser muito pormenorizado, muito metódico, querendo tudo muito bem explicado, não se dispensando de vir dar conselhos a minha Mãe que o ouvia com muita atenção, certamente aproveitando o seu imenso saber.
O inferior revela uma análise à urina para saber da presença de diabetes
A vida de Manuel Ferreira da Cunha foi um exemplo de civilidade, tolerância, num homem
virtuoso e bom, imbuído de um forte sentido de compreensão para com os outros, disse-nos
Américo Teles aquando do seu falecimento em 1946, em «O Ilhavense».
O seu arreigado sentido familiar, protector das irmãs a quem criou situações materiais
aceitáveis ao tempo, é um exemplo de fraterna dedicação, renunciando a muita coisa de
bom que poderia ter chamado só para si.
MFC foi um farmacêutico distintíssimo, muito meticuloso, honrando a classe de que fazia parte.Que lhe retribuiu quando por unanimidade lhe concedeu um voto de louvor na Sociedade Farmacêutica Lusitana, importante estrutura que muito contribuiria para o desenvolvimento das Ciências Farmacêuticas em Portugal, tendo-se salientado pela grande intervenção no campo da politica profissional, farmacêutica.
Ilhavense dos mais ilustres da sua Terra, ninguém melhor que Ferreira da Cunha, e mais desinteressadamente, soube pugnar pelos legítimos interesses do nosso concelho refere Américo Teles em 25.08.1946.
Senos da Fonseca
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