terça-feira, outubro 05, 2010


A BARCA DA PASSAGE na «MALUCA»



- Raios partam o ladrão do tempo – esconjurado[1]! - que me empata a vida - ia dizendo de si para si, a Maria, encharcada até aos ossos, engaranhida[2] pelo frio. Com uma mão lá ia segurando o canastro, enquanto que com a outra se afadigava no desbravar das contas da reza, invocando a Senhora dos Aflitos e a protectora, a Santa Bárbara, para a livrarem dos raios medonhos que riscavam em zigue zagues o céu chumbeiro, logo seguidos do ribombar assustador da trovoada que parecia capaz de esfanicar[3], tud’òmenos[4], o que tivesse forma ou expressão material na natureza. 


     Certo é que Maria não se preocupava demasiado com o estramboto[5] do temporal, que a rapariga não se enleava [6] com tão pouca coisa. Preocupava-a, isso sim, ter deixado para trás o irmãozito mais novo, que uma tosse mais parecendo esgana dos bofes, atacara. Tinha-o levado à botica do «ti Manuel Cunha», para que este lhe desse um xarope melaço e um cáustico, capazes de afadigar o malzinho[7], ao garoto. Antes de se pôr a caminho, a Maria agasalhou o Luisito que ficou bem aconchegado, e tratou, ainda, de deixar um «caldito de conduto» na lareira, e a traganeira[8] de milho, com que os restantes irmãos, e a mãe, a Efigénea, a «Pederneira», pudessem aconchegar o encostado[9] do estômago.
Tudo isto fora a causa de faltar à hora combinada, para, em grupo – o que sempre era mais prazenteiro, e naquele dia, até aconselhável – demandar o caminho da Maluca. Afadigou-se, por isso, a aligeirar o passo, mas o certo é que, nem ao longe, olhar atirado lá para as funduras do caminho, divisou as colegas. E nem sequer outra alma penada se divisava por aqueles endireitos[10], que naquele dia – pensava – mais pareciam os caminhos do purgatório. Ninguém com canastra de venda à cabeça, ou burricos carregados, ajoujados de lenha, sal ou outra mercancia, acartadas para a vila, se avistava. Ninguém se afoitara ao caminho com aquela trabuzana[11] medonha, que parecia imprópria para seres vivos.  
A Maria da Anunciação não era mulher de desistir. Era uma mulher de còrage[12]. E, mesmo só, não hesitou em atirar-se ao caminho, e atravessar aquele deserto de areias maninhas, onde aqui e ali se distinguiam tufos raquíticos de vergônteas enfezadas, castras gafadas[13], povoadas por vezes (já) por uns enfezados milheirais. Os tinhosos pinheiros com que se pensava fixar as areias, e desse modo proteger os aluviões, que se acreditava poderiam vir a ser a terra prometida, separavam os prados arenosos para onde o esfalfado colono cachiava[14] carradas de pilados e outro escasso, e muito moliço, com que ousava esfalfadamente cumprir o desígnio de «agarrar um povo», àquele deserto nascido do mar.  
Quando desembocou no prado da Maluca, terra já verdenta, e avistou ao longe a torre da Capela da Srª da Encarnação. Maria «Pederneira» pensou com os seus botões que não levaria mais de meia hora para que o sol descesse ao nível do mar. Tempo suficiente que lhe seria necessário para chegar ao cais da passage[15]. Parecia-lhe ter ouvido o longínquo ressoar do búzio[16]que assinalava a partida da carreira, o que sendo improvável, dada a distância a que se encontrava, inté[17] podia acontecer com o escarampêto[18] do tempo. Já não tinha ideias de apanhar a última barca. Com este temporal desfeito, era até provável que não houvesse carreira. Se calhar, nem o Tóino «Murtoseiro», o mais atrevido e esturto[19] barqueiro da carreira do Ti Ambrósio, se astreveria [20]a tal escaramuça.


O Labareda

Por pensar no Tóino …, acudiu à Maria, um sorriso maroto:
A passage[21] para a outra banda servia para raparigas e rapazes daquele tempo descontraírem do fardo que é a vida, e se entreterem ao jogo do beliscão, ousio que para os tempos era a antecâmara de outros atrevimentos, a sós. 

                 Sola, sapato, rei rainha
                 Foi ao mar buscar sardinha
                 Põe o pé na pamplina
                 O rapaz que jogo faz?
                 Faz o jogo do capão
                 Diz à velha do condão
                 Que arrecade o seu pézinho
                 Que arrecade o seu pézão
                

                  Salta a pulga da balança
                  Os cavalos a correr
                  As meninas a aprender
                  Diz-me lá minha menina
                  Qual será a mais bonita        
                  Que se há-de recolher?

Lá estavam as costumazes  comadres da galhofa: a Xerobia ,a Ana Gaiteira- danadinha prá brincadeira maldosa -, a Prazeres «Anunciada»,e a Pardala «Biqueira».Mulheres a quem a vida dura não conseguia retirar uma certa jovialidade, por mais atormentadas que fossem as agruras. As mais recatadas e menos faladeiras  abusacavam-se nos bancos a bombordo e estibordo ,para junto do cagarete onde o arrais  Toino dirigia a manobra.A Anunciação ,era sabido tinha lugar bem junto ao ao varão da escota aquando da manobra da atracção ,sempre de cortar a respiração ,o Labareda enquanto calava a porta do leme a estibordo, dava a escota á Maria que habituada aquelas lides bem sabia o momento exacto para pôr a vela a panear ,facilitando o encontro aos moirões.




O rapazio, filharada daquelas mazio ,filharada daqueoiras de trabalho, que ainda traziam um ao colo e já outro se assentara no interior da barriga, dispersava-se pela barca. Uns empoleirando-se no bico da proa atracados aos   golfiões [1] .Outros faziam companhia ao ZéZé, um pobre e manso rapagão, vogando de lugar em lugar em passo marcial, sempre agarrado ao seu pífaro de cana verde: um entalhe feito logo abaixo da norsa, no lenho, deixando um membrana fina que produzia  uma sonoridade fonha.  O ZéZé, um pobre diabo incapaz de fazer mal a uma mosca, era induzido pelo rapazio a  abeirar-se das moças a  pedir: -éh! chopa mostra-ma a tua coisa.
As mais ozeiras [2]resolviam dar trela ao pobre homem. E não se desmanchando, respondiam na galhofa: -amostro pois atão, amigo! ; mais vale mostrá-la a ti que não importunas nem ofendes, c’ó Padre Engrácio que é atrevido e mexeriqueiro. Aqueles fraldocos[3] que ta mandaram, que peçam às tísicas das  irmãs  escolhambradas[4], para tas mostrarem. Haviam de ser bonitas de se ver.
 Quando alguma se ofendia e arrenegava como o pobre, logo a voz de trovão do Labareda se fazia ouvir:
-Veja lá a ofensa ó «Ti Essa[5]»; havia de se ver a sua sarda [6]que deve ter mais pregas que o manto que o Sr. Jesus leva na procissão.


[1] Peças no castelo que servem para calar o ferro de fundeio.
[2] Ousadas.
[3]  Tipos sem importância.
[4]  Descomposta, com mau aspecto.
[5] Uma qualquer.
[6] Peixe mole, peganhento, de bigodes.


Passantes habituais o amolador,  o « Ti Chinquilho»,homem dos cem ofícios ,exímio gateiro de malgas e alguidares, prático colocador de varetas nos guardas chuvas e amolador de instrumental de cortar. Certo que a Pardala dava um caquinho[22] para se meter com o pobre homem que sossegadamente se sentava no traste junto ao mastro em faladura com outros passantes.
 - É «ti Chinquilho» há-de passar lá por casa que o meu Xico diz que o meu alguidar já tem a «racha» muito  aberta de tanto pucelo [23].Precisa de uns gatos ,que eu não quero botar chana ,desafiava a língua da Pardala.
- Pois que vou..catão[24] ?!mas é melhor levar um sevela [25]não vá de teres por lá algum ilhose [26]da cônchara[27]  entupido.
Risota geral e já o «ti Cantante» puxava da concertina e a preceito tocava uma de roda.

                               Indo eu ,eu ,eu
                               A caminho de Viseu
                               Encontrei um novo amor
                               Ai Jesus que pra lá vou eu…

Logo o grupo soltava o chinelo e, pé descalço nos paneiros, rodopiava em desafio.
 -Eh! gente…tomai freio, que ainda me botais a borda debaixo d’auga  suas colamantroas[28] ..Artas[29] com elas que me esfanicam o barco. Berregas [30]malinas ,gritava o Labareda.

A  Berta «Pimpoa» -a alcunha viera-lhe  do seu jeito de andar sempre exuberante e garridamente atafada[31] , viúva  do José Cachino que deus  tem!- mulher escofenada[32] ,de carnes rijas,  bem mantida – no alimento que  aconchega os interiores  esfomeados , mas e também , dizia-se entre xailes!, no alimento  espiritual que o Padre Malaco lhe prodigalizava em visitas a horas incomuns -, levava   sempre consigo ,debaixo do encerado ,na canastra, uma saquinha  onde metia uma traganeira[33] de broa de milho ,saída do forno da Ti Josefa Rendida, e ainda, embrulhados em papel pardo amarelecido pelo molhanca [34] gordurosa deles saídos ,dois coiratos bem avinhados  por via da vinha d’alhos[35] em que eram conservados no pote de barro. Não faltava uma garrafita que outrora fora do fino[36] , aberta pelo Supero, e que agora continha uma pomada tinta de que comprara um quartilho lá na loja do «ti Traquete», afamado taberneiro com altar montado [37] lá no Urjal, que tinha fama de vender vinho  extreme, sem baptismo d’auga da fonte dos amores ( a melhor , mais límpida e a mais frescal [38] água para tal sacramento baptismal).
De navalha de astripar [39]e escorchar[40] a sardinha, em punho ,a «Berta» cortava a broa para onde encaminhava  o coirato[41] que lhe ia servir de conduto para o resto do dia. Logo que aberta a garrafita para pingolar[42] o conteúdo,  era sabido que a Berta só abria excepção para o Labareda que,  cuspindo e limpando a boca às costas  da mão, trilhava entre lábios a dita e deixava que «o sangue de Cristo[43]» lhe escorresse gorgomilos abaixo.
Quem se amofinava toda com esta deferência era a Anunciação  que entre dentes murmurava: raio da viúva gaiteira, parece que o padreca não lhe arrefece os calores.


A embarcação atravessara já o Canal do Desertas e orçava ganhando o vento para não se deixar descair.
Era tempo de Josefa «Caixina» inquisilar [44]com o  «Quim Trolaró» que no carroço levava umas mercancias para venda ,porta a porta. Chambres, camisotes, ceroulas, cuecas de perna e barguilha[45] abotoada, linhas e derivados, enfim uma loja ambulante.
-Èh ti Jaquim,  vossemeçê[46] não leva aí uma camisinhas, daquelas sem mangas nem abotoadura, de enfiar pela cabeça ao zamparilho[47]? A Zefa «Lavada» está mesmo a precisar, que logo entra a barra o seu home, o Toino «Espiga», e é certo que rapaz vai querer botar a jaja  [48]no sitio.Vai ser uma laburdia [49],que o Toino parece um simprinhas[50] mas é um marjavante[51] afiançado e deve trazer o chamiço[52] em brasa.
-Cal’ te mulher. Delambida [53]invejosa. Eu e o meu Toino cá nos arranjamos ó natural  ,desmantados.[54]O que tu querias sei eu bem ,astipôr. Num me injerizes chopa,que desinquietada já estou eu.
-Pois pudera. O festim vai ser d’arromba[55].

A mota estava ali a dois passos. A manobra era sempre de arrepiar. A dois comprimento, uma ligeira arribadela para ganhar velocidade, e logo todo o leme a barlavento, em orça de aterragem. A Maria larga escota, o pano bate, trava a embarcação e a força da corrente, faz o resto atirando-o mansamente para o pousio.
É a debandada. Ainda os cabos de amarração não estão passados e já bando  granizeo salta lesto para a mota. Posta a canastra á cabeça, ala que se faz tarde. O peixe prateado espalha-se já pelo areal: é preciso conluiar-se com os mercantis para que o quinhão fique a preço menos contribado.[56]   



[1]  Amaldiçoado
[2] Tolhida
[3]  Fazer em bocadinhos
[4] Tudo
[5] Extravagância
[6] Atrapalhava
[7] Maleita
[8] Pedaço de broa
[9] Vazio
[10] Paragens
[11] Temporal
[12] Coragem
[13]  Tifosas
[14] Acarretava
[15] Passagem para a outra banda ; carreira da barca
[16] O sopro do búzio era o sinal de chamada para a largada da barca
[17] Até
[18] Escarampanteado
[19] Teso, valente
[20] Atreveria
[21] Vide  19)
[22] Fazia tudo para…
[23] Furo aberto com um bico agudo
[24] Porque não.
[25] Instrumento afiado com que se abrem furos na madeira ,couro ou até no barro.
[26] Peças de latão que se colocavam nos sacos por onde passavam os atilhos.
[27] Concha.
[28] Desleixadas.
[29] Raios.
[30] Que fazem muito barulho.
[31] Vestida; bem arreada.
[32] Limpaça.
[33] Pedaço de broa de milho.
[34] Molho gorduroso avinhado.
[35] Processo de conservação da carne consistindo em regá-la com vinho ,e apondo-lhe muito alho.
[36] Vinho doce ( do Porto)
[37] Balcão onde se bebiam os copos de três.
[38] Fresquinha.
[39] Tirar a tripa ao peixe.
[40] Cortar a cabeça e esventrar o peixe, para o salgar em tinas.
[41] Pedaços da pele do porco com alguma entremeada agarrada.
[42] Bebericar.
[43] O vinho de missa.
[44] Intrometer-se;desinquietar.
[45] Abertura nas cuecas para verter águas.
[46] Vossa mercê.
[47] Coisa desajeitada.
[48] Peça tronco cónica que se coloca no fundo da embarcação tapando o bocal de escioamento.
[49] Enfartadela.
[50] Simplório,incapaz de fazer mal.
[51] Maroto.
[52] Tição.
[53] Presumida.
[54] Com a camisa retirada.
[55] Assinalável.
[56] Proibido.

SF  5.10.2010

1 comentário:

Fernando Martins disse...

Que delícia, meu caro, que delícia!

Fernando Martins

A « magana » que espere....  Há dias que  ainda me conseguem trazer interesse renovado, em por cá estar  por mais uns tempos. Ao abrir logo ...