terça-feira, maio 08, 2012


Horas….



Dia passado, monótona e dolorosamente, nos corredores do I.P.O.

Não se deixa de ter a impressão –ou sensação – de estar no corredor da morte, por muitos avanços que a ciência prometa. Corpos que se arrastam –outros arrastados – caras vincadas, maceradas pelo sofrimento, gelhadas e vincadas, exprimindo mais do que sofrimento :-a derrota. Não é difícil, num ou noutro rosto, naqueles que aguardam sentença, vislumbrar um esgar que parece querer significar, por ali ancorar, ainda, uma ténue esperança. Aqui certifico-me que o género humano foi destinado ao sofrimento, porventura em troca da razão concedida. Os animais sofrem sem consciência. Abençoados..

A ciência avança. É inegável. Mas desesperadamente lenta para aqueles que já compraram bilhete, alguns mesmo dando a entender que quanto mais depressa melhor. Porque lutar naquelas condições, é de facto, desumano.

As horas, ali, correm lentamente, tal como o cloreto de sódio corre(?) ,pingando, para dentro do corpo do paciente.Dizem que para matar as células más. Ainda não percebi, como é que esta mistela distingue as boas das más.

Perpasso um olhar pelas leituras onde se empata (prendendo) o tempo, e noto paradoxalmente que a maioria dos pacientes traz revistas cor-de-rosa para se abstrair da realidade. Estranha preferência, esta, de quem perdeu a fantasia de viver, continuando-se  a enfetichar com as ilusões que se vendem a pataco.

Ao meu lado vem sentar-se alguém que, como eu, não vai por aí. Prefere falar. E eu que estava doidinho para isso mesmo. E a conversa flui á volta da doença. Ultrapassada a barreira do desconhecimento, atira-me:

-Tem um bom aspecto...; no início é sempre assim... .

Fico um pouco perturbado, apetece-me dizer-lhe: – não, não estou (vá lá saber-se ?!)...Mas logo entendo que por respeito e solidariedade não devo desmentir-lhe a impressão.

-Pois, doente ou não, há que sobreviver. Na nossa idade qualquer dia é dia, incluídos os dias santos. E fico-me pelas meias verdades.

-Na sua ou em qualquer outra. Olhe tive um filho de vinte anos. E a danada adiantou-se e veio buscá-lo. Porque me não levou a mim?

-É porque a dita cuja é cega.... fui adiantando. Cega e escabrosa, sentindo um prazer redobrado quando leva um mais novo. Por isso deve-se dar-lhe pouca cunfia. A vida é uma viagem só de ida, com destino certo. Às vezes ao longo da viagem ainda podemos sair num ou outro apeadeiro. Mas logo recomeçamos viagem. Olhando pela janela, vemos a vida parada e nós a «correr».

-Pois, diz-me - eu já me habituei à ideia de morrer. Morrer não custa; o que custa é não saber como. Se fosse só sair do comboio,vá lá…Mas o raio é que a parte final é a mais indesejável. Ao contrário das viagens de ida e volta, em que à chegada temos sempre alguém à nossa espera, na grande «viagem» não há ninguém para abraçar ou sequer sorrir.

-Pois eu por mim, queria mesmo encontrar-me com o criador deste mundo de horas angustiosas. Para Lhe dizer, cara a cara, que para fazer esta maldade mais valia ter estado a mandriar nos restantes seis dias.

-Poça …você é mesmo descrente, diz-me.

-Empedernido. Se o não fosse seria então descrer do Homem (à minha imagem e semelhança), e nesse, eu acredito. Mesmo duvidando. Mas pensar que «alguém» foi tão cruel que para parecer piedoso, tem de mostrar tanta impiedade, isso ultrapassa-me.

Neste momento o alti- falante chama o Sr. X ao Hospital do Dia. Levanta-se, sorri-me, despede-se com um – até sempre (que ironia na situação!), e lá vai receber o Cloreto de Sódio & Venenos.

Fiquei a pensar: valeria a pena ter-lhe ocultado?

Mas a verdade é que enganar a vida é fácil. Mas a magana, essa (!) é que nós não enganamos. Podemos trocar-lhe ainda por imaginados dias, as voltas. Mas isso é apenas adiar o inevitável.

Dá-me a impressão que a partir de certa altura vivemos horas clandestinas.



SF 2012

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