quarta-feira, maio 09, 2012

Naufrágio da barca da «passage»


A passagem da barca da carreira, habitual desde os primeiros passos das gentes sobre o areal da Costa-Nova, e que se prolongaria até ao ultimo quartel do séc.XX era, na mor das vezes, um momento de descontracção que servia  aos passantes para galhofar, cantar e até dançar,se animados com a prodigalidade da natureza a proporcionar reconfortante sustento.

                                                   
                                                   A Barca amoiroada na 1ª mota(1907)

Mas certo é que por vezes as coisas não corriam, bem assim. E dias houve em que a travessia, perante a necessidade inadiável de a levar a efeito, era feita em condições adversas de tempo, exigindo aos arrais das barcas, muito saber, destreza e arte.E afoiteza..


                                                    
                                                         A Barca atracada na 2ª Mota (1936)

Em Agosto de 1907 a tragédia esteve à beira de suceder quando perante um desbragado e não esperado temporal (pelo menos com tanta intensidade) se abateu por toda a região de Ílhavo, e em particular sobre a Costa-Nova.

Era a tarde do dia 12 de Agosto do referido ano.
O céu mostrava-se escuro, as nuvens toldadas por um cinzento enfarruscado e empurradas por forte sulada, revolviam-se endoidadas, fazendo prever condições pouco apetecíveis para atravessar da Maluca para a Costa- Nova.Sobre a ria descarregava uma forte trovoada, pré anunciada por raios que rasgavam, em zig-zags caprichosos e fantásticos, o céu, iluminando a superfície da laguna, que surgia revolta, com farfalho a galopar, quebrada a crista das ondulação que teriam mais de um metro de cava.

Dir-se-ia que o diabo andava à solta, a brincar com a natureza assarapalhada com tanto barulhar, por vezes aterrador.

As barcas tinham encostado á mota, e depois de bem amoiroadas, os arrais refugiados na tasca da Ti Norta iam matando o tempo, escorropichando uns copitos de bagaceira, que lhes matava a inquietação.

Entre eles o António Roquete, colega do Labareda, gafanhão de tempera rija, resistia aos apelos da Ti Cacheira.Que desesperada tinha ao colo uma filhita de um ano.Tanto quanto o tempo da sua viuvez.Agarradas ao saiote, uma sobrinha de 4 anitos e uma filha da Júlia Rainha, peixeira como ela, lá dos Sete Carris, que teria pouco mais que os dez anos. A Cacheira bem moía o Roquete, pedindo-lhe pelas alminhas que a levasse ao outro lado, pois, tinha lá todo o rapazio, uma leva de filhos tidos do seu defunto, à espera, esgalmidos com fome.Desde o dia anterior apenas deixara aos seus meninos um caldito com um cheiro de conduto. Coitaditos, os orfãos de pai, a chorarem pela mãe, seu único amparo.: - ia dizendo ao Roquete, no sentido de lhe amolecer a hesitação.


                                    
                                                                  O Arrais

O Roquete bem hesitou.
O esculhambado  tempo, dizia, não aconselhava a mareação à Senhora da Saúde mesmo que «esta« desse prometesse dar uma olhadela por aquelas almas penadas. Mas a Cacheira tanto insistiu-ai Ti Roquete os meus meninos finam-se com o meu delatar! - que o bom arrais dando uma última olhadela à tramontana, decide embarcar a pobre viúva e largar amarras.

Até meio da ria, a viagem é feita com a toste bem metida, pano folgado a um largo, calcador solto, como solto ia o bolinão para que o mastro não fosse muito castigado. A borda entrava na cava da onda permitindo que a seguinte lhe entrasse aos golfões, fazendo boiar os paneiros.Nada contudo, que fizesse temor ao Roquete, mão segura na escota para, em caso de necessidade a soltar de um sopetão; o leme ia caído um pouco a barlavento para que a barca recebesse a vagalhoça pela alheta de proa. A maré, que já enchia, ia de encontro à ventania, encrespando e enrolando, a vaga, que desfazia  em linhas de espuma alva correndo para o norte, velozes.

Mas o inesperado surgiu. Um violento golpe de vento do SW, apesar do arrais soltar de imediato toda a escota, envolveu a barca, atravessando-a à vaga, virando-a de borco. Gritos lancinantes desprendem-se do peito daquelas  almas desgraçadas, que vêm a morte, ali, preste a levá-las consigo.

Roquete dá a mão á Cacheira e coloca-a na borda agarrada ao mastro. Com o pequerrucho preso nos dentes, mergulha, e consegue alcançar as outras duas crianças, trazendo-as para que se agarrem à borda da barca.
A barca é feita de tábuas...as tábuas aboiam...logo a barca flutua,concluiu um dia o Thomé Ronca, silogisticamente. E flutua, qual estranha baleia boiando sobre as águas que pareciam endoidadas.
Com o bebé preso nos dentes, o Roquete tem ainda, uma e outra vez, de ir recuperar uma das crianças que exausta não aguentara as batidelas da vaga e o frio da água, mãozitas hirtas, enregeladas.

Só um milagre poderia salvar aqueles infelizes.

Eis que da Costa-Nova os banheiros ti Pardal e o Ti Ricóca, com mais três camaradas, se metem numa caçadeira, daquela de nove cavernas, e tentam defrontar o turbilhão das águas. Impossível era, contudo, que uma bateirinha rompesse com aquela desarcada tempestade. Impotentes não têm outo remédio que o de se deixar descair para o Bico, onde aterram.

A esperança parecia perdida. Mas..

Eis que do sul o Arrais Serino, o Agostinho Pataneca, o José Agualusa, o Gordinho e o António Russo, se metem numa chincha e, remando forte, homens conhecedores e afoitos, lá conseguem chegar junto da barca e recolher os náufragos. Iam já três quartos de hora que aquela gente enregelava nas águas batidas pela sulada, prestes a desistir da vida ,exaustas ,enregeladas..

O António Roquete pelo seu feito mereceu a distinção de El-Rei que lhe concedeu a medalha de Mérito.
Pretendeu-se ainda que todos aqueles que se tinham atirado às aguas na tentativa de salvar aqueles infelizes, fossem, eles também, agraciados pelas autoridades concelhias.Sem resultado,nem ao menos uma medalha de cortiça.

Senos da Fonseca

Julho 2008

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