sábado, abril 20, 2013





Postal  9 da «Casa do Bico»
 
Estórias da Companha
 
Pois: um dia teria de acontecer. O inverno ceder à sua bastarda violência. A Costa-Nova, descubro agora, é louçã mesmo com a invernia; com a lareira acesa, ver o fustigo da chuva varrer a vaga, ler um bom livro, e estender a mão para um whisky suave (mesmo um four roses adocicado), e até um casmurro descrente, como eu, acredita que não havendo «deuses» mandantes, um homem pode-se revirginar, eu sei lá (?!), eternamente. E em cada que amanhece querer ter a lua na palma da mão.  
Mas hoje acabou-se. Salto para fora e logo deparo com uma cena de antologia: cinco bateiras «amarradas» aqui aos pedregulhos, atiram-se ao «ameijoal» que este ano parece semeado, mesmo à borda. De «cabrita» ao ombro, num trabalho danado, cuspindo nas mãos de pele dura, vão lavrando o fundo da ria. «Puxa», «cede», «puxa» …e aos saltinhos a «cabrita» varre o fundo. Chegada à borda, virado o saco no tabuleiro, o labutante atira o mexoalho fora, para proceder, logo ali, a primeira escolha. Paro deliciado, embora interiorizando o esforço esgalmido do camarada. Que feita a apanha ir receber´ escassos  três/cinco «euritos» por quilo de amêijoa «macha» que, à falta de compradores espanhóis, este ano, se vende ao preço de «uva mijona».
Bem …era tempo de ir ao encontro da Zefa e da Bernarda. Com a minha paragem  para apreciar a pescaria, elas já ali vinham. E o encontro deu-se a «meia-água».
-Atão (?!) gentes: – dias destes, nem de encomenda. Hoje é só azul, de azul. Ficamos encharcados de tanta macieza… fui  eu adiantando…..
-Pois. Este tempinho do Senhor até nos brune por dentro. Vá, axi xe-se aqui que hoje trago-lhe uma estória e das boas – ó larilas.
 -Avance mulher. Desembuche que eu sou todo fiel de ouvidos. Que os olhos perco-os na ria. Vá que eu dou-lhe todo o meu crèto.
- Vá…então,
olhe nos meus tempos de garota, na companha do Arrais Magano, havia um abegoeiro, murtoseiro rijo entroncado, já homem de idade meã, muito sério e conspícuo de palavras e actos, que vivia num recanto da abegoaria onde recolhia o gado, finda a faina, e aí, dele tratava. Nas mãos do abegoeiro as juntas andavam num folgo vivo, duna abaixo, duna acima, numa guita do caraças. De seu nome, de bautismo ou por crisma, conhecido por ti Brígido.
Ora na companha, andava uma rapariga, ou melhor, uma raparigaça, bonita, mançanzeira de face, esguia de corpo e abocada de ancas que balouçavam, pecadoras, no andarilho da lideira da escolha do pilado. De seu nome e alcunha,  Fernanda «a Fininha».
Havia um zamparilha, um tal Albino « o Escuro», rapazote mal encarado de vida ao rossaló, sem rumo e tino, tipo azedo e brigão, que por umas naifadas dadas numa briga, a um paciente, fora deportado para uma prisia lá do Porto. E muito embora a Fernanda não  lhe permitisse nenhum avanço, certo é que o Escuro desinquietava a rapariga, acoimando-a, impedindo-a por ameaços, que desse cúnfia fosse a quem fosse. Como se ela fosse propriedade sua.
Num fim de tarde, a horas de recolho para dar descanso ao corpo por umas escassas horas, na palha da abegoaria, o Ti Brígido dera com «a Fininha» encolhida no areal, deitada de borco,chorando compulsivamente.
-Que é lá isso, raios ; porque estás para aí arrolada? inquiriu o Brígido.
-Ai deixe-me, tio, que a minha desgraça está escrita. O «Escuro» irá cumprir a ameaça…
-Que me dizes? Atão esse xabuqueiro já voltou?
-Já. E disposto a tirar-me a vida se eu não lhe entregar o meu corpo. Que a minha alma, essa!, nunca será dele. Mais valia dá-la ao diabo, Ti Brígido. Afaste-se de mim, santo homem !..., desta desgraçada que parece que tem  peçonha. Olhe que ele pode vir aí cumprir a promessa, e  atira-se a si.
- Isso é que era bom !!! vá anda daí. E baixando-se, agarrou-a pelos ombros levantando-a facilmente, levando-a para o palheirão. Depois de a acomodar, foi  ao borralho de onde tirou uns peixitos que aloiravam no brasido ateado. A Fernanda recuperara o ânimo, e contara ao Brígido, em pormenor, a tragédia do seu viver. De repente ouvem-se socadas violentas no portão do palheirão.
-Quem é lá, a besta que escoiceia assim? – atira o abegoeiro.
- Veem ! …já me reconheceu diz o alarve d’o « Escuro» para a camarilha. Abra a porta que eu sei que está aí com a Fernanda; ou ponho-a abaixo. Vou aí e espeto os dois.
O Ti Brígido abre o portal, e do alto da sua figura larga e emproada, olhos mansos mas a despedir chispa com a zanga, marmeleiro erguido, olha o «Escuro» que  se fazia acompanhar por dois gálicos mal-encarados. Ao verem  a cara de poucos «amigos» do homenzarrão – só agora repararam que o Brígido não é um homem correntão –, instintiva e medrosamente arrecuam.
-Olhai bigorrilhos: ides entrar e ver se está a Fernanda (que entretanto mandara esconder-se no rolo do cordame do reçoeiro). E se não estiver, vamos tratar do assunto e acabar com a fanfarronice de vez. Ides zangalhar ao som do marmeleiro, que tenho o fole cheio de tanta avaria.
O «Escuro» e acólitos entram, olham, olham …e nada.
-Bem:  astão, vamos lá fora.
O «Escuro nem espera. E rapando da naifa, gritou:
-Vou-lhe escachar a alma desgraçado…
O Brígido, rápido, tira do marmeleiro com ponta a luzir, e aponta à orelha do berrega, escarchando-o de alto abaixo. «O Escuro» cai redondo como perdiz atingida por tiro certeiro. Sem hesitar, marmeleiro zune e bate certeiro, ora num, ora nos outros bardais.
Agarrando o «Escuro» pela piolheira ergue-o e dispara:
 - Se voltas a pôr os pezunhos na companha esgalho-te de alto abaixo. Agora foi só a amostra. Da próxima, rapo da foice de dar palha aos bois, corto-te por onde mijas, e penduro-te nos cornos do «Asdrúbal» (que era o cobridor da abegoaria, manso de farta e recurvada cornadura, bem afiada de pontas). Sim, quando me decidir, limpo-te.
Com uns valentes pontapés e pauladas corre com o grupelho. E o certo é que o «Escuro», bem aconselhado sobre, afinal, quem era aquele homem solitário, vindo lá da Murtosa: que bom por bom,…era bom, como mar manso. Mas por mau, deus nos livre: era um toiro desembolado.O  «Escuro» bem avisado, desapareceu de vez do acampamento dos Xávegas.
A vida continuou, a « Fininha» foi-se afeiçoando em silêncio àquele «santo homem», até que um dia o Brígido lhe atira:
-Olha Fernanda; eu estou para aqui sozinho. E se viesses viver comigo sempre nos amparávamos, um ao outro. Mas se vieres, só depois de juntos por Deus. Queres?...
-À ti Brígido: eu, pouco a pouco, fui-me aquietando e afeiçoando a si, bom  home. Há benícias que gosto de si. Eu querer, queria. E já!...mas sabe que o Padre Jerónimo é muito esquisito. É um inxum, que não casa murtoseiros com gente de cá. Diz que não quer misturas de vinhos.
-Ah não?! Então vamos lá…
E lá foram. Na capela onde a «Senhora da Saúde», substituíra o S. Pedro, como orago local, estava o sacrista d’«o Bexigoso». E na sacristia o frei Jerónimo. O Brígido com «a Fininha» pela mão, entra.E resoluto diz ao pobre sacrista:
-Salta lá para fora e dá cá a chave da casa. Não foi preciso repetir. «O Bexigoso» : ala que se faz tarde.
Fechando o «portaló» da Senhora, o Brígido chama o F. Jerónimo. Que comparece, lépido, ao ouvir a voz de trovão no templo:
- Olhe, abade Jerónimo: à face da lei do Senhor que nos vê, despache-se e case-nos. Depressa. A porta está fechada. E vossemecê, ou escolhe a bênção, ou vai depressa é direitinho para os anjinhos. Ou de muletas para o inferno, se não me fizer a vontade. Basta uma cruz sobre a gente, dois pai-nossos, e umas lengas-lengas de faladura. E pronto. Chega. E olhe :acabada a cerimónia vá mudar de batina que a «maré» chegou –lhe aos ditos. Inté’prece que nem acredita no que prega, e afinal o céu nem boa coisa é para morar.
E ainda que trémulo e gago ,o fradoco consuma o enlace cristão.
---------------------------------------------------------------------------------------------------------------
E assim, diz a Zefa, chegámos ao fim da «estória» que afinal teve um fim feliz. O que é raro, digo-lhe eu…
-Pois: o Brígido que ainda tinha nele muito de homem – não sei se me entende?- (entendo, entendo, disse-lho eu…) - ainda fez dois filhos à «Fininha».Mulher respeitada, que depois da morte do Ti Brígido, pôs mãos à empresa, e foi a primeira «abegoeira» cá do sítio. Não havia mulher mais governadeira e despachada. E sempre pronta a tirar do mealheiro, para acudir aos que mais precisavam. Quanto ao «Escuro» foi um ar que lhe deu. Parece que se meteu noutra desgraça, e foi degredado para África. O +Escuro» que devia ser filho de marroquino aqui naufragado, dada a sua tez, pouco se distinguia dos de lá….
SF (Abril 2013)     

Sem comentários:

  67.   Poemas de Abril Abril: síntese inalcançável Já não há palavras  Que floresçam Abril,  Nem já há lágrima...