Caros Amigos e conhecidos do FACE.
Esta semana não estarei poraqui.Cumpri um plano rigoroso de trabalho árduo, com a intençao de terminar os elementos para a nova edição ( . a 3ª) do Ensaio Monográfico de ìlhavo.
Cumpri.E portanto por mim já ninguém espera. Com ele segue o PREIA-MAR,pequenos arrufos poéticos que terei gosto em oferecer aos amigos.
Ora no Ensaio (aumentado substancialmente), e revisto, decidi incluir umas figuras marcantes da nossa cultura(letras .artes,vida cívica)que nas edições anteriores não inclui,por razões que agora explico. Deixo hoje, para que alguns ainda recordados da eminente figura que foi Mário Sacramento ,atentem na versão longa (há outra reduzida para outro fim), e corrijam.Ou sugiram algo que me possa ter escapado.Podem criticar à vontade que, para a semana ,olharei com atenção.Boa semana...e cá vai MÁRIO Sacramento..
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MÁRIO SACRAMENTO (1920-1969)
Mário Sacramento nasceu em Ílhavo, em 7 de Julho de 1920,na casa da sua família, ali ao Largo do Oitão.
Filho de Artur Sacramento, comissário de bordo na Marinha Mercante (homem
muito culto, possuidor de um grande carácter e sentido de vida, figura
altruísta e solidária – será um dos
primeiros Comandantes dos Bombeiros Voluntários de Ílhavo) e de Rita Sarmento , cuja família vinha de pesado
tributo pago nas lutas Liberais ,enforcados que foram dois dos seus tios, em Aveiro, pela camarilha absolutista. O
convívio desta família materna, muito próximo de figuras proeminentes nas lutas por uma nova
ordem de liberdade, igualdade e fraternidade que tinham ido beber à Revolução Francesa (de onde se destaca o tribuno José Estêvão
cuja esposa era madrinha de D. Rita Sarmento), teria tido, certamente,
influência no jovem Mário que, habitualmente, passava grandes temporadas em
casa da família materna, como ele mesmo recorda no seu « Ave Aveiro »:
“Sob os lampiões dos Arcos, Rua dos Mercadores
abaixo, vogavam bateiras conduzindo os teus íncolas (ia a dizer os teus doges)
às soleiras das portas. E eu batia palmas de menino com brinquedo, na janela da
avó. Casa escura, com mofo a rato, olhares do José Estêvão no louceiro antigo,
um opúsculo do Marques Gomes a dizer-me que um tio de antanho fora decapitado
pelo D. Miguel, grades de pimpons nas sacadas de pedra antiga — em que um dia
entalei a cabeça (para retomar essa tradição, quem sabe?), tendo sido liberto,
depois de muito suor e ferros, por um serralheiro do Mindelo”..
Desde miúdo Mário Sacramento atira-se à bem recheada
biblioteca que seu pai, metódica e permanentemente organiza, embrenhando-se em autêntica sofreguidão na leitura de livros que lhe irão conferir uma
notável e precoce cultura, muito direccionada
para teses vanguardistas, especialmente no campo humanista. Esta precoce
aptidão é, desde muito cedo, reconhecida
e valorizada pelos mestres com quem
contacta, seja na Escola primária onde o prof. Guilhermino Ramalheira lhe atribuiu o primeiro lugar de todos os alunos que lhe passaram pela mão na sua
longa carreira docente ,quer por José Tavares e Agostinho da Silva, que,
reparando - deslumbrados! - no jovem
Sacramento e no jornal que edita sozinho ‑ “O
Furão”- logo o convidam -tinha ele
imberbes catorze anos -para Director do Jornal do Liceu de Aveiro –A Voz Académica. Neste vai como principal
colaboradora, aquela que seria mais tarde a sua mulher,companheira de uma vida,
a escritora Cecília Sacramento .
Mário Sacramento aprende,
autodidacta, o Esperanto ,língua que
então se sonhava vir a ser ,língua universal:-
“um só povo ,uma só língua “ ; e,
jovem ainda, logo em Ílhavo, cria, nos AHBVI, uma turma aberta para divulgação
da mesma. O Esperanto, acreditava M.S.,
seria a antecâmara para a união dos povos sob o fim último das teorias
marxistas da igualdade, de direitos e
oportunidades, que já então lhe despertavam a atenção e o empenho.
Desde cedo se descortina em M.S.
um ousado interveniente de elevada
capacidade reflexiva, uma hiperlucidez (?!) ,vertida em inflamados discursos, conferências
e tertúlias académicas : tudo que servisse de veículo a uma divulgação
pedagógica que lhe era particularmente inata. Fazendo intensa e assumida
propaganda de ideias esquerdista no
então, Jornal o «Diabo», a mais destacada tribuna nacional.
Em 1938 (dez de Junho) a PIDE
prende-o pela primeira vez, ao mesmo tempo que proíbe a publicação e circulação
da revista «A Voz Académica» .Tinha, tão só, dezoito anos, mas a prática, o
empenho e aceitação das teses vertidas tão precocemente, começavam a ser
perigosas –já! - e a importunar célere o regime Salazarista que antevia com
perspicácia - diga-se - ali se encontrar
um potencial e vertido subversor do regime fascista .
Contrariado na sua vocação pelos pais,
que o não deixam seguir letras, Mário Sacramento vai estudar Medicina para
Coimbra,e completar, depois em Lisboa (1946), o curso. Tempo para aderir ao M.U.D
juvenil, movimento de unidade cujo
fim era o derrube do regime fascista, que irá levar
a P.I.D.E a intensificar a vigilância , seguindo com
redobrada atenção todos os passos de
M.S. Pronta para, ao menor sinal, decapitar este empenho que sente provindo de um ideário profundamente interiorizado e assumido,
que se mostrava imparável na acção, em busca de
novos valores da liberdade. Liberdade de acção, de expressão, de reunião e
associação, fundamentais para os cidadãos portugueses exercerem os seus
direitos de cidadania, em pleno.
A sua vocação para a escrita salienta-se em
1945,quando apresenta nos Jogos Florais da Universidade de Coimbra o livro «Eça de Queiroz –Uma Estética de Ironia»,distinguido
desde logo com o prémio Oliveira Martins.
Neste trabalho, Mário Sacramento segue o
percurso de Eça (autor a que o ligavam afectos familiares próximos e e exultação pelo exemplo do avô daquele,o Conselheiro Queiroz que,
em 1828, levantara o povo de Aveiro(e do País) pela afirmação suprema da Liberdade),procurando dilucidar sobre a influência que nele teria tido a vivência de
Coimbra – cadinho onde se fundem ideologias e novos rumos do pensamento– e, assim, descobrir o genial escritor realista, “impressionado execravelmente com o que
encontra em Lisboa”; o realismo com que Eça combate o romantismo acomodado
de Camilo, e em que Mário Sacramento vê “o
resgate do séc XIX” ao servir os propósitos da revolução das mentes e dos
espíritos - a sua evolução,os caminhos, as mutações no pensar –tudo é dissecado
por M.S. que, insiste, na necessária ligação entre a arte-escrita e a acção.E que
nos vai descobrir o momento exacto em que Eça (na carta a Carlos Mayer),parece
“pegar pela primeira vez na pena para
escrever genuinamente com ironia“. A mesma «ironia» que seguirá
Mário Sacramento vida fora “como arma de
arremesso” para denunciar a opressão e lhe resistir ferozmente. Hoje ainda,
a análise crítica de Mário Sacramento ao autor de «Os Maias», emparceira com o
que de melhor e mais válido se fez, em profundidade e exegese, ao escritor
realista, na «arte de combate e arte
revolucionária», concluindo que “uma
sociedade sobre estas falsas bases não está na verdade ;atacá-la é um dever
“
Terminado o curso, M.S. vem exercer a profissão para Ílhavo -
onde de imediato tem casos clínicos notáveis que o fazem sobressair da mediania
instalada – abrindo consultório na Rua
José Estêvão onde passa a viver com a família. O consultório transforma-se no
local que vai servir de ponto de reunião
a políticos do contra, reviralhistas e
ou revolucionários. Por isso sempre atentamente debaixo dos olhares da PIDE que amiúde vigia – escancaradamente -
os pontos de acesso ao mesmo.Ponto contudo de referência como local de atendimento para os mais
necessitados que, graciosamente – e tantas vezes ainda reconfortados com alguns
tostões no bolso para a compra dos medicamentos – dali saíam bem agradecidos, reconstituídos
física e materialmente .E que, por vias disso, o
irão glorificar ao atribuir-lhe o epíteto
de «Médico dos Pobres» ,como
passa a ser conhecido. Mário Sacramento rejeita definitivamente todos os laços
de pequeno burguês -grupo social de onde
proviera-que deixará, clara, definitiva e
assumidamente, para trás.
O ano de 1953 leva-o de novo aos calabouços políticos.Lúgubres interiores onde
irá sofrer as sevícias da tortura do
sono, ou do plantão em «estátua».Responde às agressões enviando à família escritos
cheios de ironia, sabendo de antemão que, a primeira leitura dos ditos, será
dos esbirros. E assim os aguilhoa. Resiste,
física, anímica e ironicamente, desesperando-os, bandarilhando-os, como se faz à besta cega. Nos «Contos», que
dedica e envia da prisão pidesca aos filhos, fá-los acompanhar de desenhos onde
exprime uma sensibilidade artística de certo modo apreciável, por onde faz
perpassar tenebrosas figuras de vilões, sujeitos a final da história adequado
ao fim pedagógico que pretendia atingir, mas servindo de recado para a
molesta embófia, que era obrigada a
lê-los, na sua idiota missão controleira. E, na cela, apesar de lhe chegarem a negar a simples consulta de livros,
elabora um trabalho intitulado «Fernando Pessoa -Poeta da Hora Absurda » que será publicado em 1958. Um trabalho de que, mais tarde,
disse, gostaria de refazer, dadas as
condições em que foi elaborado. Nele leva-nos à descoberta da essência
comum entre o poeta e os heterónimos - embora assuma serem individualidades
diferentes–e a concepção geral da vida do
vate :– um beco sem saída ! onde Reis
procura não se lembrar de que o beco pode não ter saída ; onde Caeiro até acha desnecessário
saber se a há… ou não ;e onde Campos é o único a procurá-la. Não pela saída e o
que isso significará. Mas apenas e só, pela procura.
Põe-nos perante o logro que,
embora “reconhecido logo se aceita”,pois considera os ditos “ não como autores ,mas como Pessoa escreveu a Campos, a Caeiro ,e ou a
Reis”.
O «tempo de Pessoa» –a hora absurda !- o cume do génio que
nele existia, só poderia ser alcançado se, “absurdamente,
se invertesse ou alterasse o conceito de génio”,pois, diz-nos “no génio não pode haver Ironia”
Entretanto a actividade profissional segue os seu
desenrolar por vezes recheada de algumas
desilusões –patéticas e angustiantes – provindas da atitude corporativa dos
colegas, mas e também, consequência dos
hiatos a que os seus doentes se vêm constrangidos, dadas as ausências assíduas,
consequência das prisões que sobre ele
sucessivamente se consumam.
Em Ílhavo os «próceres» locais
impedem-no de trabalhar na Misericórdia, tentando coarctar-lhe a carreira
profissional. As denúncias de colegas e as maledicências empurram-no para o exercício médico em Aveiro (1955),onde se irá estabelecer em consultório aberto, mesmo em frente
do café Trianon, local onde diariamente reúne com a sua tertúlia politico-literária,
sob o olhar e ouvidos atentos dos esbirros obtusos e palúrdios da polícia politica do regime que, ávidos de
presas, vigiam de perto o grupo nas mesas contíguas. Sem por vezes se darem
conta de que são identificados, e por isso, mimoseados com a vulgata comum, da maledicência e brejeirice .O que
não impede de nesse ano ,em 1955,
voltar – por duas vezes - a ser levado para a António Maria Cardoso. O
então inspector chefe dos esbirros pidescos, o grotesco Sachetti (cujas
origens se situam em Aveiro),sabe do perigo que representa Mário Sacramento
e ordena a sua vigília dia e de noite, atribuindo-lhe uma
perigosidade preocupante para o regime, pois, Mário Sacramento, ao mesmo tempo em
que se assume intelectual da mais fina água, embrenha-se numa tenaz acção politica,de uma maneira entusiasta, pedagógica,
incitadora e aglutinadora, que preocupava o açulado e empertigado bufo .
Isso não impedirá M.S. de ser o obreiro que torna possível, em 1957, o Iº Congresso Republicano, de que foi o Secretário Geral.
Em 1959 publica «Ensaios de
Domingo» e inicia com Óscar Lopes -intelectual
de quem ideologicamente se manterá muito perto – uma colaboração literária no
jornal «O Comércio do Porto».
Em 1961,como bolseiro do Estado Francês, vai para Paris.No Hospital de
St. Antoine tira a especialidade de gastro-enterologia, apesar de gravemente
doente.( pois que durante a estadia–por deficiência alimentar e ou excesso de
labor - contrai a tuberculose. Por ousada ironia, uma das doenças que, com
mestria, soube combater nos seus primeiros anos de prática clínica).
Regressa em 1962, para voltar a ser
preso, ainda nesse ano .
Em 1966, assume-se crítico literário, colaborando no caderno de
Literatura do «Diário de Lisboa» .E
também, na revista «Seara Nova». Nesta
colaboração destaca-se o debate sobre a procura de uma «Estética Neo Realista»,e
a inventariação dos autores nacionais que a perseguem; era importante para
Mário Sacramento, encontrar nas diversas propostas artísticas –poesia ,teatro ,novela,
romance, ou até na literatura juvenil (e ou feminina),formas de expressão da arte – um retrato
das preocupações sociais, um conflituar com a realidade, um assumir objectivo
de uma vivência “ideo-sensivel” na posição social dos autores na neo-revolução (que teria de ser inevitável).
Será em 1967 que publicará «Fernando Namora ‑ Obra e o Homem» logo
seguido de «Há uma Estética de Ironia?»,
em 1968.
Perscrutando no percurso do
escritor Namora em via sacra pelo mundo
rural, no exercício da profissão de médico, Mário Sacramento vai explicar a evolução
criadora de Namora nas deambulações sociais do autor até chegar ao estádio de autor neo-realista .
Como crítico - e porque a crítica ao contrário da história
é do que é,e não do que foi – M.S
tem de se integrar com o tempo e de se assumir
com o momento histórico em que vive. E fê-lo em todas as vertentes e sentidos.
Vivendo-os como se lhe impunha. Mais do que escrevê-los, como desejaria. Mário
Sacramento foi isso mesmo: um autor do neo-realismo, fiel a um humanismo concreto em que
dilacerou uma vida.
O Concilio Vaticano II com as suas conclusões e indicações que pareciam definir uma evolução no
pensamento da Igreja, mais aberto e mais preocupado, mais suportável para o
ateu assumido, levam Mário Sacramento a procurar nas páginas do jornal «O
Litoral»,interlocutores para com eles estabelecer um diálogo com o «credo»,
numa procura de pontos e empenhamento
comuns ,apesar de tudo; artigos que, mais tarde –já depois da sua morte, em 1971 -, seriam reunidos em volume publicado sob o titulo «Frátia –Diálogo com os Católicos ».
Morre em 1969, nas vésperas do 2º Congresso
Republicano de que, uma vez mais, foi o principal obreiro – o fogo que ateou a labareda no requerimento,
ainda por ele redigido - e que se
viria a realizar sob o patrocínio do seu espírito, permanentemente presente do primeiro ao ultimo instante, no «Teatro
Aveirense»,onde teve lugar .
Salazar, é certo, estava moribundo. Politicamente morto. Mário Sacramento já não veria a queda do regime para a qual tinha sido um dos mais férreos contribuintes, um dos mais entusiastas e dos mais lúcidos combatentes. Infatigável e persistentemente activista,ousou lutar contra tudo quanto de retrógrado representava e continha, o caduco regime salazarista.
Mário Sacramento adivinhou na sua
«Carta Testamento», redigida em Abril de 1957,
onde lúcida e certeiramente faz uma premonição rigorosa do tempo sobrante que,
certamente, lhe iria faltar para
ver a queda do regime salazarento:
“Não viu o que quis;mas quis o que viu “ disse-nos nessa missiva em
que ,dum modo terno mas incisivo, nos lança um aviso:
“Façam um Mundo melhor ! Não me façam voltar cá”
Senos da Fonseca
NB – Estas notas foram extraídas
da Palestra realizada em 1970 no
Illiabum Clube,na evocação de Mário Sacramento.
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