sexta-feira, janeiro 29, 2021

 


Ontem A Etelvina no seu POST levanta o caso da "Barca da Passagem".Há uns bom 15 anos,por duas vezes ,em situações diferentes,abordei este "cenário de relevo" na história da Costa-Nova.Recupero o primeiro. 
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A BARCA DA “PASSAGE”
 


A barca da “passage” era o único meio de acesso ao areal na beira-mar da nova costa, desde os primeiros tempos em que, as Artes, vindas da costa velha, em S. Jacinto, se vieram   postar nas primeiras décadas de oitocentos, atraindo, diariamente, os muitos pescadores empregues nas mesmas, mais o mulherio que ajudava no desembaraço e e escolha do peixe.Bem como os mercantéis e os muitos almocreves que, pela noitinha, burricos carregados, se embrenhavam por esses caminhos perdidos da serra, ladeando vales e barrancos para, ao outro dia, logo de manhã, não faltarem com a venda da prateada sardinha, lá para as beiras interiores e ou, bairrada. 

No início, ainda as companhas usaram enviadas para facilitar o transporte ao seu pessoal. Mas a confusão gerada, cedo indicou que o bom sentido era o da privatização (?!) daquele meio de transporte, deixando-o nas mãos de barqueiro que, dono da sua própria embarcação, estava sempre disponível para fazer várias vezes ao dia - e até de noite - o transporte, de pessoal e material. 

A largada da barca, sem hora marcada, rigorosa, era anunciada pelo toque singular, roufenho, de um búzio que se ouvia - nesses tempos isentos de outros arruídos incómodos - a um bom quarto de légua de distância. 

Antes de largar dos moirões o arrais dava uma olhadela lá para o fundo do caminho a ver se enxergava alguma alma atrasada. Quando tal sucedia, se a distância a percorrer não demorasse mais do que escassos cinco minutos - pelo cálculo do arrais, entendido nesse assunto! - adiava-se a partida. Certo é que tal adiamento gerava, de imediato, uma zanguizarra dos diabos, com os passantes já embarcados, escalabrados pela demora:  

- Eh «ti Norte». Astão vossomecê quer-nos fazer perder a maré?!... estipôr... Por causa duma marafona atrasada, que esteve, foi, entre pernas mais tempo 

còdebido , e agora nos faz esperar ?! Largue mas é... homem dum raio! 

- Calende-vos ou ides a nado, que ides mais depressa e mais fresquinhas - respondia o arrais em voz rouquenha de labrego, moído de tanta algarviada. 

Chegada a Rosinha Escudeira, a conversa logo  mudava de tom e forma.Era imediatamente outra. Aquela gente era muito sabida, e então no fingimento, umas doitoras: 

- Ah Rosinha, q’uim fim q’ue sempre achegastas filha ! Se não fôssamos nós, o raio do «Labareda» não esp’rava por ti. Raios do home, c’anda sempre com o fogo entre pernas. E não há quem lho acalme. 

- Credo!...fosse eu nova, e cachopas (!), o pavio do Tóino derreava - faiscava a Alzira «Saltoa», mulheraça já cansada dos anos, lá dos Sete Carris, só para adiantar conversa para a galhofa. 

O «Labareda» ria-se com tal desfaçatez. Ele sabia que era tudo gente boa. Aquilo era tudo facécias. Pois numa astrapalhação eram bem capazes de despir a roupa, para com ela agasalharem uma delas. Gente de acudir, solidária e amiga, mas gente simultaneamente brincalhona, ladina, tarrinca, naqueles momentos de descontracção em grupo. 

O ajudante à proa enterrava a vara no ombro para aproar a barca a oeste. O arrais deixava-a descair um pouco, para logo dar ordem de meter a pá da borda. Leme a meio, caçava a escota retesando a vela com a dupla laçada na draga, fixando a mareação numa proa apontada ao trapiche da outra banda,alli ao lado do salão do Arrais ,que se o noroeste ajudava ,poderia ser alcançado de um bordo.

Já por diversas vezes, o «Labareda» chamara a atenção, ao regedor, de que a mota devia ser deslocada para sul, aí uns cem passos, pois, se assim fosse, num só bordo, fazia-se a travessia. Se o vento era frescote - e quase sempre o era, bufando lá do noroeste - cinco a dez minutos eram mais que suficientes para laçar moirão na Costa Nova. 

Durante a travessia era uma algazarra ; a miudagem corria a sentar-se no bico da proa, sonhando com o dia em que se sentasse ao leme, a retesar a escota, e rumar, ponteiro, ao outro lado. 

Os almocreves, que tinham deixado os burricos a descansarem na estrebaria da «ti Norta», a recomporem-se da jorna com palha fresca - pois que para cá tinham vindo carregados de azeite lá das serranias, o melhor ! - deitavam contas à vida na tentativa de ler o tempo. Imaginando como seria a noite,  serra acima ladeando a ravina, 

atravessando o riacho, metendo à desbanda por um atalho conhecido... toque... toque..., iam por entre pinheirais a zangalhar, assanhados com a ventania da noite, a facilitar que por ali surgisse algum marmanjo da rapina. Percorrendo ligeiros os caminhos lá para o interior, para que as gentes lá de longe, pudessem ter acesso ao peixe da borda do mar ainda com olho bem vivo.. Por isso, e porque amanhecido o sol era tempo de entregar o carrego lá para as bandas de Viseu, havia que dar ao pé. Burro e pimpão almocreve. 

Por vezes aparecia para atravessar, na barca, o João «Ruço», exímio tocador da concertina que fazia as delícias dos embarcadiços ; encostado à barra da escota, atirava- se ao «vira que vira», esbofando a sanfona, enquanto com dedos ágeis percorria os botões das notas. E logo duas pescadeiras saltavam lestas para o centro, saltitando e rodopiando, pés descalços «sapateando» nos paneiros, enquanto a voz fina, mas timbrada e maviosa da Joaninha «Cantadeira», se fazia ouvir : 

                   Lá bem na viração 

                  Meninas bamos ao bira, 

                   Que lá no bira ‘tá tudo. 

                   Ó real das canas !  

                  Que lá no bira ‘tá tudo. 

                   E a água do Bota Fora

                   É  cum’ò binho maduro 


Enquanto isso, as cachopas, num falazar grazina, aproveitando o ripanço daqueles breves momentos, lá iam em conversa onzeneira : 

- Astão Rosinha? foste a última a vir lá da vila, deves saber novidades. Conta- nos lá, chopa !... 

- Novas, só que entrou na barra o iate do Ti Cachina, vindo lá da estranja. A Ana «Fradoca» foi esperar o homem, o Armando Ramízio. Logo à noite, lá p’ró Arnal vai ser uma zanguizarra dos diabos. Sete meses de fastio, gentes !..., nem as pulgas  

incomodam. Chegada a hora, vai ser tempo de medrar menino. Idas ver .... 

- Olha c’os tempos não estão nada p’ra isso, rapariga. Só vejo fidalgotas a cheirar o frescal, e a desdenharem. Que não presta: - dizem ! O que essas delambidas querem é «dado». Mas enganam-se. Que cá a Zefa, dado, só ao meu home. E num é sempre ! C’às vezes lá lhe caço umas felpas, a troco do festim. Que não é para o gabar - q’inté é p’rigoso com tanta serigaita a q’rer pastar - mas cá o meu Zé é danado p’rá brincadeira. 

- Ah!... Zefa, c’alte ... Tu sabes q’ué bom, porque nunca comeste doutra malga... 

malga. 

 - Amorna-te aí... raios ! Tem relego essas toleimas. língua e não nos desinquetes...

Outra figura que era habitual, de tempos a tempos aparecer a tomar o seu lugar 

na passagem, era o «amolador». Carrinho de roda com os apetrechos para colocar a 

gataria nos barros esfanicados, ou esmeril aconchegado, pronto para afiar os navalhões da trupe das campanhas, ferramental indispensável ao exercício diário daquelas gentes, precisando do gume bem afiado, capaz de cortar papel em tiras de enfeitar. O ti Francisco da «Gaita», assim era chamado por anunciar a sua presença, de porta em porta, por uma gaita de beiços, com sonoridade distinta e singular. Aviso para se ajuntar todo o material a necessitar de reparo, à porta dos palheiros, onde exercia o seu mister. 

- Oh «ti Gaita» - dizia maldosa a Berta «Lamaroa» - vossemecê não é capaz de me pôr três gatos numa racha, p’ra a aviar como nova ? 

 - Asponho , pois então. Cuida-te, ósdepois  porque os gatos miam de noite, se incomodados, e gostam de tripa miúda - respondia sisudo o «Gaita», homem de 

pouca conversa fiada. Que fiado só os muitos calotes por trabalhos feitos àquela gente, a aguardar paga, à espera de melhor maré. 

Tempo de chegar. O arrais media a distância, e, chegado o momento, orçava, 

apontando a proa ao vento. Folgada a escota, recolhida a pá da borda para cima do 

traste, o vento e a corrente levavam a borda da embarcação a beijar, suave, o trapiche a que acostava, para descarrego das gentes. 

Era um desaforo. Uma restolhada dos demónios. Todas queriam ser a primeira a colocar o pé descalço no tabuado da mota. Lestas para chegarem à escolha e venda do peixe. Se o não havia fresco, porque o mar não tinha permitido lanço ao meia-lua, carregava-se do escorchado que, à falta de melhor, também tinha clientela,numa falta.


À volta, no regresso, ao fim da jorna, era um lamuriar  de arrenega. 


- Danado do mar ! Aquele cão anda mais «seco» que trimbaldes de porco 

capado; o peixe branco está pela hora de morte, não se lha pode achegar. Mais caro 

c’ós pozinhos de Maio milagreiros, da botica do «ti Cunha» - queixava-se a Ana 

«Espadela» maneando a cabeça num esgar de nojo, ascupindo para a borda.. 

Mal, acomparado,  que comparações só se podem fazer com os santos - era assim


- Maria, para onde vais tão pimpona ?!

- Para a «festa!!!»

À vinda :

- Maria ? : - de onde vens, cachopa triste? - Da... «festa...»   


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