domingo, junho 20, 2021

 

Nota:  Para a Homenagem que a CM de Mira  fez ao Mestre «Gadelha», foi-me solicitado,  nas vésperas, um texto sobre uma possível conversa entre um «mirão» e um «murtoseiro». Foi representada por dois excelentes actores do Seixo. Aqui a reproduzo.


                                    

 

   


                                                           Ti Ricoca "Mirão"


 -  Atão vai : vossemecê(?) Ti  Agostinho «Murtoseiro»…..está aí sozinho que até prece um gelfeiro  com lepra(deus me perdoe).Prece que lhe morreram os porcos da parideira, home. Vamos lá beber um copo desta auga que aqui trago, que  veio lá da lavra de Cantanhede, p’ra onde  vendo  o moliço…


                                                       Ti Agostinho «Murtoseiro»

Abusaca -taí,  Ricoca Mirão; esculhambrado, c’a bem preciso de me chegar a entender contigo ; andas praì a fazer um raso, a estroicegar no preço do moliço, a  dares  cabo do pouco pão que ganhamos para a boca….


                                                          Ti Ricoca


 Eu ?!....eu, que vendo os meus barcos sempre bem atulhados nos quetes  inté  ás falcas…,ai eu é c’ando a estragar preços ?!!!.E vocês lá das Quintas, seus «labregos» dúm raio ,que vindes aqui descarregar o que já ninguém Vos compra…..O que fazeis (?), tinhosos da ria. Pouco falta para o dar…


                                                            Ti Agostinho


Está maloservado, muito maloservado ….nós trazemos cá os nossos fios doirados, porque a ria pró nosso lado, tem os cabelos loiros, luzídios, que nós penteamos, devagarinho, ancinho atrás de ancinho


                                                              Ti Ricoca

Olha !- mas nós aqui, no sule, temos um moliço que mais prece uma alface acabada de apanhar, fresquinha e bem regada.Com esta alface e o pilado,  os nossos campos  da Gândara hão–de brochar de verde…


                                                                 Ti Agostinho

Um bom pilado me parece  vossemecê ….Verdes já são os nossos; aquilo é cada espiga de milho a marear com a música do vento... Então e o batatal... ?!…batatas de arroba...


                                                                  Ti Ricoca

Batata…batata..ora …nem mafales, que me mijo a rir : pacóvios . A «Pinta Cristos» é que consertou o santo lá do teu Monte ,pôs-lhe uma batata na cabeça quebrada ,pintou-a…e agora que a batata  grelou na cabeça do santo, já dizem que foi milagre, e que  este anos vai haver batatas  na eira, mais que milho…..Sois mesmo labregos….


                                                                   Ti Agostinho


Ora vai-te gálico…és um pedinqueiro  mal aviado. Se nós somos labregos, sabas como  chamam a Vocês, os da borda do sule:?---pois ora toma:  “Matolas”. Tal qual. Assoa-te a este lenço que é pra não estares aí embeiçado .

                                                                      Ti Ricoca


Ná…. essa do Matola esta mal acontada.  Vocês dizem isso porque têm dor, do braço até ao corno ,dos nossos moliceiros. Tão  matreiros que mais precem fuselos. E então a oguentar uma zanagaia? Não há melhor.Não é como os Vossos chançudos, com gajas de cu ao léu, brochadas, com a passarinha a dar a dar….

                                                                          Ti Agostinho


Não me diga Vossemecê, que quando passa por um barco lá  do norte, não olha, a inquisilar  com as paxonas que  pintamos na ré ? Eu já o vi. Velho tolo que já nem se astreve a meter o mastro  na cocia... a rir-se…. a mijar-se a bom rir, com aquela  da Ti Maria a queixar-se co galo lhe dava cabo do pito…


                                                                            Ti Ricoca


Tendes razão….essa é das melhores. Vocês andam sempre na vida airada. E levam as cachopas às festas, enloilam-nas. Depois olha: murtoseiros parecem uma praga…. filho de murtoseiro é raça que devia desaparecer: só turvam águas…

                                                                              Ti Agostinho


Ei….ei….Ricoca dum raio !... estás sempre a inquisilar c’oa gente... estupor, inxerido dum raio. C’a mal te fizeram os murtoseiros? Pra vocês quem não for de Mira são uns paleques…A vocês ,quintè vos chamam os marronteiros .Xiça ca nome!!!! Marronteiros…óguentadores das marradas ? Isso é uma gadagem, ao de labaró…..Olha eu cria é que me disseses, porque é que o Vosso Moliceiro nasceu encolhido, sem a chança  do nosso…

                                                                                 Ti Ricoca

Ah!!! Tu não sabes a história?!.Atão bebe mais um copo q’eu conto-ta. O mestre Clemente, afamado construtor Mirão ,mandou um ajudante espiolhar, a Avanca, os barcos que o Ti Banca,- um dos maiores mestres de sempre! - fazia. O Rapaz tomou nota. Olhou, mediu na passada, e veio  a correr contar ao Mestre CLemente: 

“eh! Mestre o barco é assim,como se andasse resvès com a auga. Parece nem bordo ter. A ré é de cu fechado, cagarete para o arrais .A proa é que é muito estranha. Olhe vossemecê :  prece….intè prece….um  peito de uma galinha tísica, a olhar para trás”…..


E o mestre Clemente logo serrou, aprontou tábuas, pregou, e às tantas virou-se para o ajudante:  rapaz e quantos passos de cumprido?O rapaz que era muito alto, de longo pernil,disse: onze. O Clemente, um Mirão baixinho, andarilho de pernas maneadas, contou onze das dele.

E aí tens: o que vocês chamam “Matola”, não tem o bico de pato esganado do norte, mas um peitinho de franga… bem engraçadinho. E mede os onze passos do Ti Clemente, e não os onze do Zé «Calçudo», ajudante.Mas é lindo; maneirinho, bom nas popas e de leme. Feito com arte.Não como a vossa “labrega”, que parece feita à navalha. Parece uma casa. Só lhe falta a cumua…..

                                                            Ti Agostinho

Aí é que vossemecê se engana Ricoca,  cora mastro. Tem cumua livre: é só arrear as fraldas na borda, e oh!!!!   que delícia….prós peixinhos.


Vamos : vai mais um copito prá deita…..

E sério. Levanta o copo de três: 

VIVÒ’s Mirões e os Murtoseiros, gente da nossa,  esgravatores da ria, andarilhos do areal, gente como não há outra em Portugal..

                                                               Ti Ricoca


VIVÒ…….

Senos da Fonseca (2016)







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