quinta-feira, maio 09, 2013



                                              
                                                                           

 
Postal da «Casa do Bico»- nº 11
Maio chega e com ele a época do tresmalho. Abro a porta, respiro o ar da alva, fresco e poderoso, e assisto ao despertar da ria. Atiro os olhos para a água enquanto o corpo não ganha coragem para os acompanhar. Os meus olhos sempre foram uns felizardos: têm sempre tudo o que por vezes nego ao corpo.
Na paisagem que desde logo se encharca de sol, reparo (ou imagino) como deveria ser bonito, outrora, o avistamento do prado da Joana «Maluca». Sem nada que colhesse a linha do horizonte, nessa atapetada planura onde teimosamente despertavam umas vergônteas enfezadas que demoraram gerações até se transformarem nos verdejantes milheirais lagunares, o olhar só esmorecia nas faldas serranas do Caramulo. Que hoje ainda daqui avisto por cima do casario da Srª da Maluca. A maresia invade-me os poros limpando-me do cheiro «a raposinhos» de uma noite entre vale de lençóis, curando-me dos achaques das viradelas (que travessuras já as não há!...) nocturnas.
Manhãzinha cedo e já lá vai uma azáfama no estender dos tresmalhos do «choco» no lençol azul das águas lagunares. Mesmo aqui, à minha porta, a um braço de distância. Colho a máquina de imagens paradas, e disparo. Maré enche, e é tempo de metodicamente desenrolar a meada e estendê-la numa lonjura que ultrapassa os 300 m. Atravessada a bateira, esta vai descaindo; e o arrais, agora que já usa o motor e é o único tripulante a bordo, deixa correr, entre a concha da mão, o cabo e bóias superiores. E o cabo e lastros inferiores, que depois na água, com a ajuda da corrente ficarão na vertical, fundeados pelos ferros e poitas intermédios, levantados pelas bóias sinalizadoras. Aboiadas a cada pano mergulhado. O «choco» que nestes meses invade a laguna (num prodígio de vida que as mutações lagunares não matou, e renova a cada época) virá paulatinamente em procura do «manjar dos céus» que sabe posto na mesa, com pompa e circunstância, nesta borda poente lagunar, onde desovará. E eis que, de repente, o pobre que se julgava convidado «vip», se enfia pela malha larga das albitanas; numa aflição com o traiçoeiro convite, procura recuar, libertar-se, e fugir. Quanto mais gesticula com os «braços» mais se enreda na malha miúda entralhada nos cabos superiores e inferiores.
Estendida a «arte» – aqui a palavra ajusta-se perfeitamente ao ofício – o arrais mergulha ferro e fundeia. Momento para descanso a  enredar-se nos pensamentos da vida. Fumando cigarro após cigarro, ficava  à espera que a maré vire para recolher o redame.    
 
          
E vai pensando no estupor da vida...
 
Na véspera tinha ouvido um pissofoque, na TV, a pregar aos «peixes». E o Zé «Lavanco» –  assim se chama este «camarada» da manhã – começa a pensar nestes «pissalhos» que lhe atormentam as noites perdidas em frente da sua prosápia, com que  atiram a «tinta de choco» aos olhos do zé povinho, para lhes encaldeirar a vista. E o que é certo é que os peixes – pensa o «Lavanco –, andam muito eslabaçados. Esfraldilhados de todo, parecendo como o choco deixarem-se enrodilhar no redame do palavreado chinca.
 Estes codres só olham para cima, e nunca – mas é que nunca, porra! – os fraldocos olham para baixo. ! – pensa o «Lavanco»: este cardume não é como o de peixes. Que olham para cima para baixo, e p’ró lado. Isto é cardume  de «chaputas»...
Nesta cambada há mesmo uma peixaria, matuta o «Lavanco» : os ditos «roncadores» que só têm prosápia, arrogância e chança: pissalhos!!!!. Mas também há dos «pegadores».É o que há mais. Parasitas, labajões; cambada de inchuns. E os «voadores» que só têm ambição no sentar do cu … Mas há também –oh! se há! – muitos «polvos»: traiçoeiros … badalhocos. Monte de boseiros.
E com isto a maré vira. Um dia a maré também há-de virar…. sacanas!…. foi pensando  o «Lavanco», alevantando-se , cuspindo  nas mãos, disposto a ir à rede.
E de volta, trazido com a maré, bateira atravessada à corrente, deixa-se descair a norte, enquanto mete os panos dentro. Emalhados lá vêm os «chocos» que ainda darão um trabalhão do «caraças» a libertar para a caixa.De interior enegrecido pela tinta que as presas vão largando no estertor final…  ( como o povo, atirado para o caixote… pronto para ser vendido a «merkel & companhia»).
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E estava eu pronto a recolher a penates, como um xana, e eis que chega a Zefa. Hoje, sem companhia da amiga, é quando a língua mais se lhe destrava….
-Ah rico!!!! Vossemecê está esgalfo dos olhos.
-Pois Ti Zefa.Aqui a ver o «tresmalhar» dos «chocos»…
-Olhe que o tresmalho é como mulher na cama, diz a Zefa, maldosa no olhar ainda malandreco. E continua : «alinha-se» com a enchente (e só nesta), encosta-se e dá as albitanas a charir. O home augadinho, marra. A gente, auguenta e faz que foge.O calhandras bardaleiro, atiça-se, e depois é um badanal. A vagalhoça invade-nos a cama, espincha que espincha, e só desemalhamos quando estamos derreados. Ás vezes  arrecuava. E eu logo lhe dizia:
-Ah! Nem adregues….livra-te ! Atão não dizas tu que peixe que passa a borda…já não sai. Vá maneia-te, antes c’a maré vire.
 
- Ah! Ti Zefa que você deve ter sido chaleira de bom lume, atirei eu….
-Olhe amigo: se não há bom lume assoprasse-lhe. A carne não é como o peixe: é pecadora. E só um santo de pau carunchoso é capaz de resistir ósdepois dos louvados (lambiscos está Vossemecê a entender?)
-Ora...ora... se entendo. O pecado foi a melhor coisa que o homem inventou depois que Deus (um bom sarrazina), dele se fez desentendido.
SF (Maio 2013)

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