Postal da
«Casa do Bico»- nº 11
Maio chega e com ele a época do tresmalho. Abro a porta, respiro o ar da alva, fresco e poderoso, e
assisto ao despertar da ria. Atiro os olhos para a água enquanto o corpo não
ganha coragem para os acompanhar. Os meus olhos sempre foram uns felizardos: têm
sempre tudo o que por vezes nego ao corpo.
Na paisagem que desde logo se encharca de sol, reparo (ou
imagino) como deveria ser bonito, outrora, o avistamento do prado da Joana «Maluca».
Sem nada que colhesse a linha do horizonte, nessa atapetada planura onde
teimosamente despertavam umas vergônteas enfezadas que demoraram gerações até
se transformarem nos verdejantes milheirais lagunares, o olhar só esmorecia nas
faldas serranas do Caramulo. Que hoje ainda daqui avisto por cima do casario da
Srª da Maluca. A maresia invade-me os poros limpando-me do cheiro «a
raposinhos» de uma noite entre vale de lençóis, curando-me dos achaques das
viradelas (que travessuras já as não
há!...) nocturnas.
Manhãzinha cedo e já lá vai uma azáfama no estender dos tresmalhos do «choco» no lençol azul das
águas lagunares. Mesmo aqui, à minha porta, a um braço de distância. Colho a máquina
de imagens paradas, e disparo. Maré enche, e é tempo de metodicamente
desenrolar a meada e estendê-la numa lonjura que ultrapassa os 300 m. Atravessada
a bateira, esta vai descaindo; e o arrais, agora que já usa o motor e é o
único tripulante a bordo, deixa correr, entre a concha da mão, o cabo e bóias
superiores. E o cabo e lastros inferiores, que depois na água, com a ajuda da
corrente ficarão na vertical, fundeados pelos ferros e poitas intermédios,
levantados pelas bóias sinalizadoras. Aboiadas a cada pano mergulhado. O «choco» que nestes meses invade a laguna (num
prodígio de vida que as mutações lagunares não matou, e renova a cada época)
virá paulatinamente em procura do «manjar dos céus» que sabe posto na mesa, com
pompa e circunstância, nesta borda poente lagunar, onde desovará. E eis que, de
repente, o pobre que se julgava convidado «vip», se enfia pela malha larga das albitanas; numa aflição com o traiçoeiro
convite, procura recuar, libertar-se, e fugir. Quanto mais gesticula com os
«braços» mais se enreda na malha miúda entralhada nos cabos superiores e inferiores.
Estendida a «arte» – aqui a palavra ajusta-se perfeitamente
ao ofício – o arrais mergulha ferro e fundeia. Momento para descanso a enredar-se nos pensamentos da vida. Fumando
cigarro após cigarro, ficava à espera que a maré vire para recolher o redame.
E vai pensando no estupor da vida...
Na véspera tinha ouvido um pissofoque,
na TV, a pregar aos «peixes». E o Zé «Lavanco» – assim se chama este «camarada» da manhã – começa
a pensar nestes «pissalhos» que lhe atormentam as noites perdidas em frente da
sua prosápia, com que atiram a «tinta de choco» aos olhos do zé povinho, para lhes encaldeirar a vista. E o que é certo é
que os peixes – pensa o «Lavanco –, andam muito eslabaçados. Esfraldilhados de todo, parecendo como o choco
deixarem-se enrodilhar no redame do
palavreado chinca.
Estes codres só olham para cima, e nunca – mas
é que nunca, porra! – os fraldocos olham
para baixo. Ná! – pensa o «Lavanco»: este
cardume não é como o de peixes. Que olham para cima para baixo, e p’ró lado. Isto é cardume de «chaputas»...
Nesta cambada há mesmo uma peixaria, matuta o «Lavanco» : os
ditos «roncadores» que só têm prosápia, arrogância
e chança: – pissalhos!!!!. Mas também há dos «pegadores».É o que há mais. Parasitas, labajões; cambada de inchuns. E os «voadores» que só têm ambição no sentar do cu … Mas há também –oh!
se há! – muitos «polvos»: traiçoeiros … badalhocos. Monte
de boseiros.
E com isto a maré vira.
Um dia a maré também há-de virar…. sacanas!…. foi pensando o «Lavanco», alevantando-se , cuspindo nas mãos, disposto a ir à rede.
E de volta, trazido com a maré, bateira atravessada à corrente, deixa-se descair a norte, enquanto
mete os panos dentro. Emalhados lá
vêm os «chocos» que ainda darão um trabalhão do «caraças» a libertar para a
caixa.De interior enegrecido pela tinta que
as presas vão largando no estertor final…
( como o povo, atirado para o caixote…
pronto para ser vendido a «merkel & companhia»).
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E estava eu
pronto a recolher a penates, como um xana, e eis que chega a Zefa. Hoje, sem companhia
da amiga, é quando a língua mais se lhe destrava….
-Ah rico!!!!
Vossemecê está esgalfo dos olhos.
-Pois Ti
Zefa.Aqui a ver o «tresmalhar» dos «chocos»…
-Olhe que o tresmalho
é como mulher na cama, diz a Zefa, maldosa no olhar ainda malandreco. E continua : «alinha-se»
com a enchente (e só nesta), encosta-se
e dá as albitanas a charir. O home augadinho, marra. A gente, auguenta e faz que foge.O calhandras bardaleiro, atiça-se, e
depois é um badanal. A vagalhoça invade-nos a cama, espincha que espincha, e só desemalhamos
quando estamos derreados. Ás
vezes arrecuava. E eu logo lhe dizia:
-Ah! Nem adregues….livra-te ! Atão não dizas tu que peixe que passa a borda…já não sai. Vá maneia-te, antes
c’a maré vire.
- Ah! Ti Zefa que você deve ter sido chaleira de bom
lume, atirei eu….
-Olhe amigo: se não há bom lume assoprasse-lhe. A carne não é
como o peixe: é pecadora. E só um santo de pau carunchoso é capaz de resistir ósdepois dos louvados (lambiscos está Vossemecê a entender?)
-Ora...ora... se entendo. O pecado foi a
melhor coisa que o homem inventou depois que Deus (um bom sarrazina), dele se fez desentendido.
SF (Maio
2013)
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