sábado, fevereiro 06, 2021

 


(Escreveram-se  belas páginas a descrever o tumulto grandioso da  arte xávega. Esquecendo figurantes de primeira que encheram de espanto poetas e simples mirones. Hoje resolvi prestar jus a quem, ficando na praia, permitiu aos outros ir ver os sóis fugidios).


LAVRAR O MAR


Olho aqueles corpulentos

Majestosos e hercúleos 

Bois da velha companha

Que enlaçados ao calão da rede

A vão alando até deixar ofegante na praia

A parir do ventre estripado

O prateado peixe roubado ao mar.


Animais vindos do lado de lá

Do perfume adocicado da resina

dos pinheirais 

Trouxeram-nos à borda a lavrar o mar.

Vão nas manhãs de nevoeiro  em parelhas 

Cabeça baixa, olhar torvo, parecem, citados pelo mar,

A investir por ele vaga adentro, encharcados.


Afagados pela maresia

Nos dias de sol espraiado

Vejo-os resfolgarem, nariz no ar

À procura de uma sombra no areal caiada,

Que aqui não existe. Parecem velhos...

Os bois nasceram já velhos

Na cor pardacenta do seu costado.


Velhos no sossego da sua existência

Vão ruminando no alento da noite, a sua ausência,

Para no amanhã prateado voltar ao fadário.

Sob sol escaldante ou chuva de tarde desmaiada,

Fustigados pelo vento gélido da madrugada

Seguem de olhos turvos, despidos de um qualquer sudário,

Parecem amarrados a uma existência amargurada.


Sigo-os duna abaixo

Ao encontro do mar ousado, quebrado

Mar amargo, mar azul de tão salgado

A açoitar o xávega que alevantado teima ir,

Lá longe onde moram as sereias,

Largar a rede para tirar do ventre do mar

A prata que a terra não pode parir.



E lá vão, dobrados, encabrestados

Vão ao tropeço na areia lassa da duna.

Fustigados pelo aguilhão do abegão

Levam à sua frente, aos tropeções, os mirones

Que vindos de madrugada, de chapéu e botifarras,

Calça arregaçada, desertam em louca debandada

Em tropel, fugindo na frente do estoiro da manada. 

Na praia já se alinham os xalavares.

Os bois doridos pela jornada

Parecem perdidos no areal 

Semeado de escasso espezinhado, prateado.

Hoje não há mais ir e voltar


Hoje mar... podes ir  acolher o sol dourado

E com ele ir, lá longe, nos longes teus, namorar.




[para que as gaivotas voando sobre os vossos beijos me venham de madrugada contar  a estrela  do pássaro e  a  estrela  do  grito teu...MAR!]


SF




3 comentários:

Humberto Vieira disse...

Muito obrigado.

Fernando Martins disse...

Haverá por aí, nos tempos que correm, quem cante o mar tão bem como o meu amigo? Um abraço.

Maria Cecília Louraço disse...

Boa noite
Chegou-me esta página através da Associação Nazaré Marés de Maio. Gostei muito. O poema aplica-se muito bem à Nazaré, parente de Ilhavo...um dos sobrenomes da minha avó - Queiró_ terá vindo dessa zona.
Sem querer comparar, por coincidência, estou a "suar" para conseguir falar em verso, para uma cantiga , sobre a Nazaré e a sua História.
Não pedi licença, mas publiquei o seu texto, devidamente identificado, na página do FB de um grupo chamado "Da Pederneira vê-se o promontório". Pederneira, é a Nazaré antes de ter mudado de nome em 1912, donde eram algumas das juntas de bois que puxavam os barcos na praia.

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