quarta-feira, março 27, 2024


 


FREDERICO DE MOURA


De novo veio à baila Frederico de Moura, a solicitação de mestranda para recolha de informações. Boa altura para o trazer à colação (e insistir) para pôr fim a uma ingratidão que, Ílhavo (poder político, partido e comunidade em geral) comete, para com o cidadão ilustre, de actividade multímoda: médico de reconhecida competência, intelectual de  mérito deixando rasto  na excelente  prosa de cativante estilo que nos legou, político vertebrado e lucido, fiel ao povo que o elegeu e às ideias que nele nunca transmudaram ,ou sequer arrefeceram na convicção.

Apesar de ser chamada a atenção a quem tem poder para  corrigir a falta chocante para com uma personalidade a quem Ílhavo (tão pobre de valores culturais) muito deve, figura das mais salientes no historial ilhavense, não se compreende  razão para tal esquecimento. Seja  dos  edis que têm o poder(e responsabilidade) de corrigir o lapso , seja na ausência silenciosa  do partido  (ingrato) que, serviu e ao qual emprestou todo o empenho e brilhantismo com que defendeu   a liberdade e o direito de, livremente , exprimir o pensamento. 

Boa oportunidade, pois, para (com insistência), por boas razões, relembrar Frederico de Moura aos alzheimados e a sua (cívica) obrigação para com ele. Ainda que sem grandes esperanças de conseguir levá-los a pensar -e muito menos a proceder – tal a renuncia a tal esforço, ou postura. Ou pura incapacidade. Acto a que são profundamente relutantes. Creio que ainda é tempo de corrigir a amnésia castradora. Ou, uma vez mais, sentir a minha insistência enviada para o cesto dos papéis, pois, como  escreveu Frederico de Moura, a luz clara da razão não logra força para penetrar em certos desvãos defendidos ,aliás, por paredes grossas e duras como lajes de granito, onde pululam tortulheiras polimorfas de estupidez cultivadas pelas sombras nocturnas da ignorância mais espessa.

Adiante....

Difícil desde logo catalogar Frederico de Moura: – um intelectual que, não apenas acumulou saberes(muitos!), mas também os soube transmitir de várias e singulares formas. Escrevia de um modo soberano, isento de frioleiras inúteis, mas de um modo e jeito vibrátil (musculado) correspondendo  aos sentimentos, às emoções e às motivações do escritor ,em  “pinceladas” rápidas, mas claras, que  ia alinhando  dando  forma ao discurso, exacto e esmerado. Bonito....Um conversador que cativava e prendia, em que   o gesto exuberante sublinhava e reforçava a palavra, o ditado. Sempre entrecortado por uma chispa por vezes irónica, ou até maldosa, numa atitude critica implacável, mordaz e chistosa q.b. Um médico ao qual colegas recorriam assiduamente para dele colher conselho abalizado quando as maleitas em observação se complicavam. 

O que nos despertava a atenção em Frederico de Moura, era presenciar o humanista sempre insaciado, sempre em procura de saberes vários, ecléticos, um ser caloroso (em demasia), ora ácido ora sentimental, mas sempre amigo disponível, solidário. Por vezes colérico q,b., mas depressa capaz de voltar à justa postura, fruto de dialética formal  intima.  Mas sempre exuberante de riqueza afectiva. Quando agreste, era-o apenas como modo de pôr cobro a embófias empertigadas ou para invadir peanhas sombrias de auréolas sem brilho.

Detenho-me a relembrar a”pintura escrita da paisagem lagunar” saída da sua pena. Prosa elaborada em jeito pontilhado, iluminura soberanamente expressiva ao abordar a humanização da toalha líquida. Assume Frederico de Moura que. debruçar-nos sobre a paisagem (laguna) é o mesmo que fazer a leitura da biografia  do homem que, subtraída a matéria dos elementos, é o seu autor, o seu demiurgo Não há a meu ver, nada  escrito sobre a matéria (incluindo  abordagens de autores consagrados), que se compare  ao simples   visual sincrético  que (...)permite captar o macio cromática  da laguna (...) encharcando os olhos até ao limiar do perfil arroxeado dos montes do horizonte(...) onde a humanização da paisagem é epidérmica(...)precária e provisória.

Em  “Ressonâncias” desfilam biografias de notáveis romancistas  de relevância nacional ( Camilo, Torga, Aquilino, Mendes Leite ,Nemésio e outros,)a que se  juntam notáveis e históricas figuras  políticas ou cultores das artes, que ,Frederico de Moura puxa à cena, para  esculpir de um modo particularmente expressivo, na forma e nas palavras, as sendas  que  levaram a plêiade ,ora à dádiva de profusas ,  magníficas e imortais  obras , ora ao cometimento de “feitos” que perduram como   marcos assinaláveis na história pátria. A todos, por tal dádiva, devemos preito, elegia e memória.

Seroar com Frederico de Moura era sempre motivo de enriquecimento. Ouvir falar dos seus preferidos de um modo caloroso, vivo, sugestivo, intuitivamente pedagógico, era regalo para os sentidos. Tônus fortalecedor para a mente, caldo cultural degustado com atenção e deleite.  Ouvi-lo falar de Unamuno, pedagogo, ensaísta, romancista, dramaturgo, poeta e filósofo espanhol que, se encantou com o nosso atlântico mar a bater na praia arenosa onde, de entre as brumas parecia avistar-se  D. Sebastião. Ou ouvi-lo derivar para   Ortega e Gasset. Porventura o maior filósofo espanhol do Séc. XX,  avivar-nos o seu conceito de  cultura e do  sistema de ideias das quais o tempo vive. Trazer á colação Montesquieu e o seu soberano saber jurídico. Ora divagar sobre  politicapara trazer à conversa  Lenine, Rosa Luxemburgo ou  Marx ,cavaqueando , mesmo que empolando  algumas dissidências no julgamento desse período histórico. Outras vezes derivando sobre a arte, divagando sobre  os  paradoxos da perspectiva, e ou, sobre as relações complexas que se estabelecem entre o observador  e as pessoas nas “meninas” de  Velásquez.. Discutir a múltipla admiração e até as mais desencontradas reacções provocadas pelo “as meninas”, as  interpretações matemáticas, astrológicas, morais, políticas e até outras diferentes análises sobre o estilo ou  grau de criatividade artística da tela feita pelo pinto. Autêntica filosofia da arte.  Cavaquear sobre o desespero e os gritos de horror vistos em “Guernica”, logo trazendo para a charla ,  o franquismo e o fascismo nazista  cujas sombras ,nós, os mais novos ,conhecíamos de um modo ainda superficialmente. Eram verdadeiras aulas onde muito aprendemos em áreas onde, teríamos um déficit de que não nos envergonhava perante mestre de tal envergadura.

Frederico de Moura repartiu a sua vida por diferentes comunidades. Nascido em Aveiro (que lhe concedeu medalha de mérito da cidade, de prata e de ouro), educado e vivenciado em Ílhavo, onde mais tarde foi Director do Museu Municipal, assentaria  arraiais de “João Semana” em Vagos, onde exerceu com mérito reconhecido por doentes , mas e também  por  colegas que, muitas vezes, o chamaram para observação conjunta, opinativa, em  casos problemáticos,  

Lembro-me do contar peripécias do tempo em que, tarde escaldante , fora chamado de urgência, para acudir ao Colhambras da Vagueira (que já  “cuspia sangue” ). Lá foi   montado na égua, escopeta aferrada, seguindo por  entre o matagal, guiado pelo  “labrego” recoveiro que, á sua frente, em trote miudinho mas apressado de maçarico fugidio , indicava rumos certo  a permitir arribadela  ao casebre do doente. Tugúrio mais desalentado que o paciente, porta a desfazer-se em caruncho encabeçada por chapa de zincopolvilhada de ferrugem, enquadrada numa parede escorrida de arranhõe ,onde o beiral servia de alfobre a uma profusão de ervas daninhas. Ou quando montado no jumento do Margaça, de Calvão, seguia a contar os metros percorridos pela besta atolada no chão barrento, até chegar ao cacifo exíguo onde a Maria Bimba jazia, exausta, anémica em trabalho de parto complicado.  Mangas da camisa arregaçadas vá de “puxar o feto pelo pé bom” assim “salvando a carrada” como disse a “assistente parideira”, Quitéria .

Ou a fazer o retrato da Pinta mulher que era a voz da Vila. A calcorrear durante mais de cinquenta anos a duna, de canastra à cabeça, sarcoteando a bacia num ritmo bailarino, esfalfando-se a trazer peixe  para fartar a fome dos ricos, Por um triz que não pariu os filhos andando sempre ,mesmo com a barriga à boca, a subir o seu calvário. 

(....)

Temos insistido que é mais do que tempo de Ílhavo lhe prestar condigna e assinalável homenagem.

                        – Ao jovem entusiasta que animou o despontar da comunicação escrita ilhavense, preenchendo laudas de incentivo cultural no jornal “ Beira-Mar”, de que foi dos mais activos colaboradores.. 

                              –Ao médico que sempre se mostrou disponível quando solicitado; ao humanista insatisfeito com o ser, só e apenas, um seguidor do corpus escrito por  Hipócrates, e por tal invite se foi sentar ,de novo, ainda que tarde, nos bancos da Universidade para se licenciar em Histórico-Filosóficas .

                                – Ao Deputado da Assembleia da República (III e IV legislaturas), cabeça de lista distrital (Aveiro),deixou rasto de sagaz critico do momento político,  construtor de amizades(mesmo com  adversários (?) de outras bancadas), tratando todos  com  afabilidade, lealdade mesmo quando discordantes. A política para Frederico de Moura não era uma guerra entre opositores, mas uma oportunidade para debate de ideias.

Não sei porque tarda tal dever. Certamente fruto de ignorância do perfil humano  daquele que,  como Torga  afirma, foi capaz de dirigir uma Delegacia de Saúde ou um Museu, com a mesma proficiência com que foi um  catador do passado e um excelente cronista do presente.

Ignorância de caciques opíparos que, Frederico de Moura ,um dia catalogou: 

 “há séculos que estes batráquios barrigudos lhe utilizam a inocência como degrau para a porta do Município onde pretendem assentar o posterior  na cadeira presidencial.... a exornarem o coronal com o penacho farfalhudo (....) com  o seu coaxar monocórdico a encantar o resto da fauna (....) com o acriticismo das palavras ,a ingenuidade confiada”.


Senos da Fonseca


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