terça-feira, junho 28, 2011





O lanço na Xávega
2ª Parte
Pousado e aquietado o meia-lua que fica a dormir na sua cama de areia estreme, quente e asseada, emborcada uma cervejola, eis que todos se preparam para o alar da rede.

Sem movimentos nem correrias tudo é feito com método e precisão (a mais!). A correr devagarinho.

Dois tratores vão colocar-se voltados a Sul, distanciados um do outro, cerca de trezentos metros. Ambos na parte de trás (a ré como lhe chama o arrais) têm montado um engenhoso sistema de tambores accionados pelo veio motor, dispostos segundo um triangulo isósceles de modo a diminuir a tensão sobre os cabos de alar. Numa velocidade constante o «guincho» improvisado vai metendo cabo: o «reçoeiro» a norte e a «mão da barca», a sul, distanciados cerca de duzentos/trezentos metros. De imediato dois camaradas vão colhendo para um carroço (a cada cabo) o cabo alado, enrolando – o, preparando-o para nova emposta.

Não demora muito (30 minutos, talvez) a serem avistadas as bóias (que substituem os pipos- as «calimas» brochadas de branco alvo - de antigamente) que sinalizam os «càlões». Os veraneantes, que são muitos, aproximam-se, curiosos ,da beira do mar.

Entretanto o trator lá do norte, paulatinamente, vai-se aproximando do que ala a «mão da barca», de modo a ir fechando a «bocada». Surgem os «càlões» e logo a seguir o «claro» e o «regalo»,

   

 das mangas(«tralha»), cuja cor do encascamento» ,de um vermelho salmão a deslizar sobre a areia, oferece uma excelente imagem.

   

 Logo dois camaradas metem por baixo o «estacão» de modo a evitar que a rede sofra o desgaste na areia.Quando as mangas chegam ao tambor de alar, dada a volta, deslizam como que enroladas (um chouriço).

A «bocada» sai já do mar e monta o declive da praia. Quando o saco está já todo no areal (mas não tanto que não recebe beijos da água fresca das ondas que escachoam para manter vivinha a pescaria), o arrais monta-lhe em cima, plantado em pose de gladiador sobre a presa, postada a seus pés.

Surge – lhe na mão um navalhão bem afiada. Um desconhecedor da faina ao olhar para aquela figura, rapando da naifa de umas cinco polegadas, ficará a pensar que a presa se terá revoltado. Coitados dos peixitos cuja cabeça aflora por entre as malhas, bocas escancaradas, olhos a querem saltar-lhes do corpo aprisionado, aflitos, à procura de mar que lhes fugiu.

Desta vez o saco negro pouco bole. Advinha-se a escassez do que contém. Como dizia aquele celebre capitão quando via surgir assim uma tão escoada sacada: «Olha caga no lanço». Tantas vezes o repetiu que hoje carrega com a alcunha.



Pescadores e mirones rodeiam o saco como que a avaliar o seu conteúdo. Os veraneantes vindos a banhos, olham indiferentes; os pescadores, os actores de todo aquele quadro humano, esses, de cara magoada, espelham o desalento estampado na tez tisnada pelo
Confrange olhar aquele espectáculo, simultaneamente belo pela intensidade expressiva como medonho pela dor que o atravessa. Retenho-o, pensando para comigo que o medonho é uma face do belo. E que estes minutos ficarão para sempre gravados em mim. Amanhã eles estarão de novo com a mesma alegria, com o mesmo entusiasmo, com a mesma fé, prontos a partir de novo. A vida destas gentes é uma ode ao querer, à perseverança.

Mas seja com seja, o arrais de um supetão rompe a virgindade da coada, extirpando-lhe o «porfírio»,


                          

 deixando á mostra o ventre onde saltita, estrebuchante, o peixe de um prateado (e por vezes dourado) que se aviva ao reflectir a luz intensa do sol. Miríades faiscantes refulgem daquele amontoado de vida a pedir que a devolvam ao mar. O saltitar do peixe produz um barulhento rumor que pouco a pouco se esvai.
 
Aproxima-se já o trator trazendo a reboque um carroço, que faz a vez  de «enxalavar» de outrora,de rodas largas puxados por uma parelha de cornígeros animais, e onde se alinham cabazes de plástico, amarelos, que vieram substituir os «jigos» de outrora.
                            
 
 Um moço empunha o «xalavar» (uma das poucas ferramentas que ainda subsiste) e mergulha-o no peixe, trasfegando-o para os cabazes. Estes alinham-se e todos começam a efectuar a operação da escolha: sardinha (tão pouca!) para ali, biqueirão (substancial apanha) para outro, tainha de pinta amarela (negrão), vivinha, para aquele do canto. Mas o «pilado», aquele espécime de caranguejo de um rosa marfim, que no antigamente ia para «escasso» adubar as terras, e com que nós, miúdos, enchíamos o balde de praia, para depois os coser, agora é escolha de primeira. Arrecadado do primeiro ao último. Porque é escassa a quantidade que vai direitinha para iscar o anzol dos pescadores de assento, que o pagam principescamente.
                    


Feita a escolha a venda é feita logo, ali. É tão pouca a quantidade que o turista pega em tudo. Nem sequer a disputa do pregoeiro que cantarolava os números em decrescente, e atentava aos sinais dos mercantis, gritando «Chui!», agora merece a pena. O esfalfe. Guarda-fiscal, nem Vê-lo. Ao menos a pescaria tornou-se mais democrática.

Estranha e surpreendentemente, o biqueirão, é o espécime que desaparece num instante. A sardinha, este ano, ainda não pinga no pão. E da mulher só tem a pequenez. Falta-lhe ser gordinha. Pequena e com falta de gordura, não é, ainda, de todo em todo, aquele petisco que emprenhe um home.

Duas enormes medusas gelatinosas ficam na praia. Alguém tocado de alma, as virá devolver ao mar.

Olho para as contas. E arrepio-me. Num repente ponho-me a calcular. Concluo que o apuro pouco mais terá dado do que para pagar o combustível.

Então interrogo-me: porque é que aqueles arrais, que de inverno andam nas robaleiras da Costa-Nova, onde fazem belíssimas marés de milhares de euros de retorno, saltam para a beira do mar, engolfando-se com o meia lua, a dançar com ele na vagalhoça, num destemido e por vezes desatinado desafio ao mar, tendo por paga tão escasso aviamento ?!.A empobrecer alegremente?

 
(Cont)

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