E lá voltou o tempo tristonho, de uma paz podre, belicoso, que mais do
que incomoda, envelhece (nos).
Há que reagir à maldade dos
deuses. E saltar fora do afecto modorroso dos lençóis quentinhos, e … «navegar».
A ria está quieta como um gato enrolado,
esquecido de si e do que se passa à sua volta. No nosso tempo, meses que tinham
R, eram meses de «cricalhada». Esta semana, apesar do dito R estar no mês,
agora, as autoridades vieram decretar proibição do «crico», fora de casa. Parece
que aquela alga que pinta de vermelho,
adiantou o período de proibição. Por
isso a ria está vazia, como mulher visitada pelo dito. E logo posta de lado
pelos amantes. Raio desta cambada. Bem podiam afagá-la, acarinhá-la, e
renderem-lhe visita. Ao menos de cortesia. Ingratos.
Mas hoje era dia de charla. E
muito me admirei, quando ao meu encontro, além da Zefa e da Bernarda, vinha uma
outra vistosa faininha. Logo
apresentada como a Joana «Labrega».
-Olhe cá: para mudar de conversa,
trouxemos a Joana «Labrega». Para ouvir uma história, linda. Mesmo linda, Vai
ver. Aqui, a Joana, foi filha do arrais Agostinho «O Capa Cavalos». Home daqueles que dizia:
-Ah! mar estás a roncar (?)… espera que já te mijo
em cima….
O Agostinho era casado com a
Deolinda «Patacão». Ora às tantas esta emprenhou,
e o certo é que passou muito mal, a rapariga.
E vai um dia a coisa
complicou-se. Chamada a manobradeira
do sítio, a ti Tuna «a Parideira», esta logo percebeu que a criança estava atravessada na
«vaga», aos baldões, e não havia maneira de a trazer cá para fora. Nem com
«reboque». Chamando o Agostinho de parte, segredou-lhe:
-Temos aqui um estipor de lanço
que ficou no peguilho. Senão levamos a Deolinda, a Aveiro, e já, ao hospital, vossemecê fica sem rede e sem peixe.
- Mas como (?) …balbucia o arrais
que nunca se vira num momento daqueles. Sem estrada, sem transporte, só lá para
a noite dentro…se
-É tarde, interrompe a Tuna.
Muito tarde. Temos uma, duas escassas horas. C’a Deolinda não óguenta mais. Vá pedir ao Ti Rigueira «o
Murtoseiro», que ele leva a pobre, a Aveiro, na sua bateira «Labrega». Não há
outro como ele, a voar sobre a ria, Ti Agostinho. Vá (!) meneie-se raio de homem, parece um xana, aí especado.
O Agostinho deu da perna e
passado um pouco voltou com o Rigueira «Murtoseiro» que logo ordenou:
-Vá peguem na cachopa e levem-na
ali à borda, que eu vou preparar o «camarote». A «Labrega» era uma daquelas
bateiras que os murtoseiros traziam com eles, para os lanços do «saltadouro». Elegante
na sua bica, toda «embreada», servia de «casa» ao pescador. Que lhe armava, no
castelo de proa, o toldo espalmado (pata
de rã) com que se protegia do vento frio da noite. O Rigueira aconchegou a
manta, armou o toldo, e quando trouxeram a Deolinda, foi só poisá-la ao de mansinho na «Voadora». Assim
se chamava a «Labrega». Toda pretinha, só com o raminho a enfeitar a cruz erguida
na bica da sua elegante proa. A «Labrega» do Rigueira era a única que tinha uma
vela bastarda, calcada à proa, na
sarreta, e verga atirada bem lá para
o alto.
A «labrega» voadora
Vela enfunada, bem calcada no punho a esticar a testa da vela, escota na mão a comandar a «enchidela», toste bem ferrada, e a «Voadora», era,
nas mãos do experimentado Rigueira, uma galgadora
da ria.
O Agostinho sentado no «traste»
olhava pela Deolinda deitada a seus pés. E os três embarcados atiraram-se à
emposta. Punho da escota bem ferrado, cabo do xarolo de sota vento laçado na sarreta de barlavento, trilhado nos
dedos de pé para jogar a orça, num
ápice chegaram ao canalete do «Oudinot». Mas aqui a Deolinda, fosse pelas
batidelas da bateira a adoçar a vaga, fosse pelo respingos da ria que entravam,
bateira adentro, diz sentir que:
-Ai meu Deus e nossa Senhora do
Bom Momento, «ela» já deu volta e vem aí……
O Rigueira acosta a «Labrega»,
fundeia numa revessa e pede ao
Agostinho (que lívido, hirto, ficara, para ali ,especado).
-Vá, que a «rede está à borda» e
é preciso separar o «mexoalho» do peixe branco. Salta lá para trás homem, estipor que só tens chaniço para o mar. De resto és um empecilho cheio de trízia.
E lavando as mãos nas auga, que aquecida pelo vento suão estava morna, abeirou-se da Deolinda e
ordenou:
-Vá lá cachopa: ferra aqui as
mãos nos escalamões, retesa-me esses
pés no paral, e acospe-me cá para fora o regordido que trazes aí dentro. E tu Agostinho (!): forra a macola com este camisote de linho, com
que fui ao altar, e prepara-te para aparar o rebento. Passa-me aí a naifa de
rasgar o porfio para cortar a mão da barca ao redame, e «a»
libertar.
E se melhor dito, melhor feito. Eis
que de entre as pernas da Deolinda se escapa uma pimpolha a berrar como uma esgalmida. Logo o Rigueira mete o
vertedouro na ria, e eslavaça a paxoneira (pois de facto era uma bonita
pimpolha que acabara de nascer na «Labrega».
-Ora, diz a Zefa… e virando-se
para a Joana que sorridente ouvira toda a história do enredo do seu nascimento,
diz toda delambida: – agora veja, aqui tem o pimpolho nascido às mãos do
parteiro Rigueira: – a Joana «Labrega».
Eu olhei para a Joana, embeiçado. Os seus olhos d’água eslavaçados
pelas águas da ria, amêndoas doces a boiarem, inquietos, num rosto muito
moreno, melaço,vivo e brilhante, eram sublinhados por um cabelo revolto. Negro…negro como o embreado da «labrega» do Ti Agostinho.
Na «labrega» do Rigueira
Nasceu a Joana dos olhos d’água
Foi
na barca toda negra
Que
nasceu o meu amor;
Estar longe sem a ver,
Desdita a minha e minha mágoa.
SF – Abril 2013
2 comentários:
Que história maravilhosa e tão bem contada! Parabéns!
Bela peça, João! Como sempre. Lembro-me que a minha mãe contava a história de alguém que tinha nascido na barca da Costa Nova. Devia acontecer com alguma frequência. Grande abraço
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