Postal da Costa-Nova Nº 12
O Naufrágio do «Senhor dos Aflitos»
Eh!....gentes, há benicias que
não Vos punha o argueiro em cima. Ei menhés…
que era feito de Vós? . Suas madraças, a faltarem aos ensejos… andais por aí no cangaral…
- Ai meu rico filho… queiras lá
tu charilo… olhe deu-me uma trízia que me ia levando daqui prós
anjinhos… - diz a Zefa, compondo o
chapéu de palha que a resguarda do sol, ainda macilento mas a prometer escaldão
para mais logo.
- Do inferno querias tu dizer… atalha
a Bernarda. Tu (!) pecadora dum raio, metediça até aos càlões… apensas lá tu que
quando finares vais pró céu? Tòmarolha?!
Armavas pra lá uma chingueradela, um arguizéu, que os anjos batiam as asas
esbaforidos… A trízia que ta deu foi
o flato c’ arribou ao teu Zé e ficastas
sem chupeta, e os gargomilhos
entaramelaram-se…
-C’alte mulher desbocada, c’a
trízia deu-me pelas perninhas acima. Era uma tremedeira que eu nem podia ir a ver o Senhor…
- Coitado… olha o q’Ele perdeu… s’stasse mesmo a ver…atira –lhe a bernarda sempre inquisiladora.
- Não… a sério meu amigo; no
passado dia 20,fazia anos da Tragédia do
«Senhor dos Aflitos»,e todos nós ,na Costa-Nova,temos uso e respeito pelos
que perderam a vida naquela tragédia, ali à nossa frente,à distância de 50 braças.
Se mais!...E vamos à Capela rezar pelas suas almas…que Deus as tenha bem
agasalhadas.
. Conte…conte lá mulher….olhe que
eu não soube dessa.O Senhor dos Aflitos,o
orago que está no altar, caiu ? ….e estrelaçou-se
no empedrado da Capela ?.... estou a ver. Sabe ti Zefa, isso sucede. De tão
cansados de estarem sempre de pé e com cara arreganhada….Isto de ser santo, cansa,
afianço-lhe eu..
- Não …lá está vossemessê na xuxa….É
danadinho pra mangação….olhe (!) da
fama não se livra….e quando a fama chega à rua do lá vai um, é porque : - afamado
mas de barriguinha cheia…. Nà…de ser santo não se cansará o amigo.
-Ora ..ora … suas sinfosas simpáticas. Deixem–se de
créditos…isso é tudo mal olhado …q’eu p’ra santo ,só me falta a andor….
-Agora a sério. Vamos lá imbarquear. E a Zefa começa a desbobinar
- O «Senhor dos Aflitos» era um barco do mar da Companha do arrais Espiga. Homme bô, ganda arrais. Daqueles
c’olhava o mar e logo sabia onde aboiava o peixe. Naquele ano,estávamos
em Novembro. A safra tinha sido uma miséria. Uma galiqueira, dizia o Espiga .Nem
xarabanecos, nem pilado ...nada!… só água coada .Uma tesura maior que a de um homem enviajado, há seis meses sem chincar vista em cima de fêmea, quanto
mais o que vossemessê sabe….
Era já tempo de meter redes em
cima e estivar barcos na duna, não fosse o cão danado do mar vir desentoado,
e fazer os seus estragos.
O dia tinha sido sombrio na
véspera. As gaivotas pousadas na praia eram mau agoiro: «em terra a gaivota …é porque
o mar a enxota», lá diz o saber dos borda d’água. Tinha trovejado de
noite …..e também lá se diz «trovão solto no céu reboa,…violento temporal apregoa». Mas o
Senhorio, sempre a querer, mais e mais, tinha mandado tocar o búzio no cimo da
duna, antes do alvorecer. A companha foi-se aproximando. Temerosos todos olhavam
o mar.
- Ah!..raios …q’elas vêm alavantadas….e não dão descanso ,nem òspois da
trecera……diziam temerosos….
- E o arrais, o que decidiu Ti
Zefa?- interrompi eu …
-Bem o arrais esteve hirto, tenso,
barrete encafuado,cachimbo pendente entre dentes …sempre a resmungar…escupindo de quando em vez.
E tomou decisão :
- Não Sr. Rechina ( assim se chamava o Senhorio)… com este mar é de
guardar resguardo, e não arriscar…
-Eh Ti Espiga ! Atão vossemessê,o arrais mais afamado destes mares…que
se gaba de mijar p’ró dito, tem medo dele? Hoje (?!) que mal atrepa na duna? E a miséria dos seus
homens não lhe faz perder o medo?
- Olhe cá ò Rechina das «Vacas
Gordas» .Eu não tenho medo do mar. Não senhor…Tenho-lhe é respeito. E se me avisa que não
me quer lá, respeito-o como a uma mulher. Se não me quer hoje, há-de me querer
amanhã…E ouça lá ò peralvilho, penhorista de bens e almas : - mais vale os meus
homens passarem mais um dia de fome, que irem procurar pão ao inferno. Que lá
só há escasso….Pilados como vossemecê...
- Se não vai, tenho ali o Toino «Esguelhudo» que leva o barco- atalha
mau encarado o Rechina. E virando-se para a companha diz: Vá gente, embarcai merdosos(!) … que hoje
o quinhão é a dobrar.
E a Zefa continua contando…
-E aqueles homens picados por tal
promessa, embora hesitando, dando um passo e recuando dois, sempre xaringados pelas promessas do Senhorio, e
pelos olhares gulosos de algumas vendedeiras
de peixe que os acicatavam p’ró risco, prometendo-lhes outras benesses mais quentes - mulheres
viciosas, mal paridas, que só olham para a sua bolsilho - lá foram embarcando.
-Olhai homens: eu bem vos aviso. Saltai enquanto é tempo…. ouviu-se
a voz em trovoada do Ti Espiga.
Mas o barco já ia na borda, continuou
a Zefa…
-Houve dois camboeiros, o Gestas e o Gateira, que mesmo à beira saltaram borda fora….escanjurrando a sorte. Veio a primeira vaga. O barco empinou, encabritou, ergueu a bica às alturas, parecendo pedir protecção ao criador. Mas foi só um momento. Logo caiu de borco nas costas da vaga, a esparralhar quanta água estava à sua volta. O barco ungido por tanto farfalho deixou de se ver. Ouviam-se os gritos descontrolados dos que iam no seu bojo. Era aterrador o escarcéu dos pobres embarcados, a verem a morte bailando nas vagas aterradoras.
-Houve dois camboeiros, o Gestas e o Gateira, que mesmo à beira saltaram borda fora….escanjurrando a sorte. Veio a primeira vaga. O barco empinou, encabritou, ergueu a bica às alturas, parecendo pedir protecção ao criador. Mas foi só um momento. Logo caiu de borco nas costas da vaga, a esparralhar quanta água estava à sua volta. O barco ungido por tanto farfalho deixou de se ver. Ouviam-se os gritos descontrolados dos que iam no seu bojo. Era aterrador o escarcéu dos pobres embarcados, a verem a morte bailando nas vagas aterradoras.
-Ai S.Pedro…ai nossa Senhora da
Saúde:tomai conta de nós….Ai que estamos desgraçados…acudi-nos…rema…rema….ai
que aí vem outra desalmada. Sobe,sobe…..Ai ….ai…
Foto : Rui Cruz
E o barco, bom rompedor, bica
afiada para evitar a batidela, a custo parece querer erguer-se. O Toino «Esguelhudo»,descontrolado, em vez de olhar o mar abre os braços, e virando-se,louco
de medo, para terra, a gritar:
-Ai Ti Espiga. Venha cá home…eu não seguro o barco com esta besta do
mar….Ai …acuda….acuda…que morremos todos aqui.
E vai daí, incapaz larga o reçoeiro, o que numa situação daquelas é o fim. O Xico da «Maluca»
ainda se atira ao cabo de terra que salta da mão do Toino. Que ajoelhado chora,
grita, implora. O Xico bem tenta endireitar o barco e pô-lo de capa à terceira
vaga. Mas era tarde e já não consegue o intento. O «Senhor dos Aflitos» começou
a enviesar. E a mostrar à vagalhoça
tremenda, não a bica afiada, mas o começo da amura. A vaga pega-lhe. Um primeiro soluço e «Senhor dos Aflitos»
atravessa-se. E um segundo soluço… e o barco volta-se de cangalhas, fundo ao ar.
Com o zangalhar da embarcação, parte
dos homens são cuspidos. Foi o que lhes valeu. O Arrais Espiga já comanda na
borda os homens de terra. Lançando-se ao mar puxam para terra mais de uma dúzia
de camaradas. São lançados cabos,boias, cortiças, odres- tudo quanto aboiasse!-
a que outros se agarraram desesperadamente.
Viradela
Emocionada, lacrimeta ao canto do olho, a Zefa continua :
- a praia tornou-se um espectáculo
de arrepiar. O mulherio de joelhos, mão cerradas, punhos erguidos, cabelos desgrenhadas,
lágrimas vertendo como cascatas dos olhos, vidrados pelo terror, imploram
salvação p’ràqueles desgraçados. Gritos
roucos, esganidos, misturam-se
com vozearia de «agarra-te»…«nada»…«nada»
só mais um bocado; «achega-te que já te
ponho a mão».Um balreiro do
caraças….
O pior era dos homens que tinham
ficado ensarilhados nas redes. Não podendo libertar-se, ficaram debaixo da
embarcação quando esta se volteou, ficando de fundo ao ar. O mar foi empurrando
o barco para a borda. Mas as redes não deixavam os homens mergulhar e safarem-se.
Pareciam peixe preso nas albitanas.
E é o fim.....
Um machado….um machado..vá gritava o Arrais Espiga….depressa seus pandões.Maneiem-se
estipores que estes desgraçados morrem todos, se não lhes acudirmos.
Só que o «depressa» não veio tão rápido como se
queria. E só passada uma eternidade - uma eternidade sim (!) que naqueles
momentos cada segundo é uma vida- sublinhava a Zefa, é que o machado chegou às
mão do Ti «Espiga». Entrando mar adentro atirou-se a partir o fundo do barco, estilhaçando-o.
Logo acorreram camaradas a dar ajuda. E até a Marília «Tuna», mulher despachada lá do Arnal, resoluta, entrou
pelo rasgão, e começou a esgaravatar. À procura de mãos para puxar os quase
mortos. E muitos, os que Deus quis, foram retirados.
-Todos, atrevo-me ansioso, a
perguntar à contadeira?
-Não….. oito ficaram ensarilhados.
E só passadas muitas horas se conseguiram resgatar os seus corpos, já sem vida,
responde a Zefa, voz embargada, parecendo reviver aquele momento.Oito vidas
perdidas por causa da tentação de ganhar mais umas moedas para acudir à fome. Sorte
danada a daqueles homes. Vida
estuporada, sempre a negar alguma fartura.Tísica. Esculhambrada vida.
- Grande tragédia, de que nunca
tinha ouvido notícia. Acabou mal. Pobre gente.
-E olhe que ainda não terminou, continua
a outra, a Bernarda.
-Olhe: no areal a gente num vai e
vem chorando os seus mortos. Outros chora os seus camaradas. No rosto do Ti
Espiga, eu, Bernarda, vi com estes olhos
que a terra há-de comer, um sinal de cólera incontida. Homem graúdo, foi à
procura do Rechina.Do Senhorio. Este
refugiara-se no palheirão. O Ti Espiga ali chegado, bate forte. Duas murraças
valentes na porta enquanto troveja:
- Salte cá para fora, para ver
quem tem medo. Um homem é um chinquilho ao
pé do mar. Mas vossemessê é um cobardola, um porco agiota.Salte ou trago-o
pelos gargomilhos…..já que tomates é coisa que sua mãe não lhe deu ao nascer. Capado de
nascença. Fraldoco, pissofoque.
O
Rechina, lá dentro, julgando-se protegido pelo portão grosso da
abegoaria, fez ouvidos de mercador. Então o Ti Espiga com o machado com que
arrombara o fundo da embarcação, estrançalha
e faz em fanicos, a porta da
abegoaria. O gado com a barulheira espanta-se e irrompe pela portada. O Rechina
«das Vacas Gordas» que estava
tentando segurar a portada para ela não ceder aos punhos do «Espiga», é
apanhado no estouro da manada. E enfiado nos cornos do «Malhado», vai aos
rodilhões, levado areal fora pela besta. Os da borda vêm a correr, num alarido
nunca visto. Uns gritando, outos batendo palmas. Outros atónitos e apalermados,
arrojam-se no areal, pensando que por ali andava o S
Bartolomeu à solta.
-E não puseram uma lápide na
praia como nome dos desgraçados?- atrevi-me eu a perguntar.
-Não não puseram. Conta-se é, que
à noite, a Marília, toda de negro
vestida, se abeirara do mar já aquietado, a enrolar manso no areal, parecendo
arrependido. E dizem que ouviram a sua
voz chorosa:
- Porque me levaste o meu Luís?... mar…desalmado. E agora o filho dele
que trago no ventre: o que lhe vou fazer?...
E erguendo-se, atira o xaile que a cobria
atirando-o ao areal. Louca faz o gesto de se atirar ao mar, pondo fim ao
sofrimento, ao encontro do Luís.
-E …e depois ti Bernarda; morreu?
A desgraçada…
-Não amigo .De repente surgiu da
sombra uma figura que lhe gritou de um modo imperativo e a fez parar do seu gesto aloucado:
-Não rapariga…não lhe faças essa
vontade. E agarrando a Marília, prende-a a si, evitando a desgraça.
-Tens de ter o teu filho. O filho
do Luis «Trimbolim»,que há-se ser um valente como o pai - diz em voz cavada o
Ti Espiga à Marília. Tinha, à tarde, notado o olhar torvo da Marília, adivinhando o gesto louco de então….Por isso a
seguira. Agarrando nela levou-a para recato seguro.
- E o que é feito do filho da Marília,o
Luís ? perguntei, curioso.
- O Luís «Trimbolim» ?Anda por esse mar fora a desafiar
o mar. Filho de pescador é pescador.Ele também. Dizem ouvi-lo ranger os dentes,
afrontando o danado que lhe roubou o Pai: ah
mar, mataste o meu Pai. Não te tenho medo, não. Nem ò vida ….Vá: - agacha-te…
Senos da Fonseca Set 2016
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