quarta-feira, janeiro 16, 2019



Joana "Maluca" a mais benquista da gafanhoas....
(Cont)



6- O desenvolvimento acelerado (1808)
Com a abertura da nova barra (1808), no local onde ainda hoje permanece, renasceu uma nova esperança em todos os que, desde o século anterior, tinham assistido ao definhar da laguna, tempos em que a gólgota gafanhoa parecia finar! Renovadas pela franca aberta, as águas trouxeram de volta à laguna doente as diversas actividades, desaparecidas no século anterior. O sal vai continuar a ser produzido e exportado, mantendo- se a produção salícola como das mais interessantes riquezas da região, entre outras, entretanto nascidas.
Para a Gafanha da Encarnação, não tanto, porquanto com a abertura da barra, o panorama geográfico da ria foi substancialmente alterado e as marinhas produtivas posicionaram-se mais para o interior, pois aí formaram-se novos os altos fundos, entretanto surgidos. Mas a ria iria ser rapidamente fértil. Rica numas fitas douradas e outras herbáceas, nela surge o chamado genericamente moliço, indispensável para o amanho das terras, como arma de retenção de águas pluviais. E, se misturado com o pilado ou com restos de peixe, torna-se
excelente fertilizante, dador à gleba de húmus abundante nutriente. O canal de Mira transforma- se, assim, no leito, onde, diariamente, centenas de barcos moliceiros vadiam em passeio errático, para cá e para lá, a mariscar a ria com os seus ancinhos. Na borda do barco, o gafanhão anfíbio dá ombro à vara, ou destranca o pente carregado de moliço da tamanca e acama as ervas no interior da embarcação, até que a água da ria cubra boa parte das falcas. E dela colhem as ervas lagunares, acarretando-as para os malhadais, cais de estágio e secagem disseminados estrategicamente pelos mais escondidos e recônditos canaletes da beira-ria. Os terrenos tornam-se espantosamente férteis. Milho, batata, beterraba e muitos outros produtos são, com muito êxito, colhidos pelos que continuam agarrados ao arado uma larga maioria.
Isso não obsta – ou até obriga! – a que comece a surgir o chamamento dos diversos ofícios: correeiros, tamanqueiros, ferreiros e muitos outros surgem aqui e ali, estrategicamente postados à sota dos caminhos.
No final do século (XIX), os estaleiros navais implantados na vizinha Gafanha da Nazaré irão atrair muita gente. E também as secas de bacalhau, entretanto instaladas no final do século, serão atractivas para o tecido feminino, que começa a distanciar-se dos trabalhos agrícolas. A mulher tende a ganhar a sua importância na economia familiar.



7- Costa-Nova: a jóia da coroa
Mas será o surgimento da Costa-Nova (1808), postada exactamente em frente da Encarnação, e desta colhendo o classificativo “do Prado”, para melhor a identificar, e a distinguir da Costa-Velha de S. Jacinto, que irá gerar um extraordinário movimento migratório. A passagem de Ílhavo para as companhas, instaladas na praia desde que Luís Barreto (Luís da Bernarda) tinha vindo aportar com as Artes à nova praia, Costa-Nova, obrigava a passagem pela Gafanha da Encarnação. José Estêvão tinha interferido na construção de uma
nova ponte que substituísse a velha ponte de Juncal Ancho (1865). A estrada para a “Bruxa” – local pródigo de observação privilegiada, de onde melhor se pode apreciar a Costa-Nova, é o términus da ligação à ria. Ponto de embarque para a Costa- Nova.
A conclusão da estrada que cruzava, aqui e ali, com os rodados dos carroços da lavra, ou com os sulcos das pegadas dos andarilhos que, noite e dia, os percorriam em passo bamboleado, saltitante e
apressado, demoraria a concretizar-se com a morte do Tribuno, acontecida em 1862. Sobreveio a anexação do Concelho por Aveiro (1895). A estrada só iria ter reinício após a desanexação e terminada, em 1900.
Terá sido financiada por particular (o pai do Dr. Madaíl), tendo-se tornado uma verdadeira levada de gente que a percorria diariamente. Terá custado 1.400.000 réis.
Ainda o sol não despertara e já um povoléu de pescadores, pescadeiras, burricos e almocreves, negociantes e ajudantes a percorriam até noite fechada. Num alegre e animado palanfrório, sempre a galrichar, lestos e ardegos, em passo de gaivina saltitante e lépida, percorriam a légua que lhes permitia embarcar nos trapiches amoirados, ali, junto à “Bruxa”. Previsto ser o custo da estrada reembolsado em cinco anos, pago por imposto criado nas barcas da passagem, que, inicialmente, pertenciam à CMI, aquela estará completamente paga (capital e juros) ao fim de três anos. Impressionante!


As companhas das Artes, entretanto, precisavam de pessoal: de mulheres para escolha e lavagem do peixe, de homens para dar mão aos remos. Houve alturas em que existiram, 4 a 6 companhas a laborar no areal da Costa-Nova, engajando cerca de
1500/3000 braços, necessitando, para tal, mais de duas mil pessoas, em constante trânsito. Precisavam as ditas de juntas de bois, depois de Manuel Firmino ter experimentado a tracção das Artes, por força cornígera, em substituição da desarcada tarefa de puxar as redes aos ombros.
Passo a passo, ofegantes, ao som do tambor: rataplam... rataplam, pum!... pum!!!... iam as artes subindo areal acima, ajoujadas de sardinha prateada retirada ao mar. O êxito absoluto em S. Jacinto da substituição, contaminara-se a todas as companhas. Os lavradores da Encarnação criavam e alugavam, à época, esses animais com pasto fresco e farto, nos prados já férteis das gafanhas. Cada companha precisava de cerca de dez juntas; por ano, cerca de 100 bois eram, pois, necessários.
O desenvolvimento, quer em forasteiros, que, atraídos por este novo mundo de oportunidades, se vieram fixar, quer seja pelos comércios (vinhos e outros), ou ofícios, aqui instalados para resposta às solicitações, fez da Encarnação a terra prometida. Em 1950, eram já cerca de 3.000 as almas instaladas na Freguesia. Em apenas um século, a Gafanha da Encarnação guindou-se a um plano de importância chave nas potencialidades concelhias.
No final da estrada, lá estava a tasca da Ti Norta. Lá, não faltava um retemperador caldo de feijoca bem
fumegante, prenhe de conduto a dizer, e umas couves, frescas e tenras, das hortas gafanhoas, trocado por umas parcas moedas, quando não por uma ou outra bilha de azeite, vinda em burrico lá da serra, ou por uns peixitos surripiados ao de labaró da rede estripada pelo Porfírio, termo de viagem daquelas almas vindas lá do monte, por entre congostas e veredas esganiçadas, noite dentro, toca-toca, a trote ligeirinho, para estar, ao outro dia, no lanço da alva, deixando os burricos a recuperar forças na estalagem da boa Norta, que deles mandava, ou cuidava, com dedicada atenção, enquanto o almocreve ia à
compra.
À noitinha havia encontro marcado no altar da tasca, caneco na beiça, para, com dois quartilhos, aquecer as entranhas; A dar dois dedos de relambório, a combinar encontros, antes de meter ao caminho, burricos já frescos, ajoujados de canastros onde saltitava a fresca sardinha. Amanhã, ao alvorecer de olho ainda vidrado, esta estaria pronta para regalar os beiços de esgalmidos beirões lá das serranias do Caramulo.
Assim medrou, cresceu e se desenvolveu uma terra, ao princípio madrasta, mas que, ao fim de parcos anos, revessava de alegria ao acolher gentes de tão diferente proveniência.
As companhas logo saltaram de S. Jacinto para a nova costa. Aportaram ali atrás do palheiro “dito” de José Estevão, construído então pelo negociante de Viseu, Manuel Marinho. Montaram o altar de S. Pedro num caniçado atamancado coberto de junça ou estorno e logo por aqueles lados foram surgindo umas cabanas cobertas de junça e uns palheiros, pertença do Capitão-mor de Ílhavo e ajudante. Por vantagem da travessia da Maluca para a outra banda, o desembarque deslocou-se para Sul. E com ele a mota de atracação, local de despejo do preciso às companhas e pessoal.
A partir de 1824, começaram a aparecer uns pândegos forasteiros que vinham a banhos. Era o surgimento de uma nova classe social, pequena burguesa, a copiar as modas e hábitos da realeza. Vestidos a rigor, fatinho de “ir a ver o Senhor” iam à borda tomar uma banhoca. E depois regalavam-se com o sol e o iodo que os tostava. À noite, corpo amolambado de tanto ar forte, iam deitar colchão no chão estreme de um qualquer palheiro da salga. Mas, ano após ano, a procura feita por estas gentes abonadas logo trouxe à ideia a feitura de uns palheirinhos colocados ali no recurvo da concha. Os pobres pescadores foram empurrados e acantonados lá para baixo, lá para o Sul. Em 1900, eram já muitos os veraneantes, vindos das mais variadas partes, em particular bairradinos, chegados
de carroço da lavra, carregado com os precisos, onde o principal era o pipinho, da boa e afamada pinga, sem baptismo de qualquer sacristão desavergonhado. Vindos em Outubro, eram os donos da praia. Bons convivas. Elas e r a m mocetonas tisnadas, de boa e gorducha pernonca, que mostravam um pouco mais do que o artelho. No areal, voyeurs olhudos esperavam... esperavam... até à vinda da tal vaga que as obrigaria a levantar a farpela, por vezes até aos calções afitados no joelho (não fosse a aflição criar saída brusca...). Eles refastelavam-se, fazendo jus à distinção de excelentes alarves comilões. A Costa- Nova tomava ares de recanto privilegiado, com uma ria onde o azul era ainda mais azul, fascinantemente azulão. Amplidão de frescura e água onde apetece mergulhar disse dela Raúl Brandão. Era uma tela de uma beleza impressionante, impossível de descrever os seus cambiantes contínuos, de os fixar em palavras, local idílico, bem próprio para os veraneantes virem desafaimar os negrumes da alma e as chagas do corpo.
Lá na borda, lenta e pacificamente, o “ílhavo”, foi cedendo o remo ao “gafanhão – primeiro o cambão, e logo depois o maião”, que, ao princípio parecendo um pouco tímido, logo irá perder os arreceios do mar, até, mais tarde, irá afoitar-se ao mando de arrais.
Os gafanhões vêm assim completar o quadro humano da borda, “A ruralização do litoral, como lhe chamou Unamuno.
E a costa é um bodo para o sensório mais exigente. De manhãzinha já o
barbazanas de fogo garimpa lá das serranias, espreitam por detrás da paisagem recortada onde se distingue o caramulinho. Logo a ria se inunda de um doirado afogueado nas cintilações da mareta. O tempo monta e com ele, o astro-rei.
O sino chama os fiéis à nova capelinha da Senhora da Saúde (1889), trazida ali para o areal, um pouco a Norte das companhas, hora de conciliação e refastelo da alma.
O dia vai começar. Ao bulício das companhas, junta- se agora a algazarra divertida dos folguedos dos que nada mais têm a fazer do que cuidar e retemperar o espírito. À tardinha, os mirones vêm juntar-se, a admirar o atropelo da venda e despacho das barcadas. Vozes altas, impropérios misturados com tiradas brejeiras, outras tarrincas, gente apressada, a pedir desimpacho para a lesta peixeira se botar ao caminho:
- Ah Catracega, c’a minha sardinha é melhor c’à tua...
- Homessa ?! Só se for no olho do dito, c’até nestes dois da frente inté brilha, invejosa calamantrona. Despacha-te que ma vou botar à passagem...
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SF 

(cont)

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